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Vínculo

versión impresa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.19 no.1 São Paulo ene./jun. 2022

http://dx.doi.org/issn.19982-1492v19n1a4 

ARTIGOS

https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v19n1a4

 

A história pregressa da criança e o processo de revelação da adoção, na perspectiva de pais adotivos

 

The child's history past and the adoption revelation process, from the perspective of adoptive parents

 

La historia pasada del niño y el proceso de revelación de la adopción, desde la perspectiva de los padres adoptivos

 

 

Alinne Ferreira da Silva 1,I; Paula Orchiucci Miura2,II

ICentro Universitário Maurício de Nassau (UNINASSAU), Arapiraca, Alagoas, Brasil
IIUniversidade Federal de Alagoas, Maceió, Alagoas, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo teve como objetivo compreender a história pregressa da criança e o processo de revelação da adoção na perspectiva de pais adotivos. Trata-se de uma pesquisa de campo, qualitativa, descritiva e exploratória, que utilizou como método o estudo de caso. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com duas mães e um pai adotivos. Os dados foram analisados por meio da análise do conteúdo de Minayo. Observou-se que as histórias das crianças e/ou o acesso dos pais a essas, mostraram-se com questões muito particulares, mediante a disponibilidade dos órgãos de proteção em passar informações sobre esse passado. A maioria dos pais demonstrou interesse em revelar a adoção, entretanto, a questão apareceu vinculada a insegurança, posto que, além de não terem tido acesso a informações sobre a história pregressa de seus filhos, os pais demonstraram dificuldades em lidar com o passado da criança, dados que revelam a importância do psicólogo para auxiliar adotantes na elaboração de conteúdos vinculados a experiência adotiva, dentre eles, suas próprias angustias vinculadas ao medo de perder seu filho, em virtude da camuflagem: família biológica x família adotiva.

Palavras-chave: revelação da adoção, famílias adotivas, história pregressa.


ABSTRACT

This article aimed to understand the child's past history and the process of revelation of adoption from the perspective of adoptive parents. It is a research field qualitative, descriptive and exploratory, which used the case study as a method. Semi-structured interviews were conducted with two adoptive mothers and fathers. The results were analyzed through of the analysis of the content of Minayo. It was observed that the children's stories and/or the parents' access to them, showed themselves with very particular issues, due to the availability of the protection organs, associated with the cases, to pass on information about this past. Most parents showed interest in revealing the adoption, however, the issue was linked to insecurity, since, in addition to not having access to information about their children's previous story, parents showed difficulties in dealing with the child's past, data that reveal the importance of the psychologist to assist adopters in the elaboration of contents linked to the adoptive experience, among them, yours anxieties linked to the fear of losing their child, due to the camouflage: biological family x adoptive family.

Keywords: adoption revelation, adoptive families, past history.


RESUMEN

Buscamos entender cómo los padres adoptivos significan la historia pasada de los niños y su revelación. Se trata de una investigación de campo cualitativa, descriptiva y exploratoria, que utilizó el estudio de caso como método. Se realizaron entrevistas semiestructuradas con dos madres y padres adoptivos. Los datos fueron analizados a la luz del análisis del contenido de Minayo. Se observó que las historias de los niños y/o el acceso de los padres a ellas, se mostraron con problemáticas muy particulares, debido a la disponibilidad de los órganos de protección, asociados a los casos, para transmitir información sobre este pasado. La mayoría de los padres mostraron interés en revelar la adopción, sin embargo, el problema parecía estar relacionado con la inseguridad, ya que, además de no tener acceso a información sobre la historia pasada de sus hijos, los padres demostraron dificultades para lidiar con el pasado del niño, datos que revelan la importancia del psicólogo para ayudar a los adoptantes en la elaboración de contenidos vinculados a la experiencia adoptiva, entre ellos, sus propias ansiedades ligadas al miedo a perder a su hijo, debido al camuflaje: familia biológica x familia adoptiva.

Palabras clave: revelación de adopción, famílias adoptivas, historia pasada.


 

 

Introdução

No campo da ciência psicológica uma das perspectivas para compreender a palavra "revelar" envolve fazer conhecer àquilo que é ignorado/desconhecido. Abreu (2011) aponta essa concepção, no que tange ao processo de adoção, como a primeira 'regra ética' de uma família adotiva, afirmando que "Enfrentar a verdade pressupõe assumir a adoção e aceitá-la em todos os seus aspectos, bons e maus, favoráveis e desfavoráveis" (Abreu, 2011, p. 8). Entretanto, a autora (2011) afirma que essa concepção está intrinsicamente aliada a história de vida e momento sociocultural, dos envolvidos.

Nesse sentido, é necessário contextualizar histórica e socialmente uma discussão sobre aspectos subjetivos que envolvam a história de crianças adotadas e, por parte dos pais adotivos, que envolvam a revelação. Valandro e Baumkartem (2013) assinalam que corriqueiramente crenças históricas e culturais sobre as influências da hereditariedade são a motivação para preconceito com pessoas adotadas ou que aguardam por adoção. Na perspectiva dos autores (2013), esses preconceitos estão embutidos em discursos de que se a criança foi abandonada ou entregue à adoção, pode ser fruto de conflitos, resultado de prostituição materna, drogadição, criminalidade ou problemas de conduta por parte da família natural e pode trazer sequelas problemáticas dessa experiência inicial.

Weber (2009) retratam que por muitos séculos o nascimento de um filho considerado "ilegítimo" (advindos de relações consideradas impróprias/indevidas) era veementemente reprovado e ocasionava inúmeros abortos, infanticídios ou nascimentos clandestinos, que, por consequência, gerava o abandono infantil. Em cenário nacional, Paiva (2004) aponta que essas questões motivavam práticas de adoção, as quais, inicialmente, estiveram relacionadas a caridade (em que os considerados mais ricos prestavam assistência aos mais pobres), de modo que a permanência não formalizada, tinha cunho de mão-de-obra gratuita e, ao mesmo tempo, prestação de auxílio aos mais necessitados em concordância com o que pregava a Igreja. Em síntese, foi através da possibilidade de trabalhadores baratos e da caridade cristã, que a prática da adoção foi construída inicialmente no país.

Esses enquadres sociais e históricos impactam no modo como a história da criança, envolvendo a adoção, pode incorrer em ser negligenciada por parte da família que adota. Valandro e Baumkartem (2013) entendem que, a adoção ser revelada não significa, necessariamente, que há boa aceitação com essa história, pois, em alguns casos, o assunto é tratado como um tabu; gerando constrangimento e aflição na criança que, por consequência, evita voltar a falar sobre o conteúdo. Assim sendo, o desafio a ser encarado é desmontar ideologias que fomentam a defesa do puramente biológico; evitar camuflagem familiar, como ex.: família natural x família biológica; lutar contra preconceitos e superar adversidades são cotidianos. E, isto só poderá ser alcançado por adotantes que atuam de forma esclarecedora para com seus filhos, apresentando-os sua história de vida conforme a fase de desenvolvimento em que se encontram.

Além disso, respeitar a história pregressa da criança é garantir a essa o direito da própria existência. Visto que, como afirma Valandro e Baumkarten (2013), assim como as raízes de uma árvore, saber sobre suas raízes auxiliará a criança a dar sentido a sua existência e pertencimento à própria história de vida. Como também, auxiliará a quem adota, ter acesso a história inicial dos seus filhos, para que compreenda as experiências que a criança vivenciou e possa auxiliar nas demandas que ela apresentar.

Segundo Schettini, Amazonas e Dias (2006), é por meio da aceitação da história da criança, como parte da sua existência, que a família adotiva poderá estabelecer uma convivência imaginária com a família biológica e sair da lógica de oposição, seja por medo do retorno desses familiares naturais ou medo de ameaças de reapropriação somada ao sentimento de ter roubado a criança desses; aceitando a dupla filiação do filho e, por consequência, auxiliando a criança a lidar com a própria história de vida.

Contudo, Valandro e Baumkarten (2013) pontuam que esse processo depende da habilidade dos adotantes em compreender e valorizar as particularidades da criança/adolescente e, ser consciente, sobre os impactos do processo da revelação, na vida do adotando. Entretanto, haverá casos em que a habilidade dos adotantes poderá encontrar limitações, tanto em suas histórias de vida ou na luta frente os estereótipos sociais. Assim, faz-se importante a inclusão do profissional de Psicologia, nesse processo. Entendendo-se que essa ciência dispõe de recursos teóricos metodológicos capazes de auxiliar os sujeitos envolvidos no processo da adoção.

Por isso, como relevância social e acadêmica, este trabalho propõe produzir dados de pesquisa em Psicologia e, instrumentalizar, aos leitores, sobre a discussão no campo da adoção. Este artigo teve como objetivo compreender a história pregressa da criança e o processo de revelação da adoção da perspectiva de pais adotivos.

 

Método

Tratou-se de uma pesquisa qualitativa, a qual, afirma Minayo (2001), utiliza-se de metodologias compreensivas inseridas em campo, capazes de construir junto ao sujeito participante espaços de expressão, considerando suas particularidades vinculadas ao seu contexto social, cultural e histórico; descritiva, objetivando detalhar as características do fenômeno estudado e, por fim, exploratória, por ter sido desenvolvida à luz da participação de pessoas que vivenciaram a experiência prática da adoção.

Foi utilizado o uso de estudo de caso, exposto por Yin (2003) como um método facilitador na compreensão de dados complexos e singulares (socio, histórico e culturalmente). Como instrumento de pesquisa foi realizada entrevistas semiestruturada com os seguintes tópicos disparadores: experiências com o novo membro familiar, história natural da criança adotada e percepções sobre revelação da adoção.

Participaram da presente pesquisa três famílias adotivas, duas mães e um pai – Luana (34 anos, mãe do Heitor); Cris (14 anos, mãe da Yasmin); Eduardo (37 anos, pai do Vinícius)-, indicadas pela equipe judiciária da 1º Vara da Infância e Juventude de uma cidade alagoana, as quais já tinham seu processo adotivo tramitado em julgado, de modo a ter o poder familiar das crianças e/ou adolescentes adotados, condição que garantiu um espaço temporal significativo, de convívio para com o adotado. A realização dos encontros aconteceu em uma sala de atendimento clínico psicológico e, permitido pelos participantes, foi gravado com garantia do sigilo dos dados. Cada entrevista durou cerca de uma hora e trinta minutos a duas horas.

Para sistematização dos dados utilizou-se a análise de conteúdo proposta por Minayo (2001), por meio da categoria analítica (o processo de adoção na perspectiva dos pais adotivos) norteadora para compreensão do objeto de estudo em seus aspectos gerais, delimitação do problema desta pesquisa, seu campo teórico e contato em campo. E, categorias empíricas para classificar os conteúdos que foram produzidos em sua contextualização histórica, cultural e social e ordenar as unidades de contexto e de registro para classificar os dados. A interpretação dos dados se apoiou no referencial teórico psicanalítico de Donald Winnicott e na literatura acadêmica recente acerca da temática.

Trabalho submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da instituição responsável, conforme parecer de nº 16666219.2.0000.5013. Assegurados preceitos éticos elencados a pesquisa com seres humanos, respeito as recomendações do comitê de ética supracitado e do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), como também, o sigilo dos dados produzidos, através da preservação do anonimato dos participantes. Os sujeitos da pesquisa, caso necessitassem durante ou após a realização deste trabalho, de apoio médico ou psicoterapêutico, poderiam contar com apoio do Centro de Referência Integrado em Saúde, da cidade de realização.

 

Resultados e discussão

Com base no conteúdo das entrevistas foram identificadas categorias empíricas, para esse artigo, duas delas serão apresentadas e discutidas: "a história pregressa da criança" e "revelação da adoção: contar ou não contar?", em busca de refletir criticamente sobre as experiências que envolvem o contato dos pais adotivos com a história pregressa dos seus filhos e as perspectivas sobre o processo de revelação da adoção.

A história pregressa da criança

Valandro e Baumkarten (2013) assinalam que, assim como as raízes de uma árvore, saber sobre suas raízes auxiliará a criança a dar sentido a sua existência e pertencimento à própria história de vida. Para tanto, Winnicott (1953/2008) conscientiza que os pais adotivos devem ter acesso a história inicial dos seus filhos, posto que os primeiros dias e semanas da criança, são de extrema relevância para compreensão das perturbações que a criança sofreu. Ao mesmo tempo que questiona se os pais adotivos estão preparados para lidar com os fracassos que o lar inicial da criança proporcionou a esta.

Na família do Heitor, Luana não apresentou detalhes sobre a história do lar inicial dele. Luana não afirmou saber sobre esse conteúdo. Entretanto, Luana relatou que o único contato que teve com o passado do Heitor foi com seus familiares biológicos no dia em que participou de uma audiência jurídica para destituição do poder familiar a esses e consentimento do poder familiar a ela e seu esposo. Situação que gerou trauma em sua vida, posto que passou a sentir medo de perder seu filho, por ter sido questionada por familiares biológicos de Heitor: "você é de adoção, é?'" (SIC). Esta situação, desencadeou, segundo seu relato, medo de aproximações de desconhecidos. "Eu sei também que ele não volta mais pra ninguém! Ele é meu e é meu, mas assim eu acho constrangedor, de eu tá num lugar e ela (referindo-se a mãe biológica) tá! E eu estar com ele e ela vendo ele. Assim, eu tenho medo... tenho medo de uma aproximação, dela chegar perto. E eu vou fazer o quê uma hora dessa? De alguém vir brincar com ele sem eu saber? Entendeu? Passa tudo isso pela minha cabeça" (SIC). Silva (2016), por meio da sua pesquisa, observa que o processo de adoção conta com peculiaridades que requerem acompanhamento psicológico, no auxílio na potencialização das habilidades dos adotantes e a possibilidade de ser criado um espaço para que os pais adotivos possam fazer emergir e serem ouvidas suas fantasias, medos referentes a perda de quem se adota, incertezas de não serem amados e/ou não serem competentes no desenvolvimento do exercício parental.

Cris, mãe de Clara e Yasmin, também não relata conhecer a história do lar inicial das crianças. E, por isso, afirma passar por situações em que não consegue compreender devido ao desconhecimento dessa história. "Por exemplo, você vai numa pediatra e pergunta o histórico da família e a gente responde com base na nossa família... Esquece que tem um histórico. Nos casos em que você tenta entender uma coisa ou outra, por ex.: uma alergia. E, você se pergunta: 'Poxa, será que tem a ver isso com a carga genética dela?'" (SIC). Observa-se então que para Cris pode haver um comprometimento no cuidado para com as crianças, gerado pela limitação do saber sobre a história de vida delas. Para Winnicott (1953/2008), é comum o bebê ter vivenciado cuidados inadequados antes de ser adotado. E, por conta disso, quem adota necessita saber de que modo isso ocorreu a fim de observar quais cuidados precisarão ser tidos para com seus filhos.

Eduardo, pai do Vinicius, também não relatou conhecimento sobre a história da criança, assim como demonstrou não ter interesse em saber sobre o passado do Vinicius. "Eu acho que não deveria existir essa história, deveria ser apagada... Nem eu saber, nem ninguém saber. No meu ponto de vista, né? Eu não acho interessante falar do passado não, por que até mesmo quando a gente conhece alguém, um namorado, uma namorada, a gente não quer saber do passado. A gente não escolheu? Não foi pra fila? No meu ponto de vista não importa o passado dele, o que ele fez ou deixou de fazer, o importante é saber de agora em diante o que podemos fazer. Essas coisas! Mas eles dizem, né? Dizem se a pessoa foi usuária de droga, etc." (SIC).

De acordo com Albuquerque (2016), é recomendável que o primeiro passo a ser dado seja pensar a história originária da pessoa adotada como essencial a todo o processo de adoção, de modo que se preze por não negligenciar esse conteúdo. Combier e Binkowski (2017) também afirmam a necessidade da criança ter sua história de vida respeitada, a fim de que seu sentimento de pertencimento se torne possível, dentro do seu novo contexto familiar. Nessa perspectiva, Dantas e Ferreira (2015) assinalam que os adotantes precisam praticar a renúncia a si mesmo visando o cuidado para com a criança, escuta e compreensão de suas angústias, proporcionando espaços para o diálogo expressivo, sincero e sólido, seja sobre dificuldades, inseguranças, quanto sobre a história de vida de quem se adota.

No que tange a sua percepção sobre Vinicius, Eduardo o vê como seu amor, afirmando que tem buscado ser presente em seu desenvolvimento, dispondo de carinho, atenção e satisfação das necessidades que Vinicius apresenta, no dia a dia. Além de explanar seu desejo de que um dia todas as crianças em situação de acolhimento institucional possam receber um lar que disponibilize segurança e afeição, pois acredita que assim essas terão desenvolvimento pleno enquanto ser humano.

Em todos os casos foi possível identificar dificuldade dos pais em lidar com a história de vida dos seus filhos, tendo conhecimento ou não dessa história. Segundo Machado (2014), em sua pesquisa sobre "parentalidade e filiações adotivas: o que revelam e o que ocultam as narrativas dos pais", os pais adotivos temem ter contato com a história inicial dos filhos visto a existência da fantasia de deslealdade, rejeição e abandono de retorno ao lar biológico, por parte dos adotados. De acordo com a autora (2014), o sentimento de impotência frente o acesso a essa história pode ter como consequência o apagamento da história inicial da criança, prejudicando os processos de constituição psíquica do adotado. Nesse sentido, ressaltamos sobre a importância do apoio psicológico aos pais adotivos, para que possam identificar, compreender e elaborar suas dificuldades conscientes e latentes que acabam por afetar as relações familiares.

Revelação da adoção: contar ou não contar?

Reforça-se que este trabalho entende que respeitar a história de vida da criança é respeitar a sua dignidade enquanto pessoa humana. Sendo a ação de revelar um momento de sensibilidade para com essa história e, como orienta Morelli (2005), devendo ser realizada na medida em que a criança demonstre interesse e de modo que ela possa compreender. Revelar é anunciar um passado e, para tanto, buscou-se compreender o ponto de vista de cada pai e mãe entrevistados sobre o assunto.

Luana, ao tratar sobre, afirma guardar a chupeta, a roupa, o sapato e a foto do dia em que recebeu Heitor, para que, aos poucos e com esses recursos possa apresentar a ele sua história sobre a adoção. Assim, demonstrando interesse em promover a revelação de forma gradual. Ao encontro da orientação de Winnicott (1955/2008) sobre ser extremamente necessário que a criança adotada saiba sobre os fatos, com respostas às suas dúvidas e temporalidade para que possa assimilar todo o conteúdo.

Para Cris, com suas filhas Clara e Yasmin, a vivência da revelação de uma das filhas a fez pensar sobre o processo de revelação da outra. "Eu já fiz. A primeira já sabe, apesar de eu sempre contar historinha, né? De como que era... contava que ela veio numa caixa bem bonita, um presente, uma princesinha... e quando ela começou a entender das coisas, ela começou a me perguntar se mamava, de onde nasceu, então... eu dizia que não, dizia que não mamava, que usava mamadeira... E aí, conforme ela foi crescendo eu fui sendo um pouco mais clara, pincelava algumas coisinhas... Aproveitei, depois, uma fase... a fase em que na escola estavam falando sobre família e tinha essa forma de família... Aí comecei por aí, até que um dia eu fui e contei! Que ela veio quando papai do céu quis, mandou... E tal. A mais velha, só depois de um tempo foi que ela ligou a palavra adoção a ela. Entendeu? Uma vez, depois de uns dois anos, foi que ela perguntou: 'Então eu fui adotada?' Ela não ligava a palavra adoção a história dela. Né? Então eu falei: 'foi, mainha' e aí ela cresceu e começou a entender mais sobre as coisas. Daí então, foi quando veio a segunda, a irmã, que eu falei que ela tinha sido do mesmo jeito, falei dos trâmites legais, que a gente tem que aguardar... ela ficava impaciente..." (SIC). Experiência que vai ao encontro da proposta de Valandro e Baumkarten (2013) que entendem não existir idade ideal para revelar a adoção, mas cabe aos pais o uso de metodologias que auxiliem esse processo, como contagem de historinhas, filmes infantis com a temática, desde a chegada da criança. De modo que, ela vivencie o contato gradativo com sua história, conforme for amadurecendo.

No caso da Cris para com sua filha Yasmin, a revelação ocorreu conforme sua filha demonstrou curiosidade e, por isso, foi questionado como, em sua percepção, Yasmin reagiu a esse processo. "Inicialmente ela entendeu tranquilo, depois da irmã foi que ela começou a fazer alguns questionamentos sobre a irmã, que... uma vez eu conversei com a psicóloga (referindo-se a profissional vinculada ao Poder Judiciário) e ela me contou que ela pergunta pela irmã para não perguntar por ela, para não dizer que é com ela... e outra vez, acho que ano passado (referindo-se a 2018) eu tive uma conversa mais aberta, que foi onde ela colocou alguns pontos, né? Questionou se podiam tirar ela da gente, entendeu? Daí ela já falou nela! Se essas pessoas a encontrassem na rua, se poderiam levar ela?! E fazia esses tipos de pergunta. Nós conversamos bastante, eu expliquei tudo pra ela, disse que: 'não... isso não podia acontecer, que ela não iria ser abandonada de novo' e de lá pra cá ela, aparentemente, parou mais, sabe?" (SIC). Observa-se então a tentativa de Cris em criar espaços de segurança para tratar sobre o tema, com sua filha, como orienta Winnicott (1955/2008) sobre o desenvolvimento psíquico e emocional da criança/adolescente adotada precisar, necessariamente, ter contato com sua história primitiva com respostas completas às suas dúvidas, conforme surjam, a fim de que se possa assimilar todo o conteúdo e seja acolhido seu sofrimento, angústias e/ou sentimentos destrutivos.

No entanto, assim como os demais casos, Cris expressa medo da possibilidade de suas filhas desejarem retornar ao seu passado. "Será que estou preparada para isso? É a mesma coisa do falar, a gente fala 'vamos falar, vamos falar', mas confesso que não é fácil dizer! Não é fácil! Chegar e dizer! E aí vem os questionamentos: 'Então eu não vim da sua barriga não? Então eu vim de outra pessoa?' Entendeu? Esse momento não é fácil, ser questionado sobre isso. E então eu falo: 'Filha, isso não importa. Você não tem amor? O que importa é que eu e papai fomos escolhidos para serem seus pais'. O que me pega é isso, sabe? Daqui a uns dias, me pega pensar: 'será que ela vai querer ir atrás?' Como vai ser isso? Porque tenho ela como minha. Enfim" (SIC). Schettini et al. (2006) apontam que a convivência imaginária com a família biológica ou o medo do retorno, ameaças de reapropriação ou sentimento de perda ou roubo só podem ser superados quando houver a compreensão da dupla filiação dos seus filhos. De modo que, esses pais possam viver a afetividade da adoção, por meio do acompanhamento no contato dos seus filhos com a história inicial e recuperando, junto a eles, as lembranças e emoções pertencentes a estes, inclusive possíveis conflitos, contestações ou crises.

Para Schettini et al. (2006), calar ou desestimular a curiosidade do filho alimentará a construção de conteúdos negativos no sujeito perfilhado que pode transformar a família biológica em um fantasma persecutório. Nesse sentido, é importante que essa família primária perca o lugar de estranho e reconquiste um espaço de visibilidade, integrando a experiência adotiva. Entretanto, Winnicott (1953/2008) se questiona se os pais adotivos estão preparados para lidar com os fracassos que o lar inicial da criança proporcionou a esta, ao mesmo tempo que informa que, se esses pais estiverem seguros para tratar do assunto, ao contar a criança sobre sua história passada é possível auxiliá-la na integração das partes memoráveis e não memoráveis do passado, de modo seguro e compreensível.

Eduardo, pai do Vinicius entende que a revelação "é importante, mas não desde o início da infância" (SIC), pois para ele "a criança só entende mais ou menos a vida, quando ela tem uns 8 anos. Daí, eu vou sentar e conversar com ele sobre como ele chegou até a mim. A parte da adoção talvez seja algo mais complicado pra explicar, mas dizer que ele é meu filho, dizer que ele é um filho do coração, que foi Deus quem mandou pra gente, que o papai ama ele" (SIC). Segundo Schettini (2007) quando é respeitada a história da criança e essa é contada de modo verídico, nós a curamos. No entanto, haverá situações em que os adotantes poderão encontrar limitações, em suas habilidades, seja por questões individuais ou sociais. As quais, podem e devem contar com o apoio do profissional de Psicologia. Entendendo-se que essa ciência faz uso de recursos teóricos metodológicos que auxiliam no processo de ressignificação e, por isso, deve fazer parte do processo de adoção desde o princípio.

O processo de revelação pode ser facilitado quando os pais têm acesso a história natural da criança. Além disso, a partir desse conhecimento, os pais entram com contato com suas potencialidades e fragilidades, em como lidar com esse conteúdo. Considerando que cada criança que chega ao mundo carrega uma herança, não se trata de uma tábula rasa e, por isso, retornar a história do passado é possibilitar uma afirmação do que ela vivenciou de modo acolhedor, podendo-se afirmar muito mais sobre a nova identidade de filho adotivo alicerçada em espaços que lhe disponibilizem segurança e verdade. Assim, a família biológica precisa perder o significado de fantasma persecutório e reconquistar aquele espaço de visibilidade necessário para ser integrada à experiência adotiva. Já que, calar ou desestimular a curiosidade do filho o fará construir manifestações psíquicas ocultas (Schettini et al., 2006, p.291).

Dentre os casos estudados nesta pesquisa foi possível perceber uma unanimidade na escolha pela revelação. Entretanto, como afirma Valandro e Baumkartem (2013), a adoção ser revelada não significa, necessariamente, que há boa aceitação com a história pregressa da criança, pois, em alguns casos, o assunto é tratado como um tabu; gerando constrangimento e aflição na criança que, por consequência, evita voltar a falar sobre o conteúdo. As famílias estudadas demonstram insegurança em relação ao retorno à família biológica, mesmo sendo a favor de contar a criança sobre sua história de adoção.

Revelar a adoção significa revelar que a criança teve uma história inicial com outra família e a dificuldade dos pais em lidar com esse conteúdo pode limitar o processo de revelação, mesmo que esses demonstrem intenção de conversar acerca da adoção com seus filhos. Valandro e Baumkartem (2013) entendem que, nesses casos, o desafio a ser encarado é desmontar ideologias que fomentam a defesa do puramente biológico; evitar camuflagem familiar, como ex.: família natural x família biológica; lutar contra preconceitos e superar adversidades. Para tanto, o contato com o profissional Psicólogo se torna um facilitador no processo de compreensão dos pretendentes e pais adotivos, sobre os impactos das construções socioculturais na subjetividade. Assim como, sobre demais angústias que engendram a experiência da adoção, de modo singular.

 

Considerações finais

Com este trabalho foi possível compreender a história pregressa da criança e o processo de revelação da adoção na perspectiva de pais adotivos. As histórias das crianças e/ou o acesso dos pais a essas, mostraram-se com questões muito particulares, vinculadas ao saber ou não saber sobre essa história, mediante a disponibilidade dos órgãos de proteção associados aos casos em passar informações sobre esse passado. Condição que se mostrou impactante, diretamente, em como essas famílias lidam com seus respectivos filhos e, dentre isso, como o processo de revelação pode se tornar limitado, conforme as crianças cresçam e o questionamento se torne cada vez mais complexo.

Em todos os casos estudados os participantes informaram não conhecer a história pregressa da criança. No caso de Luana e Cris houve uma preocupação em saber sobre questões de saúde dos seus filhos para que se possa passar informações em consultas médicas, assim como, em saber quais as limitações físicas e orgânicas que os filhos podem desenvolver e lidar. Eduardo relatou não saber detalhes sobre a história, como também demonstrou desinteresse sobre a temática.

Os dados revelaram uma dificuldade institucional dos órgãos estatais vinculados, aos casos estudados, em repassar informações primordiais que podem impactar diretamente na vida futura das crianças mencionadas nesta pesquisa, a nível físico, psíquico e emocional. Incluindo-se, a conscientização dos pretendentes sobre como lidar com os conteúdos da família natural do infante e as possíveis consequências de se negar essa história, nas diversas áreas do desenvolvimento do sujeito adotado.

No que tange a revelação da adoção, a maioria dos pais demonstrou interesse em revelá-la, de modo gradual, conforme a criança desperte curiosidade e, cognitivamente, compreenda o conteúdo. De todos os entrevistados, apenas Eduardo afirmou que a revelação para seu filho ocorrerá em um momento específico, pois em sua percepção, apenas quando adolescente é que esse poderá compreender o que é adoção. Luana, demonstrou medo em perder o filho, caso ele deseje conhecer a família natural. No caso da Cris, a revelação da adoção de Clara ocorreu com ajuda da escola, quando nesse ambiente foi tratado sobre os diversos tipos de família, assim como a de Yasmin aconteceu, em virtude da Clara ser adotiva e Yasmin observar esse processo. Na ocasião, Cris contou com apoio da profissional de Psicologia do órgão judiciário responsável pelo processo de adoção e a intervenção se mostrou de extrema importância, auxiliando-a a compreender o conflito interno que Yasmin demonstrava estar passando, assim como, preparar-se para lidar com possíveis questionamentos que emergissem de sua filha com a respectiva história originária.

Dois pontos cruciais marcaram os dados estudados. Observou-se que, apesar da existência de dificuldades de acesso a história inicial da criança, a maioria dos entrevistados demonstrou interesse em revelar a adoção. Entretanto, no que tange a falar sobre essa história o conteúdo apareceu vinculado a insegurança, condição que demonstra dificuldade dos pais em lidar com o passado do infante, questão que pode estar vinculada as limitações do conhecimento sobre esse passado, assim como a própria angústia e medo de perder seu filho, em virtude da camuflagem: família biológica x família adotiva. Demonstrando assim, a importância do profissional Psicólogo para auxiliar os adotantes na elaboração de conteúdos vinculados a experiência adotiva. Assim como, tê-lo como profissional de apoio no repasse de informações sobre a história pregressa do sujeito perfilhado, dando conhecimento, aos adotantes, sobre o que envolve a criança/adolescente.

Aponta-se que este trabalho encontrou limitações, no que tange a restrição de gêneros e sexos dos participantes, posto esses se declararem heterossexual e o número maior ser feminino. Além de ser observado a importância da participação dos filhos, de modo que se pudesse compreender a perspectiva deles sobre a revelação da adoção e suas respectivas histórias, bem como elucidar, de modo ampliado, a dinâmica familiar. Assim, vale destacar a importância de novas pesquisas que abranjam novas possibilidades e, incansavelmente, reflitam sobre recursos para assistência as demandas que permeiam a adoção, em suas singularidades. De modo que, práticas de cuidado, suporte e ética sejam disponibilizados em momentos cruciais da adoção e, principalmente, no processo de revelação, o qual impactará positivamente ou negativamente a identidade do sujeito enquanto perfilhado.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Alinne Ferreira da Silva
Endereço Institucional: R. Dom Felício Vasconcelos - Centro, 57300-580, Arapiraca - AL.
E-mail: alinnepsic1@gmail.com

Paula Orchiucci Miura
Endereço: Av. Lourival Melo Mota, S/N, Tabuleiro do Martins, Maceió – AL, CEP 57072-900
E-mail: paula.miura@ip.ufal.br

Submissão em: 17/02/2021
Aceite em: 18/03/2022

 

1 Psicóloga (CRP-15/5232); Mestre em Psicologia (UFAL); Pós-graduanda em "Criminologia: Psicologia Jurídica e Ciências Criminais" (CESMAC/AL). Docente em Psicologia (UNINASSAU/Arapiraca).
2 Professora Adjunta da graduação e da pós-graduação do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas. Mestrado e doutorado em Psicologia pela PUC-SP. Pós-doutorado em Psicologia pela USP.

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