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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.3 n.1-2 São Paulo  1992

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A família na doutrina social da Igreja e na política social do Estado Novo

 

The family according to the church social doctrine and the social politics of the "New State"

 

 

Cynthia Pereira de Sousa Vilhena

Faculdade de Educação — USP

 

 


RESUMO

No interior do universo mais amplo das relações entre a Igreja e o Estado na época do governo ditatorial de Getúlio Vargas, o artigo procura demonstrar a identificação de interesses entre essas duas instâncias de poder para o alcance de seus próprios fins, levando-se em conta como objeto de análise o problema da família e, por extensão, da mulher e da prole. A efetivação dos projetos do Estado Novo e da Igreja Católica estava sujeita, em larga medida, à manutenção da ordem e da estabilidade sociais por meio do disciplinamento da família, concebida como fundamento da sociedade.

Descritores: Família (Brasil). Estado Novo. Política social. Igreja Católica. Doutrina Social.


ABSTRACT

Within the wider universe of relationships between the Catholic Church and the State during the Getulio Vargas dictatorship, the article intends to demonstrate the identification of interests between these two divisions of power for the fulfillment of their own aims, using as object of analysis the problem of the family and, as a consequence, of women and their children. The fulfillment of the "New State" and Catholic Church projects was subordinated, to a large extent, to the maintenance of social order and social stability, through the discipline of the family, conceived as the foundation of society.

Index Terms: Family (Brazil). Social politics. "New State" (Brazil). Catholic Church. Social doctrine.


 

 

Na pesquisa que realizei para minha tese de doutorado analisei os temas da família, da mulher e da prole na década de 30 e parte da década de 40, considerando a política social implementada por Getúlio Vargas, desde que ele chega ao poder após a Revolução de Outubro e o desenvolvimento da doutrina social da Igreja Católica, definida por Leão XIII ainda no século XIX e que, aqui no Brasil, ganha corpo e altitude no bojo do movimento de reação católica, a partir dos anos 20, graças a intervenção de novos atores que iriam compor o setor do laicato católico. Dentro deste panorama, meu interesse dirigiu-se mais especificamente ao período do Estado Novo (1937-1945), no interior do qual era relevante também destacar o projeto educativo do Exército que, erigindo a educação como fator de segurança nacional, traria repercussões à formação da infância e da juventude.

A leitura de alguns trabalhos recentes elaborados por pesquisadores ligados ao Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea forneceu-me algumas pistas de temas que poderiam ser trabalhados dentro daquilo que era, na verdade, a problemática mais ampla das relações entre Igreja e Estado. Minha escolha recaiu sobre os temas da família, da mulher e da prole porque, além do meu interesse pessoal sobre o assunto, este ainda era um universo pouco explorado, quando se trata de ligá-lo à educação e ao Estado Novo e que em relação à ação estatal nesse campo, os arquivos de Getúlio Vargas e Gustavo Capanema, organizados pelo CPDOC, ofereciam um farto material à pesquisa. Com relação à Igreja, as possibilidades de se fazer um estudo dessa temática eram amplas, uma vez que o discurso das lideranças católicas constituía-se em um verdadeiro manancial no trato de assuntos deste gênero.

Para a constituição do corpus documental da parte relativa ao governo Vargas procurei coletar toda a documentação possível sobre os temas escolhidos, concentrando a pesquisa no CPDOC da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Os critérios utilizados nessa coleta foram a leitura e a seleção de uma enorme quantidade de vários tipos de documentos que compõem o Arquivo Gustavo Capanema: ofícios, correspondência pessoal, memorandos, cartas, bilhetes, projetos de leis, discursos, conferências, relatórios e estudos feitos pelos seus assessores, os quais serviriam de subsídios para a elaboração de justificativas e de projetos ligados à política familiar, à educação feminina e à proteção, e educação da infância e da juventude. Trabalhar esses documentos, elaborados dentro de um determinado contexto histórico, significa uma tentativa de entender as concepções e as motivações daqueles que os produziram, ou seja, de como compreendiam o mundo e a sociedade em que se achavam envolvidos e de que maneira agiam e reagiam a partir dessa compreensão.

Com relação à Igreja, o procedimento foi semelhante. Busquei todas as referências aos temas escolhidos nos documentos pontifícios, nas manifestações da hierarquia eclesiástica e do laicato católico publicadas em livros e em periódicos. Privilegiei, por exemplo, os escritos do padre jesuíta Leonel Franca, usado como fio condutor e por ser uma figura muito citada em trabalhos sobre o catolicismo no Brasil mas cujo pensamento, quanto às questões que me propus analisar em meu trabalho, permanecia praticamente inexplorado. De resto, o Padre Leonel Franca teve uma participação ativa nos rumos da educação no Estado Novo, fosse como professor e reitor das Faculdades Católicas (depois transformadas em Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), fosse membro do Conselho Nacional de Educação ou, ainda, como uma pessoa com trânsito livre no Ministério de Educação e Saúde ou com o próprio Getúlio Vargas. Ao lado das manifestações do clero, não poderia faltar a palavra do líder do laicato católico — Alceu Amoroso Lima — e, sempre que julguei necessário elucidar ou aduzir argumentos, coloquei em evidência a opinião de outros pensadores católicos mas, em nenhum momento, pretendi ser exaustiva com relação a estas outras fontes.

Dentro do quadro histórico nacional, a década de 30 representa um marco na trajetória da política social brasileira, uma vez que a "questão social" passa a receber um tratamento bastante diferenciado em relação ao período da República Velha, transformando-se em "área de interesse prioritário" do governo getulista. Até 1930, a "questão social" era vista pelas oligarquias no poder como um "caso de polícia", e não de política. A partir de 30, verifica-se uma tomada de posição nova e definitiva pelo Estado diante da questão social, que se vai traduzir em uma "intervenção regulatória crescente e não mais interrompida no tempo". Várias das medidas, dos decretos concedendo benefícios aos trabalhadores como, por exemplo, o salário mínimo, a legislação previdenciária, sindical e trabalhista, etc., começaram aí a sua história (Gomes, 1983).

Analisar o problema da família dentro do quadro mais amplo da política social significa tentar encontrar respostas que expliquem o relevo dado, pela primeira vez, ao tema, na Constituição de 1934, ratificada na Carta de 1937 e, paralelamente, o fato de o discurso católico estar pontuado por assuntos desta ordem. Quem acompanha, de um lado, o desenvolvimento dos debates, dos estudos das comissões, das manifestações de vários setores do governo até a decretação de leis, cujo escopo mais evidente era o atendimento dos compromissos constitucionais e, de outro, examina as encíclicas papais, os documentos do clero e as manifestações do laicato católico, certifica-se do grau de importância de que tais assuntos se revestiam, erigidos em verdadeiros princípios norteadores da ação social, e de quais foram as vias escolhidas para dar-lhes execução. Á medida que a família é concebida como base do edifício social, a educação ocupa um lugar estratégico porque representa o instrumento com o qual se poderá formar o tipo de homem que melhor corresponda às exigências de uma ordem social que está sendo reformulada. Esta nova ordem social era reivindicada em nome dos princípios da ordem, hierarquia, disciplina, respeito a família e às instituições, cumprimento dos deveres cívicos e amor à pátria forte e coesa, em clara oposição aos postulados do liberalismo democrático, considerado de triste memória e cuja experiência se revelara aos olhos de católicos, políticos e militares, com poucas exceções, um verdadeiro fracasso na Primeira República, atribuindo-se-lhe a responsabilidade pelo desvirtuamento dos propósitos fundamentais que tinham sido a razão de ser da Revolução de 30.

Em meu trabalho procuro mostrar o significado mais profundo do empenho do governo estadonovista na defesa de certas questões entendidas como essenciais à consecução dos objetivos fixados no âmbito de sua política social —a família, a mulher e a prole —como instrumentos de edificação do Estado Nacional. Paralelamente, examino essa temática enquanto elemento constitutivo da doutrina social da Igreja, de cuja preservação e expansão dependia a permanência do próprio organismo eclesiástico enquanto instituição.

Para a Igreja Católica universal foi, sobretudo, o caráter de instabilidade da família moderna que se constituiu na mola propulsora de inúmeras ações e manifestações em defesa da família organizada, estável e coesa. Entendida como a "célula-mater da sociedade", e "base do edifício social", a desestabilização da instituição familiar repercute em toda a sociedade colocando em risco a continuidade do exercício de poder e influência, característicos da Igreja há séculos. Defender e preservar a estabilidade da família contra toda sorte de "fermentos desagregadores" significa, pois, garantir a paz e a harmonia da sociedade enquanto conjunto de famílias e, em última instância, a sobrevivência da Igreja como instituição dentro do organismo social.

A questão da família para a Igreja no Brasil não pode ser desconectada de um quadro de referências mais amplo, quando ela passa a assumir novos contornos como instituição revigorada e atuante. O novo vigor institucional não se dá apenas porque a Igreja separou-se do Estado e ligou-se mais ao Vaticano, "romanizando-se", mas, sobretudo, pela constatação de que a alternativa para a sua sobrevivência residia em assumir posturas muito firmes diante de um mundo conturbado, diante dos perigos que a ameaçavam por toda a parte, desde o final do século XIX, e de modo patente, após a Primeira Guerra Mundial. Era o espectro da secularização crescente de amplos setores da vida nacional que representava um verdadeiro desafio para a Igreja, ameaçada em sua secular hegemonia. No Brasil, como apontava o líder católico Alceu Amoroso Lima, o grande perigo residia na onda de individualismo que vinha avassalando a sociedade doméstica, colocando em jogo "os quadros tradicionais da família cristã", com a introdução de "dois elementos de dissolução doméstica: o divórcio e a restrição artificial dos nascimentos" os quais, segundo ele, incidiam principalmente sobre as classes abastadas, a "alta burguesia" porque, sendo esta a classe social com as melhores condições de dar sustento e educação a uma prole numerosa, foi a que mais "traiu as leis naturais da vida" (Lima, 1940).

Sobre estas questões encontrei importantes subsídios na obra do padre Leonel Franca. Em um de seus numerosos artigos, ele discute o problema do exame pré-nupcial, que me exigiu uma pesquisa retrospectiva para situar devidamente a questão. Em poucas palavras, o que ocorreu foi que, ao longo da Primeira República, com o surto urbano-industrial e a introdução de grandes correntes imigratórias, as cidades mais importantes como São Paulo e Rio de Janeiro tomam novas feições, em razão do crescimento demográfico e da constituição heterogênea da população, levando à desorganização do espaço urbano. Dentro desse quadro, a questão sanitária assume um lugar de destaque no âmbito do discurso da medicina social. Gradualmente, ela será investida de ampla autoridade pelos poderes públicos, o que lhe permitirá intervir no organismo social, não só em relação à saúde dos indivíduos, mas no sentido de ordenar e organizar a vida das cidades (Cunha, 1986). Durante o período citado multiplicam-se entidades e associações formadas por alienistas, higienistas e eugenistas preocupados com o espaço social onde se desenvolve a vida dos indivíduos e com as influências negativas que ele pode causar: alcoolismo, doenças venéreas, psicopatias, loucura e todos os "venenos sociais" que precisam ser exterminados em benefício de toda a sociedade. A eugenia, enquanto ramo da medicina social, vai voltar-se contra esses males sociais pelos efeitos que causam à "degradação da espécie" e ao "abastardamento da raça". Uma das medidas profiláticas seria a luta pela obrigatoriedade do exame pré-nupcial, que evitaria a "procriação malsã", a reprodução dos degenerados e deformados e garantiria a fiscalização eugênica da raça. Em outras palavras, o saneamento biológico e moral da população. Tais entidades procuram organizar um movimento de "eugenização" da raça brasileira, uma verdadeira cruzada eugênica. Nos meios parlamentares, por volta da década de 20, formam-se grupos contra e a favor dos casamentos consangüíneos e a Igreja, como seria de se esperar, combate violentamente a instituição da obrigatoriedade do exame pré-nupcial. Esta questão reaparecerá em um importante decreto do governo estadonovista, que dispôs sobre a organização e proteção da família, em 1941, tornando obrigatório o exame de sanidade física para os "colaterais do 3º grau" que desejassem se casar.

Sobre a questão do divórcio, o padre Leonel Franca dedicou um livro inteiro ao assunto, publicado em 1931, no qual procura demolir todas as teses favoráveis ao divórcio que possibilitaria novas núpcias, aduzindo uma série de argumentos à análise que faz da realidade, do "fato social" (Franca, 1952). A publicação do livro ocorre por conta do clima acirrado dos debates em torno das tentativas de introdução do divórcio, quando o Governo Provisório de Vargas nomeia várias comissões para o estudo da reforma do Código Civil, em dezembro de 1930. Para a hierarquia eclesiástica era preciso estabelecer uma tática mais agressiva e eficiente, que pudesse opor obstáculos a qualquer tentativa de modificação das fórmulas jurídicas de organização familiar. Em agosto de 1931, o cardeal Leme nomeia uma comissão de doze juristas católicos, que teria por objetivo organizar "o trabalho de defesa das reivindicações católicas nas futuras reformas legislativas". O padre Leonel Franca foi indicado assistente eclesiástico da comissão central e das comissões particulares que estudariam as questões pertinentes aos Códigos Civil e Penal, à Lei Eleitoral, ao ensino religioso, etc.1.

Considerando-se estas questões pelo lado do governo devemos recuar um pouco no tempo. Um ano antes da promulgação de nossa primeira Constituição republicana, ou seja, em fevereiro de 1890, o Governo Provisório do Marechal Deodoro da Fonseca publicou a "Lei sobre o casamento civil" determinando, em seu artigo 56, como um dos efeitos do casamento, a constituição da "família legítima", consolidando a união monogâmica e reservando um capítulo ao divórcio que permitiria a "separação indefinida dos corpos", mas não a dissolução do vínculo. O Código Civil de 1916, resultante de uma longa e polêmica elaboração que se iniciou nos idos de 1899, absorveu praticamente todos os dispositivos dessa lei, mantendo a indissolubilidade do casamento civil, mas fixando normas reguladoras sobre a possibilidade de dissolução desta sociedade, através do recurso ao desquite (apenas a separação de corpos), não falando, portanto, em divórcio. Ora, nos casos da lei do casamento civil de 1890 e do Código Civil de 1916, divórcio e desquite eram termos sinônimos.

Mesmo com a instituição destas novas leis, na prática, no cotidiano de grande parte da população brasileira continuava a vigorar o hábito, que vinha desde os tempos coloniais, das uniões consagradas pela Igreja e, até o advento da República, existia apenas o casamento religioso e era ele que legitimava as uniões matrimoniais. Daí o elevado número, em plena vigência do regime republicano, de uniões reguladas apenas pela autoridade religiosa, quando reguladas, e a despeito da lei que instituiu normas para a realização do casamento civil, tornando-o o único reconhecido pelo Estado. Diante desta situação, surgiu uma lei, no início de 1937, dispondo sobre os efeitos civis do casamento religioso. Ela representava também uma tentativa de se obter um perfil mais preciso da população brasileira, uma vez que os dados colhidos pelos censos (até o de 1920) só consideravam os casamentos civilmente constituídos. Somente a partir do censo de 1940, em razão mesmo desta lei, é que começaram a ser computados também os casais unidos só pelo vínculo religioso.

No âmbito da política social inaugurada pelo governo de Getúlio Vargas, foi somente a partir da Constituição de 1934 que a família foi alçada à categoria de matéria constitucional, sendo colocada "sob a proteção especial do Estado" e enfatizando-se sua origem a partir do vínculo matrimonial indissolúvel. Um dos dispositivos previa os casos de desquite, mas manteve-se a proibição do "divórcio a vínculo". Isto significava que estavam afastadas as ameaças representadas pela introdução de uma lei divorcista no Brasil e que, como foi referido, tinham levado as autoridades religiosas a pressionar a sociedade e o governo no sentido de manter o estatuto do casamento indissolúvel. A Igreja, apesar de reconhecer "a existência de situações conjugais insustentáveis", entendia que o desquite era a solução mais aceitável porque determinava apenas a separação dos corpos e não do vínculo conjugal (Franca, 1952). Nesse sentido, a meu ver, o desquite tinha um caráter marcadamente punitivo, porque mantinha o vínculo e impossibilitava novas núpcias o que, para a mentalidade católica, não chegaria a destruir completamente a família. O desquite seria, portanto, um "remédio" necessário em certas circunstâncias e o divórcio, porque permitiria novas uniões, era encarado como uma perigosa "tentação".

Alguns anos depois, em 1937, com a decretação do Estado Novo e a imposição de uma nova Carta Política, mantém-se o dispositivo do casamento indissolúvel e da família amparada pelo Estado. A novidade é a atribuição de "compensações" às famílias de prole numerosa, "na proporção de seus encargos", configurando os esforços do governo estadonovista na implantação de uma política familiar.

É instigante acompanhar as discussões, os encaminhamentos e os projetos de leis feitos, principalmente, pelo Ministério de Educação e Saúde dirigido por Gustavo Capanema e que, a partir dos dispositivos constitucionais, procuram regulamentar a política familiar idealizada por Vargas. Vale ressaltar que tais preocupações não eram, absolutamente, descabidas se tivermos em mente que elas estavam contidas no projeto mais amplo de construção de um Estado nacional forte e organizado. Sendo a família concebida como a base do edifício social era evidente que, para se levar a bom termo este projeto, uma das providências mais urgentes seria a de se proteger e preservar a família, segundo os propósitos do novo regime. O resultado de todos os estudos e discussões sobre o assunto foi o decreto de nº 3.200, de 19 de abril de 1941, o qual—por desencontro de opiniões entre Capanema e outros assessores de Vargas, e que aqui não cabe ser comentado —acabou saindo pelas mãos do ministro da Justiça Francisco Campos.

O decreto, que dispunha "sobre a organização e proteção da família" determinava, além da obrigatoriedade do exame pré-nupcial para colaterais de 3º grau, do casamento religioso com efeitos civis e da gratuidade do casamento civil, a concessão de uma série de benefícios como abonos mensais às famílias de prole numerosa sem as condições necessárias ao seu sustento, reduções de despesas com taxas de matrícula para famílias com mais de um filho, preferência aos funcionários casados com maior número de filhos em nomeações e admissões no serviço público, etc. Embutido nestas medidas estava um aspecto crucial do plano de desenvolvimento de uma política demográfica: a concepção (rebatida por alguns setores, é verdade) de que o aumento quantitativo da taxa populacional seria um meio eficaz de engrandecimento e fortalecimento da Nação, ainda que avassalada por inúmeros problemas de ordem social e econômica. Uma população numericamente elevada garantiria ao Brasil o poder político e militar, o respeito e o reconhecimento das outras nações2. Prova disto são os diversos documentos que se encontram no Arquivo Gustavo Capanema com estudos encomendados sobre política demográfica, compilação de leis italianas sobre amparo à família, maternidade e infância e relatórios de viagens de funcionários do alto escalão do governo, enviados ao Exterior (Itália, Áustria, Suíça) para ver in loco como funcionavam instituições públicas e particulares de assistência materno-infantil.

Na seqüência destas medidas ocorrem alterações no decreto de 1941, conhecido como o Estatuto da Família, e que se estendem até 1943. A primeira destas alterações consistiu em acrescentar ao artigo que determinava a preferência aos casados com maior número de filhos, para nomeações e promoções no funcionalismo público, também os funcionários solteiros com filhos reconhecidos. O ministro Capanema, pressionado pelos católicos, tenta anular o novo dispositivo. A Igreja opunha-se a essa mudança pois, aos seus olhos, ela significava estímulo e regalias a funcionário em situação eticamente irregular. O Departamento de Administração do Serviço Público (DASP), por ordem de Vargas, manifesta-se favoravelmente, em longo parecer, à manutenção do dispositivo e não deixa de assinalar sua estranheza diante dessa discriminação dos católicos, entre famílias constituídas legalmente ou não. O governo estadonovista, segundo o parecer, estava empenhado em amparar e beneficiar as famílias, quaisquer que fossem elas e, além disto, tal dispositivo encaixava-se no âmbito das medidas que estavam sendo definidas para regulamentar a situação de filhos reconhecidos, equiparando-os aos legítimos. Várias entidades como a Associação dos Pais de Família, a Confederação dos Operários Católicos, o Centro Dom Vital, a Coligação Católica Brasileira, entre outras, engrossam o coro dos descontentes com o dispositivo, mas não chegam a nenhum resultado concreto.

Um outro decreto, de 1942, evidencia essa disposição do governo: estabelece o direito de legalização de "filhos adulterinos" havidos após o desquite dos cônjuges provocando, novamente, reações de intenso desagrado. Para a hierarquia eclesiástica de São Paulo, conforme pastoral publicada, o que o governo pretendia com tal medida era, de um lado, consagrar o adultério e, de outro, o divórcio. "... afirmar que, concedido o desquite, já não haverá adultério, é insinuar que não existe mais o vínculo, é introduzir sub-repticiamente o "divórcio a vínculo" que aí está encubado". O episcopado vai mais além condenando o que ele chamava de "pseudo-casais", ou seja, aqueles unidos ao arrepio das leis civis e religiosas e exortando as "famílias paulistas sérias e dignas" a trancarem suas portas, no sentido de evitar qualquer tipo de aproximação com "semelhantes pares". Os bispos pediam encarecidamente que não fossem convidados para festas ou cerimônias públicas onde houvesse a presença de "casais de tal jaez", para não serem submetidos a nenhum tipo de constrangimento3.

Apesar de toda a grita, o governo manteve os decretos, o que parece demonstrar que ele estava realmente empenhado em dar continuidade ao cumprimento do seu compromisso constitucional de amparo a família e à prole. Parece significar, igualmente, que a influência da Igreja, tanto na sociedade quanto nas decisões do governo, nos idos de 1942, já não era tão forte. A morte de dom Leme neste ano provocou, na verdade, um verdadeiro "colapso de liderança" (Delia Cava, 1975).

Como já foi referido, além do tema da família propriamente dita, também analisei questões ligadas à mulher e à prole. Com relação à mulher, evidencia-se o importante papel que ela representa na família como esposa, dona-de-casa e mãe. Daí a relevância de se estruturar sua educação, de modo a atingir esses objetivos. Um dos problemas muito discutidos entre católicos e escolanovistas foi a co-educação — a educação comum a ambos os sexos —combatida pelos primeiros como nefasta para a formação adequada da mulher, na fase da adolescência. Demonstrando partilhar dessa convicção, o ministro Capanema chega a sugerir, no texto da lei da Reforma do Ensino Secundário de 1942, que os colégios mistos organizassem classes separadas para a educação das meninas. Um outro dado é o fato de, nesta mesma reforma, a educação doméstica ter sido incluída como disciplina no curso secundário, o que significou para muitos educadores, o seu "enobrecimento", já que ela era dada, até então, em escolas profissionais destinadas à formação de mão-de-obra feminina. Quanto ao trabalho feminino é importante ressaltar a questão da participação feminina no apostolado social da Igreja. Enquanto no governo estadonovista, o ministro Capanema manifesta-se pela "restrição progressiva" ao trabalho feminino, por entender que ele se constituía em um dos meios de "desintegração" da família, a Igreja, também contrária ao trabalho da mulher fora do lar, chama o laicato feminino para participar da organização e desenvolvimento de suas obras de assistência social. Vale lembrar que o serviço social, dentro do plano da Ação Católica no Brasil, começa a ser organizado nessa época e conta com elevada participação feminina. Mais tarde, o serviço social evolui, transforma-se em curso superior e começa a receber outro tipo de clientela. Mas, em suas origens, são as moças e senhoras das elites que dele participam e que, sob a direção da Igreja, vão trabalhar no meio operário para aí levar a doutrina e a moral cristã, como antídoto à proliferação das idéias socialistas e comunistas e como forma de elevar as condições físicas e econômicas dos trabalhadores (LEME, 1931, p. 328).

Na esfera das questões ligadas à infância e a juventude, o Estado teria a seu encargo, pela Constituição de 1937, o dever de assisti-las e defendê-las. Isto se traduz, por exemplo, nos esforços para a criação do Departamento Nacional da Criança, nas diligências destinadas a regulamentar a situação do menor trabalhador e na organização de sua formação profissional, na indústria (SENAI) e no comércio (SENAC).

Quanto à formação geral da infância e da juventude, é significativo o papel de destaque que, gradualmente, o Exército vai assumindo. De uma postura de "vigilante observador" dos acontecimentos nacionais (nos tempos do Império e da Primeira República), ele passa a buscar maior participação no seio da sociedade civil, o que se dá a partir da Revolução de 30 e como decorrência da mudança da cúpula dirigente, que instaura e concretiza o processo de reorganização interna das fileiras do Exército. Figuras de destaque da cúpula são os generais Eurico Gaspar Dutra, que ocupará depois a pasta da Guerra, e Góis Monteiro, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, os quais se empenham em mudar a antiga imagem de um Exército indisciplinado e envolvido em revoltas (o tenentismo, por ex.) restabelecendo a ordem, a hierarquia e a disciplina na caserna.

Revistas militares como Nação Armada e Defesa Nacional demonstram, por meio de suas colunas que, no plano da reorganização interna da corporação militar, a educação tem um papel estratégico. Tratava-se de reformular métodos e programas para a formação dos efetivos nas escolas e colégios militares e superar o atraso da prática educacional do Exército, em relação às modernas correntes pedagógicas. Mas também significava o interesse do Exército em ser co-participante dos rumos a serem definidos para a educação geral da coletividade brasileira. Esta questão ficou bastante evidenciada quando o Ministério da Educação e Saúde enviou a vários setores da sociedade de todo o país um inquérito, cujas respostas deveriam direcionar os trabalhos da comissão encarregada de elaborar o Plano Nacional de Educação. Mesmo sem ter sido "oficialmente" convidado a responder, o Exército manifesta seu interesse, através de suas revistas, e chega a organizar um subinquérito a ser respondido pela classe militar, cujo resultado representaria a colaboração dos militares ao futuro Plano Nacional de Educação. Em suma, declarações que antes procuravam justificar o desejo de participação de um setor que, tradicionalmente, estivera distante de uma área que não era de sua estrita competência — a educação do povo brasileiro — cederam lugar a manifestações claras da necessidade de intervenção e controle do sistema educacional, à medida que essa educação, enquanto fator preponderante na edificação do novo Estado brasileiro, passava a ser encarada como problema de segurança nacional. As manifestações nesse sentido iam de um pólo a outro, de posições mais moderadas às mais extremadas. Nestas últimas incluía-se, por exemplo, a necessidade de radicar o espírito militar na sociedade, desenvolver nas crianças e nos jovens uma "mentalidade militar" que, segundo Azevedo Amaral, se constituiria em um fator de segurança e de solidificação da nacionalidade4. Do ponto de vista da prática pedagógica, o governo de Getúlio Vargas adotou dois caminhos: a organização da Juventude Brasileira e a instrução pré-militar, esta última um exemplo concreto da intromissão do Exército no sistema educacional civil.

No caso da Juventude Brasileira havia, no projeto inicial, de autoria de Francisco Campos, objetivos muito 'claros de agremiar a juventude em uma entidade paramilitar. Mas, no andamento das discussões em torno do projeto, verificou-se que, dessa maneira, ela iria, fatalmente, colidir com a estrutura e organização do próprio Exército, já que criaria um órgão paralelo que poria em risco a autonomia e o monopólio do organismo militar nessa área. Em 1940 foi criada a Juventude Brasileira, que marca o rompimento definitivo com o espírito do projeto inicial e que transformou a arregimentação da mocidade brasileira em um "movimento cívico-educativo bem menos virulento", esvaziado de qualquer intuito militarizante e cujas atividades resumiam-se na participação em solenidades, desfiles em datas cívicas, homenagens a vultos e símbolos nacionais (Bomeny, 1981). Em 1945, no fim do Estado Novo, dois decretos revogam toda a legislação referente à Juventude Brasileira.

A instrução pré-militar teve o seu próprio curso de evolução. Inúmeras leis e instruções foram baixadas a partir da década de 30, com vistas a organizar o ensino militar nas fileiras do Exército. Em 1935, o presidente Vargas e o então ministro da Guerra João Gomes Ribeiro Filho, aprovam um regulamento no qual se introduzia "a instrução militar nos institutos de ensino e associações em geral". Implantado o Estado Novo, a instrução pré-militar passou por significativas alterações no modo pelo qual era concebida, refletindo a ampliação da ingerência do Exército no sistema educacional brasileiro, além da intenção de setores do governo de organizar a infância e a juventude em um movimento de cunho militarizante. A instrução pré-militar seria dada nas escolas, em horário de aulas, por instrutores do próprio Exército, para alunos do curso secundário, estendendo-se depois também aos do primário, configurando a ampliação da influência militar sobre as novas gerações, educando-as em normas de maior disciplina, obediência, civismo e sentimento coletivo.

A longa marcha percorrida pela instrução pré-militar, os vários estudos e projetos que movimentaram, pelo menos, três ministérios, não foram suficientes para prever certos problemas burocrático-administrativos surgidos ao longo do tempo e que acabaram por provar a inadequabilidade desse tipo de ensino, nos termos em que tinha sido estabelecido. O Decreto-lei nº 9331 do novo presidente Eurico Gaspar Dutra, datado de 10.06.46, declarou extinta, a partir de 1947, a instrução pré-militar em todo o território nacional.

Concluindo, entre Exército, Igreja e governo do Estado Novo havia propósitos coincidentes: ordem, disciplina, respeito à hierarquia constituída, combate ao individualismo, exaltação do sentimento patriótico, culto aos deveres cívicos, oposição ao "pacifismo ingênuo", respeito às tradições, às instituições brasileiras e, sobretudo, respeito, defesa e amparo à família, base do edifício social, todos estes elementos configurados como mecanismos de construção da nacionalidade e de estruturação da nova ordem social.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1. Extraído do diário pessoal do Pe. Leonel Franca, citado pelo Pe. Luís Gonzaga da Silveira D'Elboux, S. J.
2. Esta era a tese defendida por Mussolini na Itália.
3. Pastoral Coletiva do Episcopado da Província Eclesiástica de São Paulo sobre o jogo, a dignidade da família e a defesa do Brasil, p. 430.
4. Azevedo Amaral, O Exército e a educação. p. 29.