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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.26 no.2 Belo Horizonte maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2020v26n2p641-659 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2020v26n2p641-659

 

Sobre o não dito do feminino e da maternidade

 

About the unsaid on feminine and maternity

 

Sobre lo no dicho de lo femenino y de la maternidad

 

 

Juçara Clemens*; Mériti de Souza**

 

 


Resumo

Este artigo é um recorte de uma pesquisa que, pela perspectiva psicanalítica, escutou mulheres considerando o dito e o silenciado sobre suas maternidades. Contatadas mediante rede social e profissional, as mulheresmães foram entrevistadas, considerando-se a ética e os conceitos da psicanálise: inconsciente, livre associação, transferência. Entre os resultados, encontrou-se o fenômeno do vício de fala, no qual as palavras e expressões que são utilizadas repetidamente na fala atravessam o discurso, preenchendo ausências, obturando descontinuidades, buscando o significado perdido. Utilizamos a expressão "não dito" para caracterizar essas expressões que contrariam os ideais sociais, e, ou, o que é esperado dessas mulheres, por elas e também pelos outros, para suas maternidades. Na trama do não dito, encontram-se os afetos que se expressam advindos de diferentes instâncias psíquicas na construção de cada mulher com o feminino e a maternidade.

Palavras-chave: Maternidade. Feminino. Psicanálise. Afeto. Ideais sociais.


Abstract

This article is an excerpt from a research that, from a psychoanalytic perspective, listened to women considering what was said and what was silenced about their maternity. Contacted through a social and professional network, the women-mothers were interviewed by considering the ethics and the following concepts of psychoanalysis: unconscious, free association, and transference. Among the results, it was possible to find the phenomenon of speech error, in which the words and expressions that are used repeatedly in speech pass through the discourse, filling absences, reducing discontinuities, searching for the lost meaning. We use the word "unsaid" to characterize these expressions that contradict social ideas, and, or, what is expected from these women by themselves, and also by others, for their maternities. In the plot of the unsaid, it is possible to find affections expressed by different psychic instances, in the construction of each woman with the feminine and maternity.

Keywords: Maternity. Feminine. Psychoanalysis. Affection. Social ideals.


Resumen

Este artículo es un recorte de una investigación que a través de la perspectiva psicoanalítica escuchó mujeres considerando lo dicho y lo silenciado sobre sus maternidades. Contactadas a través de una red social y profesional, las mujeres-madres fueron entrevistadas considerándose la ética y los conceptos del psicoanálisis: inconsciente, libre asociación y transferencia. Entre los resultados se encontró el fenómeno del vicio del habla, en el que las palabras y expresiones que son utilizadas de modo repetido al hablar atraviesan el discurso ocupando ausencias, obturando discontinuidades y buscando el significado perdido. Utilizamos la expresión "lo no dicho" para caracterizar esas expresiones que contradicen los ideales sociales y/o lo que se espera de esas mujeres, por ellas mismas y por demás, de sus maternidades. En la trama de lo no dicho se encuentran los afectos que provienen de diferentes instancias psíquicas en la construcción de cada mujer con lo femenino y la maternidad.

Palabras clave: Maternidad. Femenino. Psicoanálisis. Afecto. Ideales sociales.


1. INTRODUÇÃO

Esse artigo é um recorte de uma pesquisa que, a partir de uma perspectiva psicanalítica, propôs-se a escutar mulheres considerando o dito e o silenciado na maternidade. A escolha por esse enfoque diz respeito a como a mulher-mãe, a partir das marcas de sua história, pensa e sente a maternidade dita e compartilhada e a maternidade não dita, ou seja, aquela que não pode ser falada, sendo silenciada quando não confirma ou não mantém os valores e padrões sociais/culturais preponderantes

Propomo-nos uma articulação por meio de aspectos desenvolvidos na teoria psicanalítica sobre a sexualidade feminina bem como aspectos metapsicológicos sobre o afeto. Em relação à sexualidade feminina, acompanhamos o discurso freudiano sobre o processo identificatório no qual uma menina se torna mulher e como esse discurso considera a maternidade como uma das vias para seu processo. Para problematizar a teoria psicanalítica, a qual traz as marcas de um contexto sócio-histórico vitoriano, utilizamos as ideias e críticas de psicanalistas contemporâneos como Birman (2001, 2010), Neri (2005), Nunes (2000). Entendemos que essas críticas ajudam a ampliar pontos questionáveis de uma teoria rica e importante em diversos aspectos, porém, ainda marcada por aspectos falocêntricos.

Em relação à maternidade, elegemos as ideias de Chodorow (2002) para dialogar conosco com base na importância e no destaque que traz da relação da menina com sua mãe bem como as marcas que essa relação imprime em toda a trajetória da menina antes ainda de viver a conflitiva edípica.

A metapsicologia é de nosso interesse ao abordarmos, na fala de cada entrevistada, os afetos. Os afetos aqui em trânsito, característicos de uma movimentação psíquica, não podem ser reconhecidos a não ser pela palavra ou talvez gesto, ação. Escolhemos as expressões que surgiram na fala. Pela fala e como fala, neste artigo, chamamos de "não dito" o modo como as entrevistadas utilizam o que Conte (1992) nomeou de vícios de fala. Expressões repetidas e, algumas vezes, sem um sentido explícito até para a própria entrevistada.

Em cada composição de fala da mulher-mãe entrevistada sobre o feminino e a maternidade, buscamos articular o afeto correspondente relacionado à sua história e a instância da qual ele poderia ter advindo. As caraterísticas de cada expressão utilizada também nos deu indicativos da força dos ideais sociais de uma cultura patriarcal que se perpetuam na constituição de sujeitos, consequentemente na fala e na vida dessas mulheres que os repetem sem entender a força deles.

2. MÉTODO: ESTRATÉGIAS PARA PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO

Respaldadas na perspectiva psicanalítica, em situações não clínicas, utilizamos, na expressão de Laplanche, a psicanálise “extramuros”, a qual Rosa (2004, p. 331) aponta como "uma prática psicanalítica que aborda o sujeito enredado nos fenômenos sociais".

Modificamos o vértice e fomos ao encontro das mulheres-mães para a escuta de suas vivências na maternagem, sem estar num "setting clássico", mas em local de escolha de cada uma. Destaca Birman (1994) que há diversas possibilidades na experiência psicanalítica, desde que sejam reconhecidas as condições epistemológicas e éticas para uma escuta regulada pelo impacto da transferência.

Para Mezan (2002), é no mergulho da singularidade das histórias das pessoas e na extração tanto do que lhe é exclusivo (especificidade) quanto do que é compartilhado (generalidade) que a pesquisa psicanalítica investiga e evidencia.

Ao considerar a noção de inconsciente não submetido à razão e à consciência, o pensamento freudiano apresenta um sujeito afetado por suas experiências, tanto as da realidade psíquica como as da ordem do real. As formações do inconsciente conjugam símbolo e corpo, e interpelam a quem é afetado por sua produção (Birman, 1994).

A psicanálise, em sua utilização nesta pesquisa, não foi reduzida a uma hermenêutica interpretativa de um saber estabelecido a priori. Para Costa e Poli (2006), ao operar com o inconsciente, se está diante de um saber que não se sabe, mas que é suposto. Produzir conhecimento sobre esse não sabido implica a constituição de um campo relacional e uma relação transferencial, entre pesquisadora e pesquisada, no qual as formações do inconsciente são acolhidas.

O guia para as entrevistas foi o campo transferencial estabelecido entre as participantes, além da livre associação produzida nesse contato. Em relação à entrevista, ela se baseou num roteiro com perguntas abertas desencadeadoras do pensar sobre o tema. O convite para cada mulher-mãe para falar sobre sua vivência não se assentou no pressuposto moderno calcado na verdade e na universalidade. Ao acolher a incerteza do não/sem sentido como condição de sentido, favoreceuse para que surgisse o aspecto singular de cada sujeito envolvido.

Assim, o conhecimento produzido pela pesquisa foi uma construção elaborada a posteriori em relação ao trabalho de transferência, na qual sua formulação é acompanhada das respostas que foram possíveis de serem construídas naquele contexto, com base na construção singular de cada encontro.

As quatro mulheres-mães entrevistadas nesta pesquisa foram contatadas através da rede social e profissional. As participantes tinham entre 33 e 38 anos. Todas eram primíparas. As crianças tinham entre 1 ano e 5 meses a 4 anos. As entrevistadas tinham grau de instrução superior. Seus filhos vieram depois da conclusão de seus estudos universitários e alguns anos de profissão. A todas foi dado o termo de consentimento livre e esclarecido para leitura, esclarecimentos de dúvidas e solicitada a assinatura. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Em relação à condição de idade mínima dos filhos, de 1 ano, para realização da entrevista, considerou-se o que Winnicott (1988) chama de preocupação materna primária. A mãe, para se adaptar às necessidades iniciais de seu bebê, disponibiliza uma sensibilidade aumentada. Optamos por respeitar esse tempo da dupla mãe-bebê, também porque a fala da mulher-mãe, ao atender a alguns critérios da entrevista, poderia mobilizar ainda mais uma mulher já mobilizada por sua experiência inicial de maternidade. Esse período de 1 ano vida do bebê também teve o intuito de considerar o reingresso da mulher-mãe no mercado de trabalho e a conciliação ou não com a maternidade.

Também estipulamos a idade máxima de 5 anos para o filho ou filha da mãe entrevistada. Esse critério procurou contemplar a intensidade da experiência de maternidade conjugada aos anos iniciais da criança, que exigem mais da mulher, principalmente em sua primeira experiência.

As entrevistas foram transcritas para posterior análise a partir dos aportes teóricos adotados acerca da constituição psíquica e de conceitos psicanalíticos como afeto, feminino, maternidade. As entrevistas tiveram durações variadas no tempo, de 50 minutos até 1 hora e 20 minutos. Foi considerada a disponibilidade das entrevistadas e a da pesquisadora no momento de cada entrevista.

O clima de cada entrevista também manifestou aspectos da singularidade de cada entrevistada, na qual perguntas únicas e exclusivas surgiram a partir da livre associação. Entretanto, por trabalhar com aportes teóricos como a livre associação, a transferência, a escuta flutuante, a dinâmica de cada entrevista é que ditou a emergência de perguntas específicas para cada entrevistada. O nome de cada uma foi preservado. Como critério utilizado para citar suas falas no material do artigo, empregamos outros nomes.

2.1. DISCUSSÃO E RESULTADOS

Na fala das entrevistadas, ocorreu o uso de alguns sons colocados como tentativas de preencher, de algum modo, um espaço, porém esse som não se apresentou como compreensível à ouvinte pesquisadora. Desse modo, a palavra não foi articulada em suas possibilidades de sentidos ou acolheu os afetos em relação ao vivido e lembrado.

Nas entrevistas, surgiram expressões sonoras difíceis de serem transcritas. Conte (1992) se refere às palavras e expressões que são utilizadas na fala de modo repetido como bengalas linguísticas. Algumas expressões que surgiram durante as entrevistas foram "bá-rá-rá", "nã-nã-nã", "blá-blá-blá", entre outras. Em outros momentos foi o uso repetido de algumas palavras que se destacou na construção das frases, tais como: "assim", "isso", "tal". Na fala de Eliane, tem-se um exemplo: "Quero me lembrar de alguns fatos da gestação e não me lembro como eu gostaria. De curtir aquele momento […] Eu e meu bebê […] Bá-rá-rá […] Essas coisas, eu não me autorizei muito a isso" (grifo nosso).

O "bá-rá-rá", uma bengala linguística, pode funcionar como um impedimento, uma não autorização para entrada num território que pode expressar a relação que constrói com a filha. Embora a entrevistada se remeta, em muitos momentos da entrevista, à relação que teve com sua mãe para pensar a relação entre ela e sua filha, a relação de agora com sua filha é outra, e pode surpreendê-la. Essa relação solicita uma disponibilidade experiencial e afetiva para a construção desse vínculo que não está pronto.

Sobre essa disponibilidade para a construção vincular, Martha fala sobre o que vivenciou. São dois momentos de separação e encontro, devido às viagens do casal. A seguir, apresentamos o reencontro entre ela e a filha após a segunda viagem.

Era de madrugada, nem quis vê-la, e fui deitar. Tava muito cansada. E […] eu nem dormi direito. Ela acordou, tipo assim, eu escutei a voz dela, e eu não consegui mais dormir. Fui obrigada, meu Deus! Eu levantei, assim[…] Acho que nunca vou esquecer o som da voz dela falando com a minha mãe, assim. Meu Deus do céu! Me deu um […] uma coooisaa, assim! [. . .] Meu Deus, uma saudade! E quando ela tinha sete meses eu não senti isso. Por isso que eu acho que é pela […] Porque eles interagem! Totalmente com a gente com 2 anos. [. . .] Tu não tem como […] Tu cria um amor […] pela convivência! (grifo nosso).

Através desse episódio, Martha nos conta como experienciou a vinculação com a filha aos 7 meses e aos 2 anos de idade. Ela se surpreendeu com a intensidade dos afetos despertados, no segundo encontro, quando estes foram nomeados e ganharam sentido para ela. Há um contraste em sua fala nesses dois momentos.

O que parece também sofrer mudanças são os ideais sociais na sua relação com o amor materno. Esse amor, se fosse incondicional, como tanto é falado e repetido pelas mães, não geraria essa diferença entre os dois momentos, como Martha descreve. As mudanças nas nuances afetivas indicam uma relação em construção. Esse amor não está pronto e acessível pelo fato de ser mãe.

Pela relação com seu irmão caçula, no início da segunda entrevista, Martha expressa ter pensado sobre um tema que havia surgido na entrevista anterior, na qual a entrevistadora havia feito uma pergunta: "Sabe quando tu fica pensando, martelando. Foi o que tu falou, que eu peguei o meu irmão no berço e tu: tu já pensou que ele podia estar sozinho sentindo a mesma coisa que você e tal, nãnã- nã […] É isso que eu fiquei pensando (ri)" (grifo nosso).

O "nã-nã-nã" pode ter uma função de anunciar um pensamento que vem um pouco depois.

Eu nunca tinha pensado que ele podia estar se sentindo sozinho também. E como é bom […] ter […] companhia. Óbvio que todo mundo gosta de ficar sozinho. Eu, até hoje, eu acho, eu ainda penso muito sobre isso, que eu gosto de ficar sozinha, quieta no meu canto (ri), por causa disso. Eu nunca gostei de tumulto, de muvuca e […] De silêncio eu gosto. Eu acho que foi pela minha criação assim, só.

Martha aceita pensar na condição de solidão de seu irmão, mas sobre a sua condição ela a defende como uma escolha sua. Pelo "ficar pensando, martelando", por meio do qual expressa sua ideia, ela pode nos aproximar do modo como ocorre um investimento psíquico nessa ideia (representação) e como psiquicamente consegue lidar naquele momento com essa questão. A mãe de Martha ficava dormindo até mais tarde todas as manhãs, e ela e o irmão ficavam sozinhos, cada um em seu quarto. Em algum momento, ela assumiu os cuidados do irmão, os quais a mãe não estava tendo. Porém Martha seguiu sem esse cuidado materno.

Para pensarmos como esses aspectos repercutem psiquicamente, utilizaremos as ideias de Green (1982), quando apresenta a discussão sobre os afetos serem estados de tensão e descarga. Para tal, cabe situar de qual instância o afeto é tributário. No id, as tensões são seguidas de descarga, maciça e brutal. Já no ego, a tensão muda, pois é inibida pelos processos primários, há uma retenção temporária que busca suportar a carga até um limiar. Ordinariamente essa descarga é limitada, pois o afeto permanece preso nas produções do ego, coexistindo com a representação-coisa e de palavra.

O autor propõe reconsiderar o ponto de vista econômico relacionado à ordem quantitativa. Há ambiguidades nessa concepção, pois Freud (1920/1976)1 fala tanto da tendência à redução absoluta (nível zero) quanto da redução relativa (nível mais baixo possível, nível constante) das tensões. Para manter a vida, é preciso uma solução do nível mais baixo possível, sem chegar ao nível zero ou descarga completa. Assim, "O ponto de vista econômico não se limita à tendência à descarga, nem tampouco à noção de relação quantitativa" (Green, 1982, p. 227). Aqui o autor não explicita, mas parece sugerir que, além dos aspectos psíquicos, corporais também sugere as influências do contexto, do social quando aponta as exigências da vida na busca de uma solução de nível mais baixo possível das tensões.

Outro aspecto que Green (1982) aponta é o trabalho de transformação sobre a energia libidinal. Do ponto de vista econômico, a redução de quantidades no psiquismo permite assim um trabalho, uma transformação, na qual se dá uma das suas tarefas principais que é a passagem da energia livre à energia ligada. Aqui exemplifica esse trabalho em transformação da energia somática em energia libidinal, da transformação das pulsões em representação psíquica das pulsões, pela divisão em afeto e representação, pela distinção entre representação de coisa e representação de palavra. Desse modo, o ponto de vista econômico está nos processos de investimento e contrainvestimento. No nível do ego, contribuirá com os mecanismos de defesa. E é ele também que presidirá os destinos das pulsões. Mecanismo de defesa que pode estar sendo acionado nesse movimento psíquico que Martha apresenta em sua fala.

A fala de Martha pode ser utilizada como uma exemplificação de um trabalho psíquico em relação ao estar sozinha, a qual agora pode ser pensada e relacionada à sua história de vida com seu irmão, num primeiro momento. Talvez num outro tempo, possa relacionar consigo, com sua mãe e com sua filha. Esses personagens todos se fazem presentes na trama de sua constituição da maternagem. Utilizo essa expressão "personagens" para acentuar a mobilidade que estes podem ganhar para sair dos aspectos identitários fixados e rígidos. Em seu processo de identificação com sua nova função, papéis, desejos e escolhas em relação à maternidade, as representações e afetos se apresentam móveis e múltiplos.

Já Eliane relaciona autorização e aprendizagem para viver sua maternidade e o vínculo com sua filha. "Não é uma coisa, ah, eu queria ser mãe, blá-blá-blá. Era tudo que eu queria e tal […] Estou aprendendo a ser e me autorizando a ser. O aprender vem depois da autorização" (grifo nosso).

Na discussão da possibilidade de essa autorização estar relacionada a aspectos superegoicos, Green (1982) esclarece que o discurso freudiano enfocou pouco as relações entre o afeto e o superego. Salienta que essa dificuldade pode estar nas particularidades dessa instância, já que é da mesma natureza que o id, e que também sua crueldade pode ser explicada nesse parentesco. Mas se o superego está diretamente ligado ao id, também uma parte dele pertence ao ego, no que está relacionado à inibição e dominação dos afetos.

Ao tomarmos a noção de superego, como em O ego e o id Freud (1923/2010), englobamos as funções de interdição e de ideal. Para Green (1982), não foi suficientemente explicitada a separação entre as funções da censura e de interdição das funções de ideal. Se não há aprovação parental ou o que o sujeito imagina dessa aprovação, o superego proíbe os afetos de prazer, desencadeando assim desprazer. Ocorre então a proibição de representações, dos objetos desejados e de suas promessas de prazer. "O querer ser mãe", de Eliane, depara-se primeiro com o que ela denomina de autorização. Em sua história, esse aspecto está imbricado ao feminino e ser mulher numa comparação paterna que lhe diz para não ser como sua mãe. Ser como sua mãe não lhe é autorizado pelo pai nem por ela mesma. Num segundo momento, destacado pela própria entrevistada, é preciso aprender a ser mãe, ou dito de outro modo, aprender a ser mulher, feminina e desejar ser mãe, a partir de suas condições e faltas, e estabelecendo novos parâmetros dentro do que lhe é possível.

O recalque, assim, é exigência para que a renúncia à satisfação ocorra. O sexual é o objeto privilegiado do recalque. Esse sexual está relacionado ao prazer que o objeto pode dar e, em se tratando do objeto primordial, também à segurança, à proteção e os cuidados. Renunciar a esse objeto é uma renúncia mais extensa do que ao prazer sexual. Desse modo, renunciar aos ideais propostos por esse pai é renunciar a uma suposta gratificação imediata para obter, mais tarde, uma gratificação fruto de seu aprender a "ser mulher e mãe".

A renúncia ao objeto também acontece muito cedo na relação mãe-bebê. A mãe investe na criança, mas isso não a impede de ter outros investimentos. Seu apego ao bebê também não é exclusivo, pois gradativamente a experiência fusional vai se desfazendo. Desse modo, a falta do objeto, ou sua representação, é intenso e penosamente sentido pela criança (Green, 1982).

A criança, não tendo mais a mãe à sua disposição, terá de lidar com suas tensões bem como com a espera por seu retorno. Desse modo, ocorre também uma conquista do ego sobre o id, pois, em troca dessa renúncia, o superego dá uma recompensa narcísica. Agora a criança busca pelo reconhecimento do que realizou, e o objeto é sua testemunha dessa renúncia. No lugar do prazer aguardado, surge o orgulho que o objeto confirma. E é essa satisfação negativa de natureza narcísica a matriz da estrutura de idealização primária (Green, 1982).

Em relação ao acesso à maternidade de Eliane, Conte (1992) apresenta uma hipótese na qual esses sons e, ou, palavras chamadas de "vícios de fala"” (blá-bláblá) repetem-se em sua fala, numa busca para preencher ausências e obturar descontinuidades de suas vivências relacionais e afetivas.

De quem Eliane aguarda autorização para entrada neste universo do feminino no qual pode ou não estar a maternidade? Por qual reconhecimento aguarda? Há uma confidência paterna sobre a sexualidade de sua mãe e do casal que expõe um borramento da função paterna para com ela. O pai critica a sexualidade de sua mulher para a filha: "Dizendo da minha mãe, que ela não é companheira, ela não é carinhosa, rã-rã, rã-rã. E eu gostaria que tu fosse bem diferente dela" (grifo nosso).

Figurativamente, o pai coloca a filha como sua confidente. Esse lugar não lhe cabe nem lhe pertence. Para Conte (1992), as palavras carregam muitos significados que são fraturados pela subjetividade daqueles envolvidos na comunicação. Assim, são destinadas a ambiguidades, condensações e mascaramentos. Cada palavra é um sintoma, pela qual os significados podem expressar aspectos dominantes na relação. Desse modo, o afeto do vício de fala surge na transferência pelo deslocamento enquanto a expressão utilizada se mostra anódina.

Na situação de entrevista, transferencialmente, o que surge é uma urgência em dar conta da entrevista. Atender ao que lhe é solicitado. Estar disponível para isso, mesmo desconsiderando situações e condições. Um fato surpreendente ocorre durante o início da primeira entrevista, quando foi acionado o alarme de incêndio do prédio onde ela estava sendo realizada. A entrevista é interrompida, e a entrevistadora vai buscar fora da sala informações sobre a situação e, como não as obtém, retorna à sala e convida Eliane para descer as escadas, pois o alarme já toca há alguns minutos. Ela mostra uma aparência despreocupada diante do forte alarme tocando e ao que ele poderia significar. Sugere esperarmos ali mesmo. Novamente, Eliane é convidada para pegar sua bolsa e descer e sair do prédio. Ela diz não ser preciso.

No "rã-rã-rã" de Eliane, temos um exemplo do que pode sugerir uma expressão que busca preencher ausências e descontinuidades em sua história, na qual essas expressões se repetem na busca de um sentido perdido. Esse sentido perdido é o que surge na transferência durante a entrevista, ao procurar dar conta do que lhe é solicitado, não importando as condições dela e do contexto para tal. Também surgiu no "blá-blá-blá", quando falou sobre ser mãe e estar se autorizando a tal, embora já tenha sua filha.

Diante dessa situação, pode-se pensar que o ponto de urgência é deslocado. Nesse momento, a entrevista sai de foco, e o objetivo maior é atender à solicitação do aviso sonoro de alerta e cuidado, pois pode haver perigo no prédio. Pode-se traçar um paralelo entre os vícios da fala de Eliane, nas entrevistas, e seu modo de agir diante desse imprevisto. Sua aparente despreocupação com tal situação pode ser um meio de torná-la inofensiva e sem importância.

Ao relembrar sobre sua história e trajetória como mulher, destaca um momento em que, numa conversa com o pai, ele descreve sua mãe como mulher e mãe. As palavras do pai causam impacto em Eliane: "O lado mãe dela é uma coisa, mas o lado mulher está deixando muito a desejar". Ao que a entrevistada expressa: "Eu me assustei com aquilo. Meu pai se queixando pra mim! Nunca me vi nesta situação, dele se queixar sobre isso da minha mãe".

Assim, a linguagem, pelo vício de fala, funcionaria como uma porta de entrada ao subtrair e presentificar, de outro modo, o significado do traumático. Como o vício de fala é constituído de palavras, entramos no campo da linguagem. Esta ocorre na substituição da coisa por palavras, em que o sujeito tanto nomeia o que está disponível, como suas vivências, como o que não está disponível, ou a falta. Assim, pelo processo de simbolização, construímos nossas histórias e as conformamos às palavras. A linguagem então inscreve, como um dialeto, as ausências (Conte, 1992).

Eliane, ao falar da sexualidade apartada da maternidade, utiliza uma palavra que se repete várias vezes:

A sensibilidade, eu acho […] E a questão da mediação […] que a mãe faz um pouco disso… Acho que isso eu tenho […] Sensibilidade para algumas coisas […] Não entre homem-mulher […] com as pessoas ser acolhedora […] esse lado maternal que eu digo de tentar resolver as coisas pelas pessoas […] sempre estar disponível […] que isso é um pouco desse lado mãe que eu tenho como exemplo (grifo nosso).

"Isso", ou talvez id, é o que deve ser mantido recalcado. A sexualidade dos pais irrompe demasiadamente na menina que quer contatar com o feminino e na mulher que quer vir a ser, mas que, ao mesmo tempo, atrapalha-se tentando dar conta do mandato paterno: seja diferente de sua mãe.

Os vícios de fala podem indicar a busca de um sentido no qual os afetos possam ser nomeados. Esses recortes na fala de Eliane nos apontam para aspectos de sua história de filha, mulher, mãe que buscam vias para produção de sentidos outros que não os já conhecidos e traumáticos, ou não falados.

O que o pai imaginava para a filha como mulher? O que o pai não conseguiu por dificuldades também suas e culpabiliza sua esposa? Em relação à fala do pai que desvalida a mulher que é sua mãe: "Ele me deu esses direcionamentos, sendo que algumas coisas eu devo ter (ri)". Eliane se mostra num emaranhado entre o que lhe foi dito e não feito (pelo pai) e o que foi dito, feito e não agradou (sobre sua mãe). A construção de seu jeito de mulher e mãe terá, antes, a tarefa de se desemaranhar dos modelos que lhe foram impostos e que ela toma para si sem crítica. Seu pai, ao lhe dar o que chama de "orientações", desvalida o modelo de mulher e mãe que sua mãe lhe oferecia:

O meu pai quis me dar um direcionamento enquanto mulher: seja mais carinhosa, não repita esses erros da tua mãe, o errado era a mãe, de ser muito grossa num sentido, não saber relevar as coisas, de não ter um lar […] Esperando, sabe, aquela bajulação, aquela coisa. Isso que ele falou que eu estava fazendo bem igualzinho a ela.

O feminino parece ficar confuso quanto ao que o pai nomeou de "bajulação". Com esse termo, seu pai critica o comportamento de sua mãe, ao mesmo tempo em que desqualifica algo do feminino que sua mãe demonstra. Ser uma mulher ativa poderia ser sinônimo de ser grossa e distante, bem como ser passiva, algo próximo a ser carinhosa? As "desorientações" do pai a deixam confusa. A construção do ser mulher e de sua feminilidade, inevitavelmente, passará por uma dessubjetivação singularizante. Estariam relacionados esses aspectos em sua busca por análise, a qual refere várias vezes na entrevista?

A busca da entrevistada pelo seu jeito de mulher e de mãe pode entrar em confronto com esse modelo estereotipado do feminino que vem na fala do pai, mas que também está nela por meio de muitas outras falas que ouviu ao longo de sua trajetória e que permeia nossa cultura contemporânea.

Entre 1924 e 1932, um conjunto de ensaios sobre a problemática do feminino na psicanálise é escrito por Freud. O que estava em pauta eram os diferentes destinos psíquicos ante uma ameaça de castração, no homem, e a inexistência da dita ameaça, na mulher.

Vejamos o percurso libidinal na figura da mulher. Reconhecendo-se como castrada por não possuir o pênis/falo, a ameaça de castração não teria efetividade. Destituída desse "órgão mágico do erotismo", repercussões ocorreriam em sua autoestima, ou dito de outro modo, numa "menos-valia narcísica". Assim, a mãe seria a destinatária de um ódio originário, pois, no cenário fantasmático, causoulhe esse sofrimento ao qual a menina relaciona a perda de amor. Como ser amada se a mãe não lhe ofertou esse pênis/falo e ainda revela uma espécie de desamor primordial ao lhe privar de algo tão valioso? (Birman, 2001, p. 197).

Com base nesses aspectos, Birman (2001) destaca que a maternidade de um filho e de uma filha tem diferenças, pois esse filho é que daria a tão aguardada plenitude fálica. Nesse percurso, o autor enfatiza o quanto, no discurso freudiano, a figura do homem tem um valor superior em relação à mulher. Ao que Nunes (2000) destaca como uma herança de Freud em dois sistemas diferentes de pensamento. De um lado, confirma uma tradição iluminista na pressuposta diferença essencial entre os dois sexos, consequência da anatomia diferente entre eles, e, por outro, estabelece uma concepção monista da sexualidade, sustentada na fantasia infantil da existência de apenas um órgão sexual, o pênis.

Prosseguimos os questionamentos ao discurso freudiano, por meio de Chodorow (2002), que critica os primeiros seguidores de Freud, ao se mostrarem afinados com as diferenças entre meninos e meninas, tanto no percurso como na resolução do complexo de Édipo. Para eles, a principal tarefa edípica estava voltada aos relacionamentos adultos heterossexuais. Desse modo, a tarefa da menina é tornar-se orientada para os homens. A menina troca de objeto amoroso, da mãe para o pai, do modo libidinal ativo para passivo e do clitóris para a vagina em seu erotismo. O menino não há nada semelhante a fazer. Já a menina enfrenta uma contradição básica da teoria freudiana, que inscreve seu comportamento ativo como expressão de masculinidade, pois, para a mulher alcançar a verdadeira feminilidade, os caminhos libidinais terão de abandonar as tendências ativas de sua sexualidade clitoridiana (Nunes, 2000).

A expressão "orientação para os homens" suscitou posteriores críticas, entre as quais a da heterossexualidade feminina, na qual o feminino significa uma heterossexualidade genital. Esse modelo está baseado nas características vitorianas. Nessa época da história, era esperado das mulheres que se comportassem de modo passivo aos homens e se subordinassem a uma prática sexual voltada à procriação. Muitos debates foram travados em relação à sexualidade feminina, mas os esforços para definir atividade e passividade na sexualidade feminina foram infrutíferos, pois recorriam a concepções normativas (Chodorow, 2002).

Em diferentes épocas, a força da referência fálica (e as características a ela denominadas) mostra-se nos comportamentos de homens e mulheres. Especificamente em nosso país, Del Priori (2009a; 2009b; 2011) nos descreve padrões coloniais advindos do colonizador, que, associado a uma forte doutrinação religiosa, impôs uma relação hierarquizada na qual os homens detinham o poder nas relações, bem como cabia às mulheres a exclusividade no cuidar das crianças que fossem geradas, quer por elas ou pelas que seu homem gerasse com outras mulheres. Se o colonizador impunha seus costumes ao colonizado, os homens impunham seus modos de pensar e viver às mulheres. Estas tinham uma vida marcada, muitas vezes, pelo abandono. Isso se dava pelo afastamento comum dos homens para com as mulheres para trabalhar em áreas distantes de um país imenso e carente de mão de obra. Aos que ficavam ao lado de suas mulheres e de seus filhos, as relações eram também marcadas pela dominação masculina, e tanto as mulheres como as crianças não tinham suas singularidades escutadas e consideradas.

No interesse comum de domesticar as mulheres em sua vida e sexualidade, a maternidade foi utilizada tanto pelos homens comuns como pelos homens de Deus. O projeto de normatização das mulheres se baseou nas prédicas religiosas que impuseram a Virgem Maria como o modelo de mulher e mãe santificada a ser seguido pelas mulheres-mães. Isso fez com que a santa-mãezinha ganhasse uma força que fez com que essa imagem se mantivesse ainda nos dias atuais.

Para Chodorow (2002), fenômenos de gênero decorrem de relações sociais específicas e de definições normativas da situação sexual impostas e aprendidas por membros desta ou daquela sociedade e contexto. Destaca que a psicanálise pressupõe que a genitalidade heterossexual é uma meta desejada, tendo no complexo de Édipo a primeira arena para essa meta.

A autora questiona sobre como podemos interpretar o percurso das meninas no período edípico, já que os pais sexualizam o relacionamento com suas filhas, empregando práticas de criar socialmente sancionadas. Por um lado, o discurso freudiano presume a orientação heterossexual e o primado genital (vaginal) como normal, e que esse é o destino biológico das mulheres; por outro, a clínica psicanalítica evidencia que nada há de inevitável, natural ou preestabelecido na sexualidade humana. Destaca que se deve rejeitar qualquer enfoque que dê destaque ao natural, evidente e despreconcebido, pois a orientação sexual das mulheres é inconscientemente preconcebida, psicológica e ideologicamente construída (Chodorow, 2002).

O enfoque tradicional psicanalítico está interessado na orientação heterossexual centrada no investimento libidinal da menina ao pai, já o de Chodorow está na "persistente significação da relação da menina com sua mãe por todo o período edípico. A orientação sexual está de pano de fundo aqui" (Chodorow, 2002, p. 147).

Para a autora ser menino ou ser menina constitui-se não apenas nos processos conscientes de identificação vividos no complexo de Édipo, mas nas relações objetais que ambos vivenciam e internalizam a partir de diferentes relacionamentos (Chodorow, 2002).

A perspectiva que nos mostra um complexo de Édipo com imagens espelhadas é demasiadamente simples. Para Chodorow (2002), na menina, a situação triangular edípica se dá mais tarde e num contexto relacional diferente do menino. Assim, a menina não abandona esse relacionamento pré-edípico por completo, mas o utiliza como base, ou seja, tudo o que virá mais tarde estará sobre esta. A autora destaca a dualidade do apego que Freud assinala na relação da filha com a mãe, pois a menina tanto se apega ativamente à mãe como se pega passivamente, sem possibilidade de escolha, como um apêndice ou extensão dessa mãe. Esses aspectos repercutiriam no seu modo de ser e se relacionar com a mãe, marcado por características pré-edípicas, simbióticas, de um amor primário, sem senso de separabilidade da outra pessoa.

Destaca a autora que, nas meninas, a experiência relacional do complexo de Édipo não é simétrica à dos meninos. Para Freud, a menina muda do relacionamento exclusivo com a mãe para voltar-se ao pai como objeto de interesse libidinal. Ao examinar esses aspectos, Chodorow aponta para dois aspectos, como tanto a força do relacionamento com a mãe que já ocorre quanto a importância do relacionamento agora com o pai. Justifica que esses aspectos são explicações parciais desse processo no qual elementos diferentes podem ser mais ou menos importantes para meninas diferentes. Uma menina se volta ao pai à procura de um pênis, mas pode fazer isso por diferentes explicações da natureza e causas de sua busca. Em nota de rodapé em seu texto, salienta que psicanalistas afirmam que a inveja do pênis é parte da busca edípica, mas não algo com efeito decisivo na vida da mulher (Chodorow, 2002).

Em relação ao ponto polêmico da inveja do pênis e as expressões no comportamento da mulher, tais como mesquinhez, rancor e competição com o homem, Birman (2001) enfatiza que Freud foi longe em sua interpretação. Seus enunciados são radicais quando destaca que a vontade e o pensar da mulher são afetados. O discurso freudiano destaca que a mulher seria marcada pela parcialidade de seu ponto de vista e sem acesso ao universalismo característico da subjetividade masculina. Com isso, a mulher é identificada ao polo da natureza, pois o polo da civilização é marcado pela transcendência da lei moral e de seus imperativos que não se instituiriam nela da mesma maneira que no homem.

Desse modo, a teorização freudiana marca de periculosidade a subjetividade feminina. Devido à sua inveja e à falta de grandiosidade ética, a mulher seria "uma fonte interminável de perigo para a civilização e para a sociedade", sendo que "a insistente demanda de erotismo e de amor a destinaria à ruptura dos laços sociais". Por isso "a figura da mulher perigosa não seria apenas uma espécie e uma exceção no gênero mulher, mas seria, antes de mais nada, uma virtualidade e uma potencialidade latente no ser feminino" (Birman, 2001, pp. 201-202, grifo do autor).

Chodorow (2002) destaca que a inveja do pênis traz problemas em sua explicação, pois Freud acentua mais o desprezo da menina com o qual exerce sua hostilidade para com sua mãe. Se a menina amava a mãe fálica ativa, passa então a rejeitá-la. Seguindo essa lógica, um menino também poderia ter razões para hostilizar, depreciando e menosprezando sua mãe, bem como abandonando as mulheres como objeto de amor. A autora enfatiza a necessidade de entender "por que uma menina, mas não um menino, parece estar procurando uma desculpa para 'rejeitar' sua mãe". Como entender "por que a descoberta de que ela não possui pênis é tão traumática para uma menina" (Chodorow, 2002, p. 155).

O argumento utilizado por Chodorow (2002) considera então o que veio antes, ou seja, o relacionamento pré-edípico da menina com a mãe, o qual Freud e seus seguidores não acentuam. A relação mãe-filha pré-edípica, caracterizada por sua extensão, intensidade e ambivalência, dá a base psicológica para que a menina se volte ao pai (Chodorow, 2002).

Para Neri (2005), no processo da menina para se tornar feminina, ela odiará a mãe e o feminino, e expressará o desejo fálico de querer ser masculina. Apenas depois de uma separação marcada pelo desprezo e o ódio que ela se identificará com a mãe e encontrará sua via para se tornar feminina. Assim, essa elaboração do Édipo se mostra menos como uma resolução para a sexualidade feminina e mais como um problema.

Com parte desse processo, a menina se volta ao pai para obter um bebê que lhe é recusado por este. Mais tarde, desejar ter um filho(a) coloca a maternidade como uma espécie de segurança e de referência, bem como uma saída possível para algumas das características de periculosidade intrínseca à subjetividade feminina. Ter um bebê possibilita a posse do pênis/falo e sua suposta plenitude fálica. Desse modo, no discurso freudiano, a mulher faz contribuições ao mundo em sua condição de mãe ao agregar e não dissolver laços sociais. A maternidade reconciliá-la-ia com sua condição de origem (Birman, 2001).

Birman (2001, 2010), Neri (2005), Nunes (2000) e Chodorow (2002) se dispõem a indagações que resgatam aspectos teóricos pertinentes sem deixar de atentar a que a teoria sobre a sexualidade feminina é atravessada por uma historicidade cultural. Nesse arejamento, está a possibilidades de novos desdobramentos para compreensão tanto das questões de gênero como da sexualidade da mulher. Aos limites de cada época cabem as posições críticas que, mediante esses autores, a Contemporaneidade apresenta.

Podemos acompanhar aspectos da trama entre as construções sociais, históricas e psicanalíticas sobre o feminino, a maternidade e o afeto. Cabe a Eliane e Martha fazerem sua conjugação singular sobre o feminino, a maternidade e seus afetos. Essa conjugação se manifesta na vida e nas ações dessas mulheres-mães, pois o investimento ou não na maternidade se apresenta como uma via que dá acesso aos seus desejos como mulher.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A perspectiva psicanalítica apresentada possibilitou trabalhar, por meio da linguagem e suas modalidades linguageiras, os modos como se articulam a representação e o afeto. Nas diversas mediações que envolvem essa articulação, têm-se expressões da constituição psíquica de cada entrevistada entre o singular e o universal, bem como a história de cada entrevistada envolveu um trabalho psíquico que acionou diferentes recursos; evidenciando os ditos que sustentam ou alteram os parâmetros que a cultura atribui para as mulheres-mães, mobilizandoas para falar ou silenciar.

Desse modo, para cada entrevistada, falar sobre ser mulher e mãe presentificou suas vivências e escolhas tanto passadas como presentes, facilitando um processo de apreensão de si e de sua história. Desse modo, acessar e (re)nomear afetos que possam fazer algum (novo) sentido lhes dá a possibilidade de criação e não mais de repetição do sem nome ou do nomeado pelo outro que ganha voz, principalmente nos ideais sociais.

Há de se destacar o cuidado de não tomar o já nomeado como acessível e disponível como recurso psíquico. Cabe ponderar os caminhos, os jogos de força dos componentes psíquicos que possam entrar em oposição aos mandatos relacionais e, ou, sociais. A maternidade ainda é um reduto nos quais os ideais sociais têm uma força muito intensa, e isso amplia a tarefa de cada uma em sua construção de ser mulher.

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Texto recebido em 21 de março de 2017 e aprovado para publicação em 26 de junho de 2018.

 

 

*Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professora no Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), membro correspondente do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre.E-mail: juclemens09@gmail.com.
**Pós-doutora pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, doutora em Psicologia Clínica pela PUCSP, professora no Departamento de Psicologia da UFSC, membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.E-mail: meritisouza@yahoo.com.br.
1 A primeira data indica o ano de publicação da obra, e a segunda, a edição consultada pelo autor, a qual somente será pontuada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data de publicação original.

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