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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.1  Rio de Janeiro mar. 2004

 

Artigo Científico

 

Memória discursiva: sentidos e significações nos discursos religiosos da TV

 

Discursive memory: senses and meanings at the religious speech on TV

 

 

Karla Regina Macena Pereira PatriotaI, II; Alessandra Navaes TurtonIII

IUNIVERSO, Recife, Pernambuco, Brasil;
IIFAPE, Recife, Pernambuco, Brasil;
IIIFAFIRE, Recife, Pernambuco, Brasil

 

 


Resumo

Neste trabalho, fazemos uma reflexão sobre um corpus de seis programas/sermões transmitidos por diferentes emissoras, procurando analisar como o discurso religioso veiculado nos meios de comunicação de massa, em especial na televisão, legitima-se ao produzir sentidos e significações no processo desencadeado pela memória discursiva. No presente artigo, utilizamos como aparato teórico os postulados da Análise do Discurso de linha francesa, visando estabelecer uma análise interdisciplinar ao usarmos o discurso como base para a percepção dos processos cognitivos, em especial no que se refere à memória, a sua relação com a lingüística e a materialidade da linguagem religiosa. © Ciências & Cognição 2004; Vol. 01: 13-21.

Palavras-chave: mídia; religião; memória discursiva; análise do discurso.


Abstract

In this work we analyze a corpus of six programs/sermons, which are broadcasted by different TV stations, trying to analyze how the religions speech used in the media, specially on the television, becames import once it produces senses and meanings in the process trigged by the discursive memory. In the present article, we used like theoretical pomp, the postulate of the French Discourse Analysis (AD) in order to establish the interaction analysis, when using the speech as a base for the perception of the cognitive processes, especially in what is related to the memory, its connection with the linguistic and the religions speech. © Ciências & Cognição 2004; Vol. 01: 13-21.

Keywords: media; religion; discursive memory; discourse analysis


 

 

Introdução e Metodologia

Quando trabalhamos com os postulados metodológicos da Análise do Discurso (AD) Francesa não podemos ignorar que nesta Escola dos estudos da linguagem toda a estruturação teórica é totalmente interdisciplinar, abrangendo a materialidade da linguagem, os conceitos da psicanálise e as diversas ciências sociais.Portanto, neste trabalho procuramos estabelecer uma análise interdisciplinar usando o discurso como base para a percepção da relação existente entre os processos cognitivos, em especial no que se refere à memória discursiva e a sua relação com a lingüística.

Dessa forma, entendemos que fazer análise do discurso em um corpus específico, não se resumirá na aplicação da lingüística sobre as ciências cognitivas, nem muito menos na mera aplicação das ciências cognitivas à lingüística. Esse entrelaçamento entre cognição e linguagem possibilitará que, na nossa análise, o discurso e o sujeito analisados sejam desnudados a partir do conceito de memória discursiva.

Para desenvolver a análise, utilizamos um corpus constituído por seis programas religiosos veiculados nos meses de dezembro de 2003 e janeiro de 2004 em seis emissoras diferentes. Durante esse período, os programas foram gravados, assistidos e analisados. Abaixo a relação dos programas que constituem o corpus:

 

Programa/
Emissora de TV

Igreja

Show da Fé/
Rede Bandeirantes

Igreja Internacional da Graça de Deus

Despertar da Fé/
Rede Record

Igreja Universal do Reino de Deus

Celebração da Família/
Rede Gospel

Igreja Apostólica Renascer em Cristo

Santo Culto em seu Lar/
Rede Mulher

Igreja Universal do Reino de Deus

Está Escrito/
Rede TV!

Igreja Adventista do Sétimo Dia

Santa Missa/
Rede Globo

Igreja Católica Apostólica Romana

Tabela 1 - Corpus

 

Apesar de pertencerem a diferentes igrejas e serem veiculados em emissoras distintas, os programas selecionados apresentam alguns aspectos semelhantes entre si, não apenas na linguagem, mas também na própria formatação da produção.

Análise do Discurso

É válido ressaltar que na Análise do Discurso o texto é tocado e abordado num contexto bastante amplo, incluindo todos os interlocutores e suas respectivas bagagens: a história pessoal, a situação da produção textual e a própria ideologia dos sujeitos. Assim, o texto dentro da AD não é de forma alguma tido por transparente. Ele é entendido e aceito como opaco, principalmente a partir da compreensão da multiplicidade de sentidos que cada texto pode gerar.

Nesta hora, é importante lembrar a proposta de Pêcheux (1999) de que nos discursos não vamos achar transparência, mas opacidade e um certo mutismo. Portanto, o caminho é o de marginalizar as significações e procurar sentidos em construção na opacidade do discurso. Assim fazendo, não estaríamos promovendo a re-significância da significação, já que isso não diz respeito simplesmente a uma rejeição ao abandono do "semântico", contudo é concebida e pensada no contexto teórico-metodológico da AD - "traduzindo" a língua em seus termos, a ideologia, o discurso, e ainda o inconsciente.

Em outras palavras, é possível afirmar que as "significações", assim marginalizadas (como também ocorre a marginalização da noção de "sentido literal"), constituem, por sua formatação em termos temporais e situacionais, parte componente da memória discursiva; estas significações não são eternas, nem sem movimentos. Elas se fragmentam, se desconstroem, se rompem e mudam por "fermentação". Mas são imprescindíveis como fundação; como memória, são verdadeiramente as condições de legibilidade.

Dessa forma, dentro dos postulados da AD Francesa, cada sujeito, na produção de um discurso, promove uma relação deste discurso em formulação com o interdiscurso ou memória discursiva, ou seja, com todos os dizeres que já foram, de fato, ditos. Pêcheux (1999:52) afirma que:

"A memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ser lido, vem restabelecer os 'implícitos' (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível."

Isso ocorre naturalmente, mesmo que o falante não tenha sequer consciência dessa operação discursiva. Sendo assim, em seu discurso o sujeito fala uma voz sem nome, consideravelmente atravessada e levada ao sabor da ideologia e do inconsciente. Por este motivo, a AD postula que esse "saber", que não é ensinado (nem pode ser), produz significativos e importantes efeitos nos discursos produzidos.

Assim sendo, essa leitura discursiva acaba por considerar o que é dito em um discurso e o que é dito em outro, o que é dito de uma maneira e o que é dito de outra maneira, procurando entender e escutar o não-dito, exatamente na materialidade do que foi dito, considerando esta ausência como algo significativo.

Memória Discursiva

A compreensão desse processo se dá quando lançamos mão do conceito de memória discursiva. Tal conceito diz respeito à recorrência de enunciados, separando e elegendo aquilo que, de fato, dentro de uma contingência histórica específica, pode surgir sendo atualizado no discurso ou rejeitado em um novo contexto discursivo - essa ocorrência é capaz de produzir peculiares efeitos. A esse respeito Melo (1999:100) comenta: "A noção de memória discursiva exerce, portanto, uma função ambígua no discurso, na medida em que recupera o passado e, ao mesmo tempo, o elimina com os apagamentos que opera".

É justamente na memória discursiva que nasce a possibilidade de toda formação discursiva produzir e operar formulações anteriores, que já foram feitas, que já foram enunciadas. Em outras palavras, a memória discursiva permitirá na infinita rede de formulações (existente no intradiscurso de uma formação discursiva) o aparecimento, a rejeição ou a transformação de enunciados que pertencem a formações discursivas posicionadas historicamente. Dessa forma, os sentidos são condicionados pelo modo com que os discursos se inscrevem na língua e na história, conseguindo assim, significar. Ou seja, o discurso significa por sua inscrição e pertencimento a uma dada formação discursiva historicamente constituída e não pela vontade do enunciador. Prova disso, é o fato de que ao nascermos, o discurso já está em processo, sendo nós que entramos e nos ajustamos nesse processo. Portanto, podemos entender que a própria "incompletude" é condição e característica da linguagem. Os sujeitos, os sentidos e os discursos nunca estão prontos, nem muito menos, acabados.

Nesse mecanismo de funcionamento, o discurso repousa em formações imaginárias. Estas formações de imagens permitem a passagem de situações empíricas para as posições ocupadas pelos sujeitos no discurso. O que significa no discurso são exatamente essas posições. E elas, necessariamente, significam em relação ao contexto sócio-histórico e à memória, ao já dito (ao saber discursivo). Assim, o sujeito falante compõe a imagem de seu interlocutor para dizer-lhe o que diz, podendo até mesmo antecipar o que ele pensará diante do que é dito. Dessa forma, ele organiza o seu discurso, antecipando contra-argumentações a seu favor. Neste jogo de dizeres se manifesta o discurso, enquadrando-se em um outro característico jogo: o de forças. Forças estas, presentes em toda e qualquer sociedade hierarquizada que promove contínuas antecipações de imagens.

Como pontuamos anteriormente, de forma genérica entendemos que memória discursiva se define, aproximadamente como uma espécie de "interdiscurso", ou seja, trata-se de um saber discursivo que possibilita que as nossas palavras façam sentido. Isto ocorre porque algo fala antes, em outro lugar, de forma independente do discurso que é proferido na atualidade. O saber a que nos referimos acima, corresponde a palavras já ditas e esquecidas, mas que continuam presentes e nos afetam em sua qualidade de "esquecimento".

O mecanismo que regula a argumentação presente nos discursos, quando procedemos à análise a partir dos postulados de memória discursiva, nos remete a compreensão que os sentidos são escolhidos e presumidos por antecipação de interpretação, são produzidos por relações parafrásticas e disponibilizados para discursos futuros. Portanto, encontramos um sujeito capaz de deslocar-se, tornar-se observador, ao mesmo tempo em que diz (de uma forma ou de outra) conforme intenciona na produção de efeitos no interlocutor.

Já que um discurso é sustentado por outros e aponta para o futuro, os sentidos são produzidos a partir de posições. Neste contexto, a memória discursiva é presumida a partir de um momento sócio-histórico, fazendo que o sujeito "migre" de uma situação empírica para uma posição discursiva.

Na relação discursiva é que as imagens constituem as diferentes posições e assim fazem de fato, algum sentido. Vale ressaltar que este sentido não está nas palavras, mas antes delas e depois delas, simplesmente porque palavras remetem a palavras. Além do que, os sentidos não estão irrevogavelmente dependentes das intenções, mas permeados e atravessados pelas suas próprias relações com uma formação discursiva peculiar e com uma memória. Portanto, não existe sentido em si, ele nasce de colocações de caráter ideológico fazendo com que as palavras mudem de sentido de acordo com as posições em que são enunciadas, apreendidas a partir do exterior do discurso.

Nesta compreensão, trabalhamos aqui com o conceito de memória discursiva. Por memória discursiva se entende, segundo Ferreira (2001:20):

"A memória discursiva faz parte de um processo histórico resultante de uma disputa de interpretações para os acontecimentos presentes ou já ocorridos (Mariani, 1996). Coutine e Haroche (1994) afirmam que a linguagem e os processos discursivos são responsáveis por fazer emergir o que em uma memória coletiva, é característico de um determinado processo histórico. Orlandi (1993) diz que o sujeito toma como suas as palavras de uma voz anônima que se produz no interdiscurso, apropriando-se da memória que se manifestará de diferentes formas em discursos distintos."

 

Discussão Teórica

Este artigo trabalha, como pontuamos anteriormente, refletindo sobre discursos específicos: os discursos religiosos veiculados na mídia, através de sermões. Queremos enfatizar que o sermão é o típico discurso que trabalha inevitavelmente com o conceito de memória discursiva. Assim, quando o utilizamos para a análise do nosso corpus, temos o entendimento que ele diz respeito à recorrência de enunciados dentro do discurso. Dessa forma, a memória discursiva pauta-se na possibilidade dos dizeres que se renovam e se atualizam no momento de sua enunciação.

Assim, presentes em cada discurso, há alguns elementos que não podem surgir na superfície discursiva, tão somente porque se eles aparecerem representarão um perigo real e um considerável desequilíbrio para o discurso em questão.

Nos sermões que analisamos, vemos que os seus locutores não abrem espaço para a questão do sofrimento humano como parte do processo que o discurso religioso sempre se preocupou em trabalhar. Na atualidade, tal sofrimento continua incomodando e fazendo o homem retornar constantemente à busca religiosa. Entretanto, hoje esta busca não se dá mais nos moldes do passado, como apresenta Geertz (1978), segundo ele, a religião mostrava ao homem como sofrer: "(...), como fazer da dor física, da perda pessoal, da derrota frente ao mundo ou da impotente contemplação da agonia alheia algo tolerável, suportável - sofrível, se assim podemos dizer." (Geertz, 1978:119).

Ou seja, a religião se preocupava prioritariamente em prover, através das suas argumentações, a resignação ante ao sofrimento, como a "ponte" para o desfrutar de uma vida sem estes mesmos sofrimentos em um futuro vindouro (na vida eterna).

Imbricada com esta idéia pode caminhar uma outra: a de que a religião é um sistema cultural (Geertz, 1978) e, assim sendo, ela não se esgota em si mesma, já que sofre mudanças, inovações e continua a estar presente tanto no ethos quanto na visão de mundo (Geertz, 1978) das sociedades, mesmo sem ocupar um lugar central nas sociedades modernas. "A religião sobrevive: suas funções é que se redefinem no curso da história" (Machado, 1996:17).

Todavia, nos discursos analisados verificamos uma ruptura explícita com a forma de encarar a religião como um meio de resignação ante o sofrimento.

O discurso religioso veiculado na mídia, e em especial nos programas que selecionamos, demonstra a capacidade de incorporar novos valores e ressignificar os valores preexistentes. Tais sermões apresentam na sua argumentação uma eficaz estratégia ideológica. Em clima de intimidade, solidariedade e conquista de vitórias simplesmente apagam a resignação ou a necessidade de se suportar o sofrimento, constituindo assim, uma prática totalitária, na medida em que opera na substituição de um determinado modo de pensar e leva os indivíduos à perda da memória do significado que anteriormente o discurso religioso possuía. Como exemplo, temos o trecho abaixo:

"A miséria, a pobreza, as cadeias financeiras, a habilitação do devorador, do destruidor, esse principado 'tá quebrado. Não tem mais autoridade nenhuma na igreja de Jesus Cristo, nos servos do Deus vivo." (Igreja Universal do Reino de Deus)

Ao falarem da pobreza e das dificuldades da vida, os pregadores midiáticos trabalham discursivamente para negativar tais circunstâncias. A estratégia que esse discurso utiliza é a de propor soluções espirituais ou sobrenaturais para as dificuldades dos que vivem atualmente numa sociedade desigual, mergulhada em profundos problemas materiais e existenciais. Tais problemas de tão prementes e intensos, fazem com que as pessoas já não agüentem mais esperar por uma vida melhor, em um futuro vindouro (na vida após a morte, por exemplo).

Assim, o discurso religioso midiático funciona de forma adequada para aqueles que rejeitam soluções que exigem tempo e planejamento. Um cenário perfeito para os dias atuais, onde se vive sob o reinado do imediato. Todavia, nos discursos religiosos veiculados na TV não basta a existência do caráter imediatista na satisfação dos desejos e necessidades das pessoas, os sermões vão além e funcionam discursivamente impregnados do que os estudiosos das ciências da religião chamam de "Teologia da Prosperidade" ou "Confissão Positiva". Segundo Romeiro (1996:35), esta corrente teológica ensina que: "(...) todo crente deve viver endinheirado, morar em mansão, desfilar em carrões, ficar livre de qualquer tipo de enfermidade durante todo o tempo de sua vida e possuir a natureza divina".

Portanto, ao operarem discursivamente dentro dos parâmetros da teologia da prosperidade, os pregadores midiáticos oferecem a possibilidade de uma troca simbólica que ocupa indubitavelmente um lugar de destaque como meio de realização pessoal e social. Nessa hora, a legitimidade dada pelo texto fonte (Bíblia) atrela-se a fé que deve entrar como um genuíno investimento no reino de Deus, investimento este pautado na certeza de um retorno seguro:

"As tuas finanças são dirigidas pelo Senhor, então não deixe teu emocional entrar... Faça o que o Espírito Santo está falando no seu coração! Tira da sua casa! E dá! Eu te garanto que esse é um investimento mais bendito que alguém pode fazer na terra... Não é que não vai fazer falta, não. Não é só isso. Não vai fazer falta, não vai mesmo, mas o desejo do teu coração, Deus vai te dar." (Igreja Apostólica Renascer em Cristo).

Quando o discurso religioso na mídia se apresenta mesclado pela Teologia da Prosperidade, ele desprende o presente do passado apresentando um contradiscurso que parece querer apagar as raízes históricas de uma religião que era pautada em ensinar ao homem como enfrentar a dor e o sofrimento. Vemos tal postura no seguinte trecho:

"Quando você sair lá fora e você vê o tamanho da guerra, o tamanho da luta, o tamanho da dificuldade o que todo mundo 'tá falando, o que todo mundo 'tá comentando, você não vai deixar isso entrar no seu coração. Isso não é com você. É com quem não tem Deus. Você tem Deus e você tem a benção Dele na sua cabeça, sobre você. Usa a benção do Senhor." (Igreja Internacional da Graça de Deus).

Em manobras lingüísticas, atravessadas por forte teor emocional, a fala religiosa na TV assume ares de convencimento ao defender que as promessas de Deus e seus desejos para a vida dos crentes são de abundância material, de prosperidade e de bênçãos. Assim, jogam com as palavras para que a garantia do compromisso de prosperidade divina entre como um elo na cadeia discursiva, ou seja, todas as coisas boas são dos servos de Deus, tão somente porque Deus fez uma aliança com eles e firmou um compromisso.

A aliança é proposta nos sermões respaldada pelas alianças estabelecidas nas narrativas bíblicas. Tanto no Antigo como no Novo Testamento, a Bíblia fala da aliança que Deus estabeleceu com o seu povo para libertá-lo e salvá-lo do julgo da escravidão, unicamente através de um Messias. Na atualização da dêixis bíblica, esse procedimento discursivo gera uma nova contextualização dessa aliança com Deus. Assim, admite a relevância da tomada de posicionamentos para se avaliar a suficiência deste tipo de experiência religiosa como uma experiência religiosa fundamental. Deste modo, o discurso religioso na mídia apresenta uma "teologia de resultados", os quais podem ser experimentados no mais evidente processo de troca e comercialização do sagrado em variadas formas simbólicas:

"Pode ser que aos olhos humanos não tem jeito mesmo! Pode ser que aos olhos humanos, a hora já tenha passado... Pode ser que aos olhos humanos, já acabou de vez, encerrou, lacrou... Tem um Deus que chega na hora que só ele pode chegar. Não é para ressuscitar. É pra fazer nova coisa! Não tem nem o que ressuscitar, 'tá tudo morto, enterrado. Deus chega faz novo e cumpre as promessas da sua vida! Fortalece o teu coração! A vitória é tua em nome de Jesus! Pode ser grande, impossível, improvável, do jeito que não tem jeito, mas Deus tem uma aliança com você e Ele 'tá operando milagres e maravilhas e honrando a sua palavra ainda hoje!" (Igreja Apostólica Renascer em Cristo).

Quando através dos sermões se desencadeia um processo de concepção e legitimação do discurso televisivo, observamos a construção de um falar que objetiva estabelecer com o sagrado uma troca na forma mercadoria e cuja relação com o mesmo se firma através da possibilidade de um retorno imediato. Se os fiéis experimentaram perdas, sejam elas de qualquer espécie, o discurso religioso midiático oferece uma lógica discursiva capaz de motivá-los a estabelecerem uma nova aliança com Deus e receberem de volta tudo que perderam.

Nesse sentido, pode-se enxergar o discurso religioso nos meios de comunicação de massa como estando permeado de uma prática conveniente aos interesses dos grupos que os divulgam. Com um discurso envolvente e que propõe soluções imediatas, a fala dos pregadores midiáticos apresenta signos específicos, respondendo aos questionamentos existenciais do grupo social composto pelos telespectadores. Este necessariamente passa a ser o principio gerador de sentidos.

Nas falas religiosas da TV, especificamente nos programas analisados, vemos ser estabelecida uma coerência discursiva entre o discurso e a necessidade existencial através de uma linguagem valorativa e motivadora, abundante em promessas de vitórias. Este falar "profético" fornece as condições imprescindíveis para a experiência religiosa como nexo entre a realidade e as necessidades dos fieis. Como no trecho do sermão transcrito abaixo:

"Deus quer te dar prosperidade! Deus quer te dar honra nesta terra e Deus quer que você viva a palavra de Isaías 1:19: 'Se me ouvirdes e credes comereis o melhor desta terra!'.
O Senhor, Ele ordena a benção e você vai viver isso, em nome do Senhor Jesus! Porque ao ser movido pelo Espírito Santo, o que vai acontecer com o teu suprimento? O que vai acontecer no teu trabalho? Na tua vida profissional? Ninguém vai entender, nem você! Sabe por que? Porque é a obra sobrenatural do Espírito Santo de Deus!" (Igreja Universal do Reino de Deus).

Vemos na maioria dos programas analisados, a pregação e o incentivo à prosperidade financeira, mesmo que outros grupos religiosos a partir do texto bíblico em questão usem um parafraseamento totalmente antagônico. Isso ocorre pela inexistência de sentidos literais, muito embora a bíblia seja usada para dizer o contrário, afinal, sabe-se que não há "o sentido" guardado em algum lugar, seja no cérebro, na língua ou nas páginas das Escrituras Sagradas, e que aprendemos sistematicamente a usar.

Os sentidos e os sujeitos se constituem em processo; nele há transferências, jogos simbólicos, dos quais não temos controle e nos quais o equívoco - o trabalho da ideologia e do inconsciente - está muito presente. Portanto, a ideologia do discurso religioso pode até mesmo desencadear a sua função de dominação e de deformação presentes numa linguagem de representação de valores selecionados pela percepção do fiel ou inculcados pela ideologia do próprio sistema religioso que acaba por determinar tais valores como fundantes e legitimadores da experiência religiosa.

Nesse caso, a apregoada consciência de prosperidade enuncia que os fiéis recebam, com facilidade e sem esforço algum, as coisas do mundo material. O discurso da prosperidade, presente nos sermões veiculados na TV, apresenta o mundo material como o mundo de Deus e os "servos" de Deus como detentores do direito a este mundo, afinal eles são seus próprios filhos.

A constante reafirmação das promessas e das vitórias para os servos de Deus permeia, praticamente, todos os sermões que analisamos. Essa reafirmação tende a direcionar e reforçar a escolha dos valores que os fiéis realizam em sua experiência histórico-religiosa, manifestada pela crença no poder de Deus. Neste contexto, o discurso religioso na mídia, promove uma antecipação aos fiéis, apresentando aos seus ouvintes a possibilidade de escolherem o que determinará a postura que terão de seguir para objetivarem a fé em Deus. Obviamente, como temos verificado nos sermões midiáticos, tais posturas sempre acarretarão nas "bênçãos" de saúde física e prosperidade financeira que, uma vez obtidas, resultarão conseqüentemente na conquista de espaço e no pleno reconhecimento sócio-religioso da vitória dada por Deus, além de marca de verdadeira espiritualidade pela presença da fé:

"Não vai te faltar na tua família! Nem coisa pequena e nem coisa grande! Nada! Nada! Nada! Nada! O Senhor vai entregar a família, a benção da família nas tuas mãos! E ainda vai te acrescentar aumentar, enriquecer! Porque esta é a benção que Deus tem para nós! Que somos lavados com o sangue de Jesus! Amém!" (Igreja Apostólica Renascer em Cristo).

Um outro aspecto interessante nos discursos analisados é a sua semelhança com a linguagem presente nos manuais de auto-ajuda, inclusive uma das fórmulas mais usadas pelos pregadores é a indução da repetição das suas falas pelos seus ouvintes e a repetição dos seus próprios enunciados.

Ao induzirem a repetição de suas falas, os pregadores desencadeiam um processo de ação. O falar é agir e esse agir implica em poder. O ato de repetir, tão presente no discurso de auto-ajuda quanto na maioria dos discursos religiosos veiculados pela TV, é importante porque possibilita o agir visto na transformação de um estado de inércia em um estado de mobilização.

Esta repetição ocorre essencialmente na negação do sofrimento que mencionamos anteriormente. Portanto, devemos considerar que uma mesma palavra, na mesma língua, dependendo da posição do sujeito e da inscrição do que diz em uma ou outra formação discursiva, significa diferentemente. Isto é facilmente observado numa análise paralela dos livros de auto-ajuda e dos sermões. Todavia, tal repetição também se reveste, de igual forma, de um caráter essencialmente ideológico a qual pode ser comparada com um elo entre o espaço vazio e a realidade vivida pelo fiel e suas necessidades mais latentes.

Estas necessidades se revestem das possibilidades de realização a partir da esperança dos fiéis. Percebendo esta potencialidade, uma boa parte dos pregadores televisivos absolutizam seus discursos, transformando-os em um instrumento indutor ao imporem uma ordem estabelecida para o modo dos fiéis crerem, pensarem e agirem, através do claro poder de convencimento dos pregadores e do exaustivo uso de repetições bíblicas sob uma ótica literalista:

"Diga comigo: Eu sou filho de Deus! Filho de Deus! Filho do Deus vivo! E glória a Deus! Deus habita na minha vida! Habita no meu casamento! Deus habita nos meus caminhos! E a manifestação dEle trará cura! Trará cura para a humanidade! Trará cura para o meu coração! Trará cura para todas as enfermidades! A manifestação d'Ele me trará a vida eterna!" (Igreja Internacional da Graça de Deus)

Ao serem, pelo discurso religioso divulgado pela TV, guiados ao consenso de que são filhos de Deus e que, por isto, têm direito e acesso irrestrito às suas bênçãos, os fiéis constroem uma visão crédula sobre as possibilidades de mudanças nas suas próprias realidades, enxergando o discurso recebido como adequado àquilo que está proposto.

Vemos nas falas dos "pregadores eletrônicos" o surgimento de uma espiritualidade mensurável em termos de resultados materiais na vida dos crentes. Pela prosperidade econômica, por exemplo, avalia-se o progresso e o tamanho da fé de alguém. Alguém que conseguiu obter os favores divinos no caso, representará a dimensão prática e eclesial da fé, afinal teve a coragem de investir no reino de Deus, tendo a igreja como intermediária. Isto é constantemente apresentado através dos testemunhos lidos ou proferidos antes ou depois dos sermões veiculados.

Percebemos que a ênfase nos depoimentos pessoais dos pregadores e nos testemunhos dos membros das igrejas midiáticas é constante, pois se trata de um processo cuja recorrência faz com que os crentes migrem continuamente entre os pólos da experiência de fé teológica (a partir da teologia cristã bíblica) e da experiência de fé antropológica (através dos fortes apelos emocionais e dos momentos de catarse coletiva). Essa recorrência, presente não só em testemunhos, possibilita a manutenção de um tênue equilíbrio existencial, ao mesmo tempo em que promove a própria experiência do fiel, por meio da linguagem do discurso religioso. Ao promover tal experiência, as igrejas televisivas apenas assumem o papel de mediadoras, pois na essência do discurso, deixa-se claro que só pela fé é possível alcançar as bênçãos divinas, ou seja, os pregadores ao afirmarem tal condicionalidade se eximem, automaticamente, de qualquer responsabilidade por um possível fracasso.

Claro que estas manobras discursivas se apresentam de forma bastante sutil. No jogo de dizeres dos discursos religiosos da TV, há elementos de solidariedade, de carisma e de envolvimentos emocionais que induzem os fiéis ao uso daqueles discursos como ferramenta para a legitimação de suas pré-disposições. Além do que os envolvidos se amparam nas suas próprias buscas, necessidades e desejos, alimentando o processo interativo do discurso. Assim, os crentes assumem voluntariamente a responsabilidade pelo fracasso ou pelo sucesso, só que este último, sempre é estimulado a ser compartilhado com as demais pessoas, através dos já mencionados "testemunhos".

Neste conjunto de manobras discursivas, entendemos que a repetição se constitui como um conceito extremamente importante, a partir do princípio básico que ela atua na recuperação do passado. Foucault (1971) afirma que a repetição se inscreve no interior da ordem discursiva, fazendo com que os discursos se repitam tanto no seu desenrolar "sincronicamente", quanto na medida em que se repetem apresentando os mesmos temas, as mesmas formulações, "diacronicamente".

Quando a AD aborda a interdiscursividade1, apresenta-a como o processo em que se incorporam os percursos temáticos e/ou os percursos figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outro. Esta interdiscursividade é composta dos processos que acarretam a busca na nossa memória discursiva. Assim, são necessariamente, os elementos ideológicos e culturais que possibilitam a compreensão da "mensagem" subliminar. Como aqui analisamos o discurso religioso, não podemos nos furtar de esclarecer que os enunciados do discurso midiático não são enunciados quaisquer, pois ao mesmo tempo em que ela fala, toca no centro da fragilidade humana, estruturando um discurso fácil de ser circunscrito, um discurso hermético e repetido à exaustão.

Vale ressaltar ainda que este processo se desencadeia a partir da argumentação dos pregadores que intencionam produzir confiança no seu discurso, se tal confiança for firmada, embora não haja como testá-la a priori, os fiéis estarão aptos para efetuarem suas trocas simbólicas, entregando a Deus o "seu melhor"2, em troca da prosperidade que provém do Criador de todas as coisas e "dono do ouro e da prata", conforme escrito na Bíblia.

Portanto, o discurso de prosperidade presente em muitas das falas religiosas da TV ocupa um lugar de destaque na visão religiosa dos fiéis que, ao contemplarem a realidade, vêem-na como algo que deve ser mudado, pois além de não apresentar o caráter da prosperidade ainda contradiz a possibilidade de se nutrir esperanças.

 

Conclusão

Ao estudar o discurso religioso na mídia, temos que observar quem diz, como se diz e em que circunstância diz, pois estamos tocando na linguagem religiosa das igrejas como um mecanismo devidamente adequado ao processo de construção do sagrado e do transcendente para os fiéis. É certo que encontramos um discurso envolvente e que com a sua lógica discursiva oferece aos seus fiéis respostas imediatas. Todavia, o discurso também é entendido como um instrumento social que, ao ser mediado pelos pregadores na TV, utiliza-se de uma simbologia religiosa adequada através de signos específicos.

É exatamente na articulação do real com o imaginário que o discurso funciona, na relação necessária entre discurso e texto, sujeito e autor. Portanto, não podemos fugir da compreensão de que, ao ouvirmos os pregadores falarem, levamos em conta suas posições sociais, suas formações ideológicas e as imagens que eles fazem de seus interlocutores, como também os argumentos empregados para atingir as metas propostas. Nesta análise, percebemos a escolha de uns termos, em vez de outros e até o silenciamento em alguns aspectos, para que de fato cumpra-se a função de produção de sentidos nos sermões.

 

Referências Bibliográficas

Ferreira, M. (2001). Glossário de termos do discurso. Porto Alegre: Instituto de Letras UFRGS.         [ Links ]

Foucault, M. (1971). Arqueologia do saber. (Neves, L. F. B., Trad.) Petrópolis: Vozes. (original publicado em 1969).

Geertz, C. (1978). A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.         [ Links ]

Machado, M. (1996). Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. Campinas: Editora Autores Associados - Anpocs.         [ Links ]

Maingueneau, D. (1993), Novas tendências em análise do discurso. 2ª ed. (Indursky, F., Trad.) Campinas: Pontes (original publicado em 1987).

Melo, C. (1999). Cartas à redação: uma abordagem discursiva. Tese de doutorado em lingüística, Instituto de Estudos da Linguagem - IEL/Universidade de Campinas - SP.         [ Links ]

Pêcheux, M. (1999). "Papel da memória". Em: Achard, P. et al. Papel da memória (Nunes, J.H., Trad. e Intr.). Campinas : Pontes.

Romeiro, P. (1996). Evangélicos em crise. São Paulo: Mundo Cristão.         [ Links ]

 

 

Notas

K. R. M. P. Patriota
E-mail para correspondência: kpatriota@hotmail.com

A. N. Turton
Endereço para contato: A. N. Turton, Rua das Pernambucanas 407/304, Graças, Recife, PE 52.011-011, Brasil.
Telefone: +55 (81) 3221-7737
E-mails para correspondência: alessandraturton@hotmail.com e alenaves@uol.com.br.

(1) Segundo Maingueneau (1993), "a unidade de análise pertinente da AD não é o discurso, mas o interdiscurso, o espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos".

(2) Dízimos e ofertas