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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.1 n.1 Barbacena dez. 2003

 

ARTIGOS

 

Assunção múltipla de substâncias e comorbidade psiquiátrica

 

Multiple assumption of substances and psychiatric comorbidity

 

 

Carlo ViganòI*; Roseli Cordeiro Pereira (Tradução)

IAssociação Mundial de Psicanálise - França
IICausa Freudiana de Paris - França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo, inédito em português, aborda a questão do poliabuso de substâncias psicoativas, considerando as diversas interrogações que surgem na "clínica das dependências". O texto articula as características do poliabuso de substâncias com as mudanças culturais e sociais contemporâneas. Sugere que a condução do tratamento deve ser realizada a partir de dois níveis de diagnóstico: o sintoma social e sintoma subjetivo.

Palavras-chave: Clínica das dependências, Diagnóstico, Psicanálise, Psiquiatria e cultura.


ABSTRACT

This article, unpublished in Portuguese, approaches the question of overabuse of psychoative substances, considerating the many interrogations that exist on the "dependences clinic". The text articulates the caracteristics of the overabuse of substances with the contemporary cultural and social changes. It sugests that the treatment must be conduct based on two levels of diagnostic: the social symptom and the subjective symptom.

Keywords: Dependences clinic, Diagnostic, Psychoanalysis, Psychiatric and culture.


 

 

Poliabuso e comorbidade

Iniciamos com uma citação de Galanter e Kleber:

"O uso agudo e crônico de substâncias psicoativas pode ter efeitos profundos sobre o funcionamento cognitivo, o humor, os processos do pensamento e o funcionamento da personalidade. Na ausência de uma história de uso de substâncias, muitos desses efeitos poderiam ser indistingüíveis, só com base nos sinais e nos sintomas, dos distúrbios psiquiátricos maiores do Eixo I ou II. Se bem que as síndromes induzidas por substâncias deveriam ser classificadas como distúrbios mentais orgânicos, um acurado diagnóstico é problemático..." (p.36)

De fato agregam, em todo caso de dependência por substâncias, "taxas elevadas de distúrbios psiquiátricos não orgânicos".

Procuraremos demonstrar como, querendo ou não querendo, não podemos evitar dar um grande relevo "aos sinais e aos sintomas". Por dois motivos: 1. ainda se os sinais são valorizados só depois do uso de substâncias, isso não corta pelo meio a casualidade psíquica desse último; 2. a difusão sempre maior de uma assunção múltipla de substância contrasta, paradoxalmente, com a idéia de um distúrbio mental orgânico.

Iniciamos por esse segundo: ultimamente, a clinica das toxicodependências encontra-se a afrontar o fenômeno do poliabuso que coloca em crise a supremacia da substância na definição nosográfica da doença. O interrogativo clínico que isso põe vai tocar no núcleo da correlação entre abuso e psicopatologia, vale dizer, as relações entre a substância e o assim dito craving.1 Isto é: "se usam mais substâncias porque não se tem um desejo (indiferenciado) mais potente, ou por que algumas substâncias modulam (reduzem ou potencializam) o craving para outras, sendo, portanto, subordinadas a estas?"2

Para responder a esse interrogativo, vamos considerar diversos níveis de causalidade no poliabuso:

1. uso de uma substância (secundária) para potencializar os efeitos da substância primária;

2. atenuação dos efeitos (indesejáveis) da substância primária ou da abstinência dela;

3. substituição da substância primária pela secundária;

4. modalidade "normativa"3 de consumo de substâncias;

5. Garbage head synndrome4

Nesse ponto, devemos fazer uma consideração acerca do característico acavalar-se de interrogações que investe a clínica das dependências. Nos parece que isso seja devido a duas ordens de fatos, entre eles articulados. Primeiro, a rápida evolução dos modelos de uma clínica que é ela mesma "nova", de recente afirmação: do fumo e da heroína, passou-se a substâncias sempre menos ideológicas e mais consumidas, incluso o retorno ao uso, juvenil, do álcool. Segundo, o estreito range5 da idade na qual substâncias como opiáceos, estimulantes e alucinógenos são comumente empregados.

A nossa proposta, que desenvolveremos no próximo parágrafo, é a de ler tais características colocando-as em relação com a mudança de organização cultural institucional produzidas com o 68. Em particular, com a inversão do comando superegoico transmitido pela sociedade, pela proibição do gozo pulsional (ideal da renúncia) à obrigação de gozar (mundialização e conseqüente liberalismo).

O estudo do poliabuso vem, portanto, a reinterrogar e a fornecer novos dados sobre estruturas subjetivas que estão em jogo na dependência, as quais não coincidem mais com o simples abuso. Dois dados nos parecem jamais associados:

1. em algumas circunstâncias, o craving por uma substância pode ser exclusivo do craving por uma outra (a exemplo, álcool e heroína); entretanto, para algumas substâncias, a coexistência parece a regra (a exemplo, canabinóides e opiáceos).

2. o uso contemporâneo de duas substâncias parece predispor ao uso múltiplo, isto é, ao acréscimo de uma terceira droga (em geral mais pesada e empenhativa), como se verificasse uma potencialização do craving.6

Um dado particularmente significativo é a mudança que o álcool está assumindo: de substância das mais antigas e duradouras entre as dependências, ele hoje vem representar o gateway inicial7, o facilitador, junto com o tabaco; assim como uma função de etapa intermediária parece que devemos atribuir à maconha e aos inalantes.

H. Pinamonti (2002) propôs reagrupar as formas de poliabuso segundo dois eixos, aquele neurótico e aquele boderline e psicótico. Esses dois eixos se diferenciariam em diversos níveis: estrutura subjetiva, diagnóstico DSM, classificação das dependências segundo Cancrini, gravidade, temperamento e caráter, experiências traumáticas, modalidade de assunção.8 Parece-nos útil acolher esse dado fenomenológico para desenvolvê-lo no que traz de índice clínico. Se de fato a "carreira toxicomânica" resulta ser portadora de elementos tais que põem um diagnóstico diferencial (que Pinamonti chama "psicodinâmica), então se poderá colocar sobre bases mais sólidas o problema da correlação entre abuso e sintomas psiquiátricos".

Agora nós procuraremos integrar o ponto de vista psicodinâmico com outros utilizados pela psicanálise estrutural, em particular o econômico da pulsão e o social da relação com a realidade e com o Outro simbólico. Nesta perspectiva de clínica integrada, os fenômenos clínicos ligados ao uso de substância devem levar em conta duas considerações:

1. o multiplicar das substâncias e suas diversas formas de assunção e de associação estão tornando a clínica das toxicodependências menos monolítica. O uso da substância com seus efeitos psicotrópicos não está mais no centro da definição da doença, que se decompõe em diversas formas ligadas aos diversos modos de interação entre o sujeito e as substâncias. Isso se explica ao se confrontarem as substâncias com os objetos "tradicionais" da pulsão (objetos parciais: oral, anal etc.). A substância é um objeto de consumo e vem repreencher o lugar do objeto pulsional, que se torna tal a partir de uma conotação negativa, de ser representação psíquica de uma falta. A droga, ao contrário, conota-se positivamente, vem ao lugar de uma representação psíquica, é uma solução que evita o percurso da angústia. A ela se liga um gozo que faz minorar o fantasma do inconsciente.

2. por esse motivo, o sintoma toxicodependente não se configura em uma clássica doença mental, não é percebido pelo sujeito como anormalidade (neurose) e nem coloca o sujeito fora da norma de comportamento (psicose). Ao mesmo tempo, nós podemos prever que a captura do desenvolvimento psicológico, assim como as compensações obtidas pelo uso da substância, tornam o sujeito toxicômano empobrecido mentalmente e mal identificado. Esse é o motivo pelo qual falar de comorbidade "psiquiátrica'' pode resultar desviante, ao se pegarem como parâmetros distúrbios psiquiátricos clássicos, isto é, aqueles definidos nosograficamente em uma era pré-toxicômana.

O saber da língua exprime muita bem essa estrutura quando, em inglês, usa o significante addiction para indicar a toxicodependência, ou melhor, a dependência mais em geral. É evidente a homofonia com addition e, portanto, o significado da droga como qualquer coisa que vem a completar o sujeito, a repreencher materialmente a falta (desejo) que assim não deverá se encontrar uma própria (subjetiva) representação: uma adição que comporta um déficit cognitivo.

 

O duplo diagnóstico

Antes de expor nosso modelo que reporta o problema da comorbidade a um contexto de clínica integrada, devemos ver como que nunca um determinado modelo não é rapidamente evidenciado.

As razões são de natureza institucional (a investigação clínica não é nunca "pura", de fato nascem das exigências terapêuticas, e a terapia é organizada a partir da distribuição social dos tratamentos: basta pensar no enorme retardo com o qual a terapia psiquiátrica foi libertada do sedimento histórico do lugar de tratamento, o manicômio que à sua volta havia herdado os espaços dos leprosários para contaminados!).

Ate quando o modelo prevalente para a doença mental for o modelo moral, herdado da psiquiatria oitoscentesca e financiado pela americana do século sucessivo, "o álcool e as substâncias de abuso eram consideradas causas de muitos dos problemas psiquiátricos e sociais. Os distúrbios psiquiátricos vinham descritos como secundários a todos os problemas de abuso de substâncias''. É só recentemente, nos anos 70, que a toxicodependência força a sociedade ocidental a preparar lugares de tratamento, separados daqueles psiquiátricos. Ainda uma vez, o lugar institucional se reflete sobre a investigação, e o resultado foi o de pensar a clínica da toxicodependência separadamente daquela da doença mental.9

Na Itália, foi aprovada uma lei que veio ratificar essa separação, a Lei 685, de 1975. Por um certo período, assistimos a uma recusa por parte da psiquiatria a tratar de pacientes que cometessem abuso, seja de álcoo1 ou de outras substâncias.

Durante esses trinta anos, entre as pessoas que se ocupavam de toxicodependência, amadureceu progressivamente uma recusa do modelo moral e foi se consolidando a idéia de uma síndrome da toxicodependência, portanto de uma doença que não é simplesmente o êxito de um abuso hedonístico das substâncias, mas que tem pressupostos subjetivos de ordem biopsicossocial. O primeiro passo era feito e consistia no reconhecer uma multifatorialidade à raiz do comportamento, não tanto no sentido causal, quanto de fatores de risco. Andava-se consolidando a convicção de que existia uma tipologia específica do toxicodependente, e isso sobre duas versões tradicionais da clínica. A primeira, que há um antecedente nos Alcóolicos Anônimos, que vêem na abstinência a solução de todos os problemas, incluídos os sintomas psiquiátricos correlatos. A segunda, que tem ao contrário um precedente na psicanálise americana dos anos 3010, vê como determinante a personalidade "pré-mórbida".

A linha de investigação (e de formalização clínica) que deu corpo a essas intuições tem, porém, seguido uma trajetória totalmente deferente desses antecedentes. A especificidade foi investigada na direção do afinamento dos sistemas nosográficos (é também esta, o ontologismo da doença, uma hereditariedade oitoscentesca, sobre a qual retornaremos no próximo parágrafo). Nessa direção, o esforço desses anos foi o de elaborar uma definição objetiva das patologias ligadas ao uso de substâncias. Mais precisamente, devemos dizer que a tendência não é a objetividade (que é um ideal muito filosófico), mas a produção de uma evidência (uma linguagem compartilhada); essa, sim, é movida em três direções:

1. sociológica, que distingue uso ilegal, uso não médico e uso não aprovado (unsanctioned);

2. funcional: uso impróprio (misuse), uso perigoso (hazarrdous), uso disfuncional;

3. clínica: abuso, uso danoso, dependência, intoxicação, abstinência.

Em particular, o CID emprega o termo "uso danoso", enquanto o DSM (a partir do IV), aquele de "abuso"; ao passo que, para definição de "dependência", ambos os sistemas dão um valor discriminante ao uso compulsivo é necessário, mas não suficiente à tolerância e abstinência.

Neste ponto de investigação. ambos os sistemas diagnósticos permitem e prevêem os casos de diagnósticos múltiplos, mas sem dar-lhes um peso nosográfico e clínico particular.

Quem se ocupa de toxicodependentes não pode se contentar com um diagnóstico múltiplo, e é por isso que pegou pé a identificação de um filão clínico específico sob o nome de "duplo diagnóstico". Na realidade, trata-se de responder à exigência atual da clínica das toxicodependências, sempre menos ancoradas ao puro abuso de substâncias, ao contrário, carregada de aspectos psicodinâmicos que interagem com a droga. Parece-nos que o tema do duplo diagnóstico é sinal de uma etapa fundamental e necessária da investigação clínica e, sobretudo, do tratamento dos toxicodependentes.

Ele de fato assinala a necessidade de uma integração multidisciplinar no tratamento.

Ao mesmo tempo, assinalamos a necessidade de superar essa formulação, que contém alguns pontos débeis, quais sejam:

1. o primeiro é ligado a um limite interno ao sistema diagnóstico sobre base observativo-estatística. Isso reproduz a lógica classificatória que, se exibe uma utilidade em organização dos serviços e da investigação epidemiológica, tende, porém a colocar em sombra a singularidade do caso clínico e, portanto, a individualização de uma estratégia terapêutica mirada. A aderência do sujeito (demanda) e a aliança terapêutica (transferência) exigem uma construção do caso (anamnese, história social e familiar, psicossomática) que vai além e requer uma maior codivisão de cultura clínica (equipe) e é transnosográfica;

2. em seguida, considerar aqui que as categorias dos sistemas nosográficos correntes prescindem largamente de considerar a transformação que o uso de substâncias produziu na forma dos sintomas psíquicos, como é testemunhado pelo fato que se continuam a defini-los "psiquiátricos";11

3. também no tratamento, o duplo diagnóstico não é resolutivo, e isso, de fato, prelude a um duplo tratamento. Sem contar os conflitos institucionais que tal fato comporta (duas especializações? Uma genérica e outra especialística? uma médica e a outra social?, etc.), resta sem resolver o problema da condução do tratamento e da leitura dos atos e dos sintomas do sujeito, mão-a-mão que se produzem.

Para que na prática um tratamento integrado tenha séria possibilidade de resolutividade se deverá, portanto, afrontar e tratar as barreiras profissionais e ideológicas que, muitas vezes, colocam obstáculos à colaboração na rede dos serviços.

Por isso, decidimos correr o risco de colocar em confronto uma visão psicanalítica da toxicodependência com a exigência social do tratamento do duplo diagnóstico, a custo de perder qualquer coisa da pureza (ou do mistério) da doutrina.

 

Com a comorbidade se abre um novo capítulo na clínica

Uma vez afirmadas as estreitas conexões entre uso das substâncias e doença mental, resta realizar um passo ulterior que poderá nos oferecer as razões estruturais dessa conexão. É um passo que investe profundamente a concepção do distúrbio mental, e que a psiquiatria não soube realizar. Trata-se de dar uma explicação ao fenômeno que as novas classificações psiquiátricas têm posto em evidência e isso é a contínua e sempre mais acelerada modificação das formas de sofrimento psíquico. As neuroses cederam o passo a distúrbios de personalidade narcisísticas, borderline, histriônicas, etc. As psicoses não têm mais na esquizofrenia seu paradigma, enquanto tem sempre mais importância a doença ciclotímica. As perversões sexuais são sempre mais toleradas como variantes normais, enquanto se impõe a era toxicomânica e dos abusos alimentares.

Como explicar esses remanejamentos da psicopatologia e, sobretudo, seu andamento "pós-moderno?" Pode-se encontrar uma pista na intuição freudiana que coligava a neurose, nas formas por ele observadas, com o "mal-estar da civilização". A sua era, uma sociedade "disciplinar", impunha uma certa renúncia à satisfação da pulsão em troca da ordem e da solidariedade. O sujeito podia se submeter interiorizando o Outro social como supereu inconsciente, como Ideal. O inconsciente não é como o discurso desse Outro, que o torna interlocutor na história privada do sujeito. Os sintomas neuróticos constituem o compromisso entre a versão interiorizada do discurso do Outro e a exigência de satisfação pulsional do sujeito. O ponto freudiano dessa operação era a função normativa do pai (Édipo).

Hoje, o discurso social está radicalmente mudado, em tempos muito acelerados, enquanto grande parte da psicanálise ficou ancorada na explicação freudiana da neurose. Provamos, ao invés, manter como válida a hipótese da relação entre formas do discurso social e o Outro com o qual se confronta o sujeito na sua formação. O comando superegoico foi invertido: da proibição passou ao imperativo de gozar, da sociedade dos pais passou a um mundo onde é para todos a mesma coisa (ser feliz!). O declínio dos ideais mostra aquilo que Freud nos ensinava: a inventar o pai é o neurótico. Acontecendo menos as formas da função importante, também as formas do mal-estar e da patologia se modificam. Vejamos sumariamente como.

Qual escolha se pode supor atrás dos diversos quadros, dos diferentes diagnósticos duplos? Quais pontos de fragilidade e de compensação são interessantes no uso de substâncias? Para responder, devemos fazer um ulterior pequeno passo: a função do pai não é só a de poder dizer não (ao gozo masoquista ou destrutivo que pode chegar a ser insuportável para o ser falante, diferente que para o animal). A lei proíbe, mas é também o instrumento para abrir uma ultrapassagem á recuperação do gozo. Essa ultrapassagem é uma construção imaginária do inconsciente: o fantasma. O fantasma é uma forma de limpar, recolher todos os restos, as sobras (objetos parciais) da proibição paterna e os conservar como um recipiente das satisfações do sujeito. Esse recipiente que chamamos libido usa como própria sede os pontos do corpo (zonas erógenas), em particular aqueles que permitem uma passagem entre interior e exterior.

Então, a droga (como a comida na anorexia) obedece só em parte a essa lógica de construção fantasmática (a exemplo, toda droga é o resto de uma terapia em desuso); a proibição pode concorrer a um atrativo inicial, mas sempre mais o que conta é de ordem real, a química tende a colocar o simbólico da lei em curto-circuito. A lei edípica, centrada sobre a função do falo como regulador da diferença entre os sexos, não vem transgredida, mas neutralizada e evitada mediante a droga. Paradoxalmente, essa é uma via para obedecer ao comando do supereu social. Pode-se dizer que, a esse nível, o sintoma toxicodependente seja mais um sintoma social que do sujeito.

Entretanto, a contínua atualização dos quadros mórbidos efetuados pelos sistemas diagnósticos não é o reflexo, fenomenológico, de uma mudança estrutural da formação do sintoma que responde a um enfraquecimento das funções metafóricas da linguagem. No simbólico, a função fálica que constitui o mediador entre o Outro público e o privado, próprio a cada sujeito, vem rodeada por mediadores sociais, que são os objetos de consumo. O discurso que liga o sujeito ao seu Outro se reduz assim a uma holófrase, o objeto prèt-à-porter supre a função paterna e conseqüentemente, o fantasma inconsciente se transforma da relação criativa do sujeito com seus objetos (desejo) a um tipo de identificação com o objeto. O objeto, ao invés de ser uma solução subjetiva da falta, torna-se um enchimento que evita o impacto traumático com a falta (privação, frustração, abandono).

Se essa suplência resolve imaginariamente o problema do desejo, não resolve a outra função do pai, a de poder dizer não ao excesso de gozo, à sua face destrutiva e mortífera. Isso determina um aumento da gravidade dos distúrbios e, sobretudo, uma extrema fragilidade da solução sintomática adotada pelo sujeito, sempre pronta a se desfazer e a deixar o lugar a passagem ao ato.12

Esse novo estilo das formas clínicas que pegam sempre mais o lugar da neurose freudiana compreende o uso de substância, a ponto de transformar também os quadros mórbidos clássicos da psiquiatria. É um êxito paradoxal da era farmacológica na saúde mental, que pode do mesmo modo ser lida como uma compensação da progressiva perda do poder do Édipo com o poder da química. É claro que não pode ter sido uma substituição indolor. O preço que o sujeito deve pagar é uma progressiva dificuldade de identificação, uma fragilidade da representação de si (das próprias necessidades e dos sentimentos) no emprego discursivo da palavra e, portanto, também no colocar a própria demanda de ajuda.

Podemos individualizar três características principais desta nova clínica:

1. diferentemente que na neurose, o sintoma não se manifesta como corpo estranho para o sujeito, a debilidade do eu faz-se que ele não resulte egodistônico. Ele perde ainda a característica de ser singular, de fazer sentir o sujeito "diferente", ao contrário, constitui um fator de agregação de grupo, fornece ao sujeito uma identidade.

2. no manifestar-se clínico da patologia, há um andamento à crise, explosiva e muito sem sinais premonitórios. A patologia se manifesta como imprevista impossibilidade de controlar as emoções (pânico) e com passagens ao ato (muito violentas). A especificidade e o isolamento dessas crises torna de difícil utilização o instrumento do diagnóstico (pelo menos na urgência); naquele momento o acolhimento terapêutico deve ser imediato (cada adiamento faz perder quase sempre o gancho, assim dito drop-out).

3. no caso em que a estrutura subjetiva fosse de tipo psicótico, a utilização das substâncias pode vir reconduzida a uma self-medication.13

Em síntese, pode-se dizer que nessas formas clínicas, a função reguladora do gozo (a elaboração do fator traumático) passa do Ideal ao sintoma, que tende, assim, a tornar-se um verdadeiro e próprio parceiro do sujeito. Essa última tendência deixada a si leva à cronificação, mas em um acompanhamento terapêutico atento pode se tornar a pista para uma estabilização. Trata-se de ajudar o sujeito a inventar-se um sintoma compatível com a vida social: mais uma vez se retorna à feliz intuição freudiana, para a qual o sintoma pode (por meio do trabalho que se desenvolve na transferência e que valoriza a competência do inconsciente) torna-se a fonte energética do tratamento.

A nossa linha de leitura leva a dar um novo sentido ao "duplo diagnóstico", transformando-o na exigência de um diagnóstico a dois níveis e em dois tempos: aquele social e aquele subjetivo. O condutor do tratamento será, portanto, um percurso que vai do sintoma social (o que perturba) ao sintoma singular (a construção do sujeito). Para realizar esse percurso, é evidente que não basta propor um acompanhamento de quem trata - e de quem é tratado, mas se torna necessária uma fase do tratamento a nível social (trabalho de grupo, utilização da rede).

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: cvigano@tin.it

Recebido em 6/11/2003

 

 

*Psiquiatra e psicanalista radicado em Milão, é membro da Associação Mundial de Psicanálise e da Causa Freudiana de Paris. Integrante da Comissão da Saúde Mental da Associação Mundial de Psicanálise.
1Ansiando por... (N. do T.) Esse termo indica uma evidência: a resposta à abstinência não é unívoca, existe uma clínica diferencial da abstinência, que vai da síndrome da abstinência ao craving do desejo.
2Janiri-Hadjichristos, p. 203.
3Entendem-se as formas de associar substâncias que têm uma difusão epidêmica à moda (a exemplo, a associação de álcool e maconha nos EUA no início dos anos 90).
4Síndrome da cabeça à sujeira, que pode atribuir a um âmbito motivacional primário ou secundário, à psicopatologia. Nesse propósito, já podemos notar uma linha de leitura da correlação "psiquiátrica", que vê a substância como indicador de uma economia subjetiva.
5Alcance (N. do T.).
6JANIRE, de Risio, Ed. Universo, p. 206.
7Passagem (N. do T.). D.B.RANDAL, Stages in adolescent involvement in drug use, Science, 1975, 190-192.
8Tabela.
9Alguns autores têm falado de uma "retirada psiquiátrica". Ver NIZZOLI, U. Pegar-se tratamento dos toxicodependentes. Itália: Masson.
10Ver, a exemplo: KNIGHT, R. P. (1937). The dynamics and treatment of chronic alcohol addiction, Bulletin of the menninger clinic I, p. 233-250.
11"Cada teoria contém uma classificação. Esse aforisma, velho como a medicina, é válido também para a interface entre distúrbios psiquiátricos e abuso/dependência de substância." (Fioritti e J. Solomon, p. 95). Somos de acordo sobre o aforisma, mas nos parece que esteja ainda por construir a teoria das interfaces e que por isso a classificação proposta pelos autores tenha um valor do tipo estatístico, mas não de orientação clínica.
12Podemos encontrar eco desses dois modos da função paterna no esquema cognitivista do duplo diagnóstico, que opina muito acerca dos "fatores de risco" (pai débil) e chegam às "respostas sociais" (supereu pré-edípico).
13Fioritti e J.Solomon, p. 36.

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