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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.11 n.17 Belo Horizonte jun. 2005

 

SEÇÃO ABERTA

 

RESENHA

 

 

João Leite Ferreira Neto*

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Universidade Fumec

 

 

Boarini, M. L. (Org.). (2000). Desafios na atenção à saúde mental. Maringá: Eduem. 133p.
(Challenges in the attention of mental health).

A saúde mental entendida como campo de atuação de profissionais “psi” no contexto da Saúde Pública não cessa de trazer questões e inovações sobre seus modos de realização. Em sua histórica recente, a saúde mental trouxe contribuições definitivas ao panorama da atenção ao paciente portador de sofrimento psíquico, numa trajetória que se afasta, cada vez mais, das ações hospitalares-manicomiais na direção da atenção desenvolvida nos chamados “serviços substitutivos” aos manicômios. Essa história teve como atores-chave e líderes do processo os profissionais de saúde mental, movidos por seriedade profissional e ardor militante, que reconhecem a necessária associação entre clínica e política. Os avanços nessa direção, nos últimos 20 anos, são inegáveis, tanto na dimensão do aprimoramento da assistência quanto na ampliação do debate público sobre o estatuto do louco, convocando a sociedade a perceber e a receber o portador de sofrimento mental de modo diverso da exclusão e da tutela – abriuse assim o debate sobre a cidadania do louco. Hoje, o atendimento ambulatorial do doente mental é parte do programa estatal de organização dos serviços, e a discussão da cidadania do paciente é tema que mobiliza a opinião pública.

Entretanto, todos esses avanços não deixam de produzir novos paradoxos. Um deles é a excessiva “ideologização” do debate, acarretando uma interpretação binária dos conflitos que subjazem a essa luta. É como se o campo estivesse polarizado entre apenas duas posições possíveis: de um lado, os que abraçam a bandeira do movimento antimanicomial (profissionais, usuários, ONGs, setores do Estado, segmentos partidários militantes), de outro, os que são contrários (empresários da saúde, e profissionais, usuários, familiares, setores do Estado cooptados). Ou ainda: de um lado, segmentos militantes da causa dos loucos, de outro, segmentos cooptados pelos interesses dos empresários da saúde. Não existem alternativas a essa polarização fundamentalista – “quem não está conosco, está contra nós”. Lembremos, de passagem, que esse maniqueísmo simplificador está presente no filme Bicho de sete cabeças, produzido com base em um livro escrito por um paciente-militante.

Se essa postura militante teve importância vital na história desse processo, a insistência nessa posição acarreta efeito paralisante da avaliação crítica do que se passa atualmente no campo da saúde mental. Nesse sentido, a leitura dos artigos presentes no livro Desafios na atenção à saúde mental, organizado pela professora e pesquisadora Maria Lúcia Boarini, traz uma sensação de frescor e arejamento. Nele, os cinco autores conseguem, com clareza, demonstrar sua posição favorável ao desenvolvimento de práticas emancipatórias na atenção à saúde mental, ao mesmo tempo em que avaliam criticamente alguns efeitos dessa polarização artificial, buscando alternativas necessárias para fazer avançar os processos. Minha leitura deste trabalho busca destacar o fio crítico e, ao mesmo tempo, politicamente posicionado que percorre suas páginas, sem a pretensão de uma resenha completa de todos os artigos.

José Sterza Justo aborda a experiência de andarilhos portadores de sofrimento mental, a maior parte deles egressos dos hospitais psiquiátricos, “praticamente lançados a esmo para fora dos muros dessa instituição com a instalação de políticas de desospitalização” (p. 20), e os associa, em sua análise, com o fenômeno de errância na sociedade contemporânea. Essa condição de vida deve ser entendida mais amplamente como reflexo das vicissitudes da sociedade contemporânea, de uma “sociedade que desterritorializa, que coloca o sujeito numa situação de provisoriedade e imprevisibilidade do cotidiano” (p. 25). Seu artigo adverte, também, contra a onda de desinstitucionalização desenfreada, que não se dá conta de como as forças sociais hegemônicas lançam mão das bandeiras contestatórias, incorporando-as segundo seus próprios interesses, usando a energia militante a favor do aprimoramento do sistema. Ele encerra sua reflexão advertindo que algumas das bandeiras do movimento antimanicomial foram apropriadas pela ordem social estabelecida, já que se desenhavam como “expressão de um desejo do neoliberalismo de se desvencilhar de instituições arcaicas que não mais correspondiam aos novos interesses” (p. 28).

Nacile Daúd Júnior desenvolve uma análise sobre os rumos da reforma psiquiátrica, tendo como referência seu trabalho como coordenador da Política Municipal de Saúde Mental de São Paulo da Administração Democrática e Popular (1989-1992). Sem pretensão de resumir seu extenso e bem articulado artigo, saliento sua ponderação crítica em relação ao que chamou de “uma política naps-cêntrica”, vertical e compartimentalizada, que teve como um de seus efeitos a homogeneização e a normatização. Dos diferentes modelos antimanicomiais emergentes. Uma das conseqüências disso foi a produção de uma cronificação do paciente, deslocado apenas espacialmente do manicômio para os Caps/Naps/Cersams. Isso nos lembra, aliás, a crítica feita por Foucault, nos anos 1970, sobre a política francesa de uma “psiquiatria de setor”, mediante a qual ele pensava que o projeto de fazer definhar o asilo produzia, de fato, um “asilo ilimitado”. Essa direção das políticas de saúde mental no Brasil avançou desde os anos 1990, calcada no financiamento facilitado para a implantação de Caps nos Estados e nas prefeituras. Na verdade, a ruptura com o manicômio deve ir além de seu fechamento e avançar na desconstrução de sua lógica excludente e tutelar, e a construção da autonomia do paciente. O autor acredita que estaremos mais próximos desse objetivo investindo na “rede de atenção integral à saúde” e apostando na diversidade de experiências locais e inovadoras (p. 57-58).

Temos, na seqüência, os artigos de Maria Lúcia Boarini e de Marco Antonio de Castro Figueiredo. O primeiro discute o sentido da desinstitucionalização nas práticas de atendimento. Esse não deve ter foco eminentemente individualizante, mas considerar as relações sociais que estão presentes na história e no contexto do paciente (p. 75). O segundo, que tem como tema a AIDS, aborda os perigos da “ideologia de segurança em Saúde Pública”, que reproduz a concepção do doente como perigo social (p. 87).

“At last, but not the least”, o artigo escrito pelo psiquiatra Oswaldo Dante Milton Di Loreto é uma iguaria que, certamente, será degustada com prazer por todo profissional de saúde mental. É uma cartografia micropolítica escrita na forma de uma crônica sobre o cotidiano de trabalho de um jovem psiquiatra na rede pública de saúde. Traz as reflexões de profissional, suas angústias, impasses, decisões e autocríticas diante de seus pacientes em uma jornada (normal?!) de atendimento. Na intenção de aguçar o apetite do leitor, farei algumas citações. O primeiro paciente do dia é um neurótico contemporâneo, diferente dos clássicos: “Não é histérico, não é fóbico, não é obsessivo. Simplesmente uma vida desperdiçada”. Entretanto, “sobrevive de seu único ponto forte: é bom de fantasia” (p. 94-95). Diante de outro paciente, constata – “nenhum remédio dissolve o ódio” e reconhece a tentação de “ser clinicamente desonesto e apelar para a ‘empurroterapia’, encaminhá-lo” (p. 104). Em outro momento, diante de um jovem travesti, assume: “Não sei lidar com a homossexualidade explícita! Ponto!”, e cheio de remorsos encaminha-o ao setor de psicologia (p. 107). Mais adiante reflete que a porta de entrada dos serviços deve estar nas mãos dos profissionais mais experientes, que possuem a cancha necessária para tomar decisões difíceis e agir com criatividade. “Triagem significa julgamento. Escolha. Decisões. Implica em ter coragem. Peito. Que eu não tenho” (p. 109). Termina a manhã e tem de sair correndo para outro emprego onde o esperam mais 12 casos... Encerro aqui as citações com o aviso de que a segunda parte do texto é ainda melhor. Uma reflexão crítica, honesta e bem-humorada sobre os impasses que atravessam a prática dos profissionais “psi”.

 

 

* Psicólogo, mestre em Filosofia (UFMG), doutor em Psicologia (PUC SP), professor da PUC Minas e da Universidade Fumec; e-mail:jleite.bhe@terra.com.br.

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