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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.9  Rio de Janeiro Nov. 2006

 

Revisão

 

Nas cercanias das falsas memórias

 

In the outskirts of the false memoirs

 

 

Raquel Eloísa Eisenkraemer

Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil

 

 


Resumo

O presente artigo desvela alguns aspectos sobre a memória, principalmente sobre a capacidade de lembrarmos do que não aconteceu. Explanamos, a partir de levantamentos bibliográficos, o sentido geral da memória, as suas primeiras teorias e os possíveis tipos de memória. Em seguida, analisamos a possibilidade de modificarmos um evento real, ou seja, de criarmos falsas recordações. Mesmo que a memória seja estabelecida inicialmente e registrada, ela ainda pode ser modificada pela aquisição de informação nova, interferente, assim como por episódios posteriores de recapitulação e evocação. A corroboração de um evento por uma pessoa pode ser uma técnica poderosa para induzir a uma falsa memória; de fato, o afirmar ter visto alguém fazendo algo errado é suficiente para conduzi-lo a uma falsa conclusão. Uma falsa evidência pode induzir as pessoas a aceitarem a culpa por algo que não cometeram, e até mesmo desenvolverem recordações para apoiar os seus sentimentos de culpa. © Ciências & Cognição 2006; Vol. 09: xxx-xxx.

Palavras-chave: memória; falsa memória; recordação.


Abstract

The present article reveals some aspects about the memory, mainly our capacity of remember what didn't happen. We explain, from bibliographical risings, the general sense of the memory, the first theories and the types of memory. Then we analyze the possibility of to modify a real event, in other words, of we create false recalls. The memory is initially established and registered, but it can be modified by the acquisition of new information, as well as for subsequent episodes of recapitulation and evocation. The corroboration of an event to a person can be a powerful technique to induce to a false memory; in fact, the affirmation that a person see an other person making something wandered is already enough to drive the person to a false conclusion. A false evidence can induce the person to accept the fault for something that he didn't commit and developing memories to support their fault feeling. © Ciências & Cognição 2006; Vol. 09: xxx-xxx.

Keywords: memory; false memory; recall.


 

 

"A MEMÓRIA é um poderoso instrumento na busca de compreensão, justiça e conhecimento. Suscita a consciência. Cura algumas lesões, restaura a dignidade e induz a rebeldias. Haverá lema melhor para a placa de um automóvel que Je me souviens? (Eu me lembro.). As memórias do holocausto e da escravidão devem ser passadas para as novas gerações." (Hacking, 2000: 11)

 

Introdução

Não visamos neste artigo atingir uma cobertura exaustiva do campo da memória; ao invés disso, pretendemos realizar breves apontamentos bibliográficos sobre o histórico dos estudos da memória, os tipos de memórias e, principalmente, sobre a nossa capacidade de lembrarmos do que não aconteceu. E para isso, é válido retroceder no tempo, uma vez que tudo o que hoje se sabe e estuda sobre esse fascinante campo, que é a memória, tem suas raízes na filosofia ocidental.

"Penso, logo existo". Escrita por René Descartes, filósofo francês, essa é uma das mais famosas frases de todos os tempos, mas, nos últimos anos, vem sendo apontada como incorreta. Em termos filosóficos, a sentença explicita a divisão entre mente e corpo, argumento massacrado pelos biólogos atuais, que acreditam no fato de que as atividades mentais emergem de uma parte de nosso corpo, o nosso encéfalo. Em seu prefácio, Squire e Kandel (2003: VII), sugerem uma reformulação para a sentença: "Existo, logo penso", ou também, "Tenho um encéfalo, logo penso". Há, ainda, um segundo e maior erro: "Não somos aquilo que somos simplesmente porque pensamos. Somos aquilo que somos porque podemos lembrar aquilo que pensamos". Tudo o que pensamos, falamos, praticamos, inclusive "o próprio sentido que temos de nós mesmos e nossa conexão com os outros" devemos à "capacidade de nosso encéfalo de registrar e armazenar nossas experiências", ou seja, à nossa memória (Squire e Kandel, 2003: VII). Izquierdo (2002: 9) reforça o erro de Descartes quando afirma que "somos aquilo que recordamos", e "também somos o que resolvemos esquecer"; nossas memórias, além disso, nos projetam rumo ao futuro.

"A memória é o cimento que une nossa vida mental, o arcabouço que mantém nossa história pessoal e torna possível crescermos e mudarmos ao longo da vida. Quando a memória é perdida, como na doença de Alzheimer, perdemos a capacidade de recriar nosso passado e, em conseqüência, perdemos a conexão com nós mesmos e com os outros." (Squire e Kandel, 2003: VII).

A memória e o aprendizado são fundamentais para a experiência humana. A perda da memória leva à perda de si mesmo, da história de uma vida e das interações com outros seres. Grande parte do que sabemos sobre nós e sobre o mundo, como o rosto de um amigo ou inimigo, as expressões numéricas, a política, enfim, não foi construída em nosso encéfalo ao nos darem à luz, mas adquirimos por meio da vivência e isso teve a participação da memória. Destarte, "somos o que somos em grande parte porque aprendemos e lembramos" (Squire e Kandel, 2003: 14). Mas até que ponto podemos confiar naquilo que dizemos lembrar? Eis a questão.

 

Desvelando a memória

A memória, um fenômeno fascinante, personagem central de inúmeros artigos e livros acadêmicos, vem cada vez mais instigando analistas das mais diversas áreas. Em termos sintéticos, a memória "é uma função 'inteligente'. Permite que seres humanos e animais se beneficiem da experiência passada para resolver problemas apresentados pelo meio" (Jaffard, 2006: 5). Podemos também dizer que a memória "é condição necessária para a inteligência" (Teixeira, 1998: 52). Costumamos atribuir inteligência a uma pessoa capaz de memorizar grandes quantidades de informação. Laroche (2006: 36) nos diz que "Não há conhecimento nem inteligência sem memória".

No âmbito fisiológico, "as memórias são criadas quando os neurônios em um circuito reforçam a sensibilidade de suas conexões, conhecidas como sinapses". Nas memórias de longo prazo, as sinapses tornam-se permanentemente fortalecidas.

"As próprias sinalizações contribuem para a formação da memória. As mensagens começam a viajar entre um neurônio (a célula pré-sináptica) e outro quando um pulso elétrico chamado de potencial de ação [...] viaja por uma extensão do primeiro neurônio (o axônio) até chegar à sua ponta." (Fields, 2006b: 41)

De acordo com Fuster (2006: 27):

"A formação de memórias é acompanhada pela modificação das sinapses, os contatos entre neurônios; a ativação das sinapses modificadas entre neurônios interconectados faz ressurgir as lembranças aí impressas. As memórias são guardadas sob a forma de modificações nas relações especificas entre os neurônios e não como alterações em moléculas ou neurônios específicos para a memória."

As memórias têm locais específicos para a sua formação. Segundo Lombroso (2004: 207) e Izquierdo (2003: 32), o hipocampo é o responsável pela a formação das memórias explícitas, ao passo que várias outras regiões do cérebro, incluindo o estriado, a amígdala e o nucleus accumbens, estão envolvidos na formação das memórias implícitas. A memória de trabalho se localiza no córtex pré-frontal (embaixo da testa).

Em aspectos conceituais, Izquierdo (2002: 9) define a memória como "a aquisição, a formação, a conservação e a evocação de informações". "O acervo de nossas memórias faz com que cada um de nós seja o que é, com que sejamos, cada um, um indivíduo, um ser para o qual não existe outro idêntico", e determina o que chamamos de "forma de ser" ou personalidade. Essa idéia também é defendida por Kintsch (1998), que enfatiza a importância desses indivíduos formarem grupos e interagirem. Tedesco (2004: 155) afirma que:

"as recordações que nos são mais pessoais são o resultado de um complexo processo de interseção de influência de grupos diversos, cada um tendo um tipo de influência específica sobre o resultado final."

As nossas experiências modificam nossos encéfalos, por isso temos a capacidade de adquirir novos conhecimentos acerca do mundo. E, quando aprendemos, podemos manter o novo conhecimento em nossa memória por um longo período, uma vez que parte dessas modificações permanece no nosso encéfalo. Mais tarde, é possível uma atuação sobre o conhecimento armazenado na memória, o que possibilita novas maneiras de agir e pensar. Como dizem Squire e Kandel (2003: 14):

"A memória é o processo pelo qual aquilo que é aprendido persiste ao longo do tempo. Nesse sentido, o aprendizado e a memória estão conectados de forma inextricável."

"A memória não é um registro passivo das experiências vividas" (Laroche, 2006: 36). Além disso, não é somente um registro de experiências pessoais, ela permite também a recepção de instrução e é uma grande força para o progresso social, uma vez que temos a capacidade de comunicarmos para outros aquilo que aprendemos e, dessa forma, podemos criar culturas que podem ser passadas de geração em geração.

Breve histórico dos estudos sobre memória

A filosofia, a psicologia e, mais atualmente, a biologia, tiveram interesse em analisar como ocorre o aprendizado e como são armazenadas as memórias. Até perto do final do século XX, os estudos sobre memória se limitavam à filosofia, que mais tarde se expandiram para estudos mais experimentais, passando a envolver a psicologia. Com a biologia no topo das pesquisas sobre memórias, mas sempre andando junto da psicologia, têm-se buscado continuamente respostas para perguntas como: como funciona a memória? O que é a memória e onde está armazenada no encéfalo? Para Squire e Kandel (2003: 15), a convergência entre a psicologia e a biologia levou a uma nova síntese do conhecimento sobre a memória e o aprendizado:

"Sabemos atualmente que há diversas formas de memória, que diferentes estruturas encefálicas desempenham papéis específicos e que a memória é codificada em células nervosas individuais, assim como depende de alterações na intensidade de suas interconexões."

Além disso, estamos cientes de que:

"Essas alterações são estabilizadas pela ação de determinados genes nas células nervosas e conhecemos algo a respeito do modo pelo qual as moléculas dentro das células nervosas mudam a intensidade das conexões entre tais células."

Assim, há a promessa de a memória ser:

"a primeira das faculdades mentais a ser compreensível em uma linguagem que estabeleça uma ponte entre as moléculas e a mente, ou seja, das moléculas às células, e, daí, aos sistemas encefálicos e ao comportamento. Essa compreensão que se desenvolve, por sua vez, levará provavelmente a novas abordagens sobre as causas e os tratamentos dos transtornos de memória." (Squire e Kandel, 2003: 15)

Já havia a preocupação em decifrar como aprendemos informações novas e como elas ficam armazenadas na memória desde a filosofia ocidental de Sócrates, mesmo que os filósofos da época acreditavam no fato de que já nascemos com certos conhecimentos. As pesquisas nessa época não eram de cunho experimental, elas eram baseadas na introspecção consciente, na análise lógica e no argumento. Os métodos experimentais atraíram interesse dos pesquisadores da mente e do comportamento na metade do século XIX, quando houve a explosão da física e da química. Assim, houve uma substituição gradual da versão filosófica dos processos mentais por pesquisas empíricas da mente, surgindo a psicologia independente da filosofia. Na Grécia clássica e na Idade Média:

"O domínio da arte da memória era uma das capacidades mais admiradas. Mas as ciências da memória surgiram apenas na segunda metade do século dezenove." (Hacking, 2000: 12)

As pesquisas no âmbito da psicologia investigavam, inicialmente, a percepção dos sentidos, no entanto, mais tarde, foi enfatizado um estudo mais complexo da mente e de seu funcionamento, submetendo os fenômenos mentais à análise quantitativa e experimental. Em 1880, o psicólogo alemão Hermann Ebbinghaus inaugurou o estudo da memória e aprendizado em laboratório usando, de forma objetiva e quantitativa, testes com elementos homogêneos e padronizados a fim de que um indivíduo memorizasse. Com suas pesquisas descobriu que as memórias têm tempos diferentes de duração, umas duram de segundos a minutos, outras se mantém por dias, meses ou anos; além disso, verificou que o processo de repetição alonga a memória, ou seja, faz com que a memória dure por um longo tempo. Por volta dessa mesma época, Sergei Korsakoff, psiquiatra russo, descreveu o primeiro relato de um transtorno de memória, um exemplo de amnésia humana bastante estudado atualmente, a síndrome de Korsakoff. E o estudo dos transtornos e doenças de memória levou a um avanço nas pesquisas sobre as funções normais e os tipos de memória (Squire e Kandel, 2003).

Alguns anos mais tarde, Muller e Alfons Pilzecker defenderam que essa memória que dura dias, semanas ou meses, com o passar do tempo, é consolidada. E uma "memória consolidada é robusta e resiste à interferência" (Squire e Kandel, 2003: 16), ou seja, a consolidação da memória requer uma:

"organização das memórias recentes, integrando-as a outras recordações e transpondo-as a diferentes regiões do cérebro para armazenamento permanente. Memórias de curto prazo consideradas dispensáveis são descartadas." (Fields, 2006a: 51)

William James, filósofo americano, distinguiu memória de curta e de longa duração:

"Memórias de curta duração, argumentou, duram de segundos a minutos e são essencialmente uma extensão do momento presente, como quando alguém lê um número de telefone e, então, o mantém na mente por alguns instantes. Ao contrário, a memória de longa duração pode resistir durante semanas, meses ou por toda uma vida, e seu acesso dá-se mediante uma consulta ao passado. Tal distinção provou ser fundamental para a compreensão da memória." (Squire e Kandel, 2003: 16)

Charles Darwin, em meados do século XIX, revelou que há uma continuidade entre as espécies no que diz respeito às características mentais, assim como acontece com os demais aspectos estruturais. Já no início do século XX, quando os estudos ganharam mais impulso, o psicólogo americano Edward Thorndike e o psicólogo russo Ivan Pavlov se inspiraram nas idéias darwinianas "de que as capacidades mentais do homem evoluíram a partir daquelas dos animais mais simples", e "desenvolveram modelos animais para o estudo do aprendizado"; e, como trabalharam de forma independente, relataram distintos métodos experimentais de modificação de comportamento:

"Pavlov desvendou o condicionamento clássico, enquanto Thorndike, o condicionamento operante ou instrumental (mais conhecido como aprendizagem por tentativa de erro)."

Esses métodos constituíram a base para o estudo da memória e do aprendizado; e, para Squire e Kandel, 2003: 17):

"No condicionamento clássico, o animal aprende a associar dois eventos, por exemplo, o som de uma campainha e a apresentação de alimento, de tal forma que passa a salivar toda vez que uma campainha soa, mesmo na ausência de alimento. O animal aprende que a campainha prediz a chegada do alimento. No condicionamento instrumental, o animal aprende a fazer uma associação entre uma resposta correta e uma recompensa, ou uma resposta incorreta e uma punição que se segue à resposta, modificando, assim, seu comportamento de forma gradual".

O behaviorismo, uma tradição empírica, foi o responsável pela modificação da forma de como se estudava a memória até então, e serviu de base para essa psicologia do aprendizado, objetiva e baseada em dados laboratoriais. Um dos mais conhecidos defensores do behaviorismo, John Watson, e seus companheiros, relatavam que o "comportamento podia ser estudado com o mesmo rigor empregado em qualquer outra das ciências naturais. Para tanto, os psicólogos deveriam concentrar-se exclusivamente naquilo que era observável". Eles podiam, também, "identificar estímulos e medir respostas comportamentais, mas sob esse ponto de vista não era possível uma exploração científica da natureza da experiência de um indivíduo e dos eventos mentais" (Suire e Kandel, 2003: 17).

O behaviorismo foi restritivo em seus objetivos e métodos; estudava apenas estímulos e respostas observáveis e deixava de lado importantes aspectos sobre a vida mental, como os processos cognitivos que ocorrem quando lembramos e quando aprendemos, bem como as evidências levantadas pela psicologia gestalt, psicanálise e neurologia. E esses processos mentais são a base da percepção, do pensamento, do planejamento e do aprendizado e memória. Mas as idéias behavioristas estão corretas no que concerne ao fato de as representações internas não serem facilmente acessíveis à análise objetiva.

O psicólogo britânico Frederic Bartlett, na primeira metade do século XX, abordou a memória num enfoque mais cognitivo e menos comportamental, estudando-a em ambientes mais naturais, e assim descobriu que ela é bastante frágil e suscetível a distorções; e sua evocação raramente é exata. A evocação é essencialmente um processo criativo de reconstrução, destarte, não é simplesmente uma reprodução automática de informação armazenada passivamente à espera de ser estimulada de novo. E, nas palavras de Bartlett (apud Squire e Kandel, 2003: 18):

"Lembrar-se não é reestimular inúmeros traços fragmentários, fixos e sem vida. É uma reconstituição imaginativa, ou construção, elaborada a partir de nossa atitude frente a uma massa unitária e ativa de reações ou experiências passadas organizadas, e com relação a um pequeno detalhe mais destacado que aparece, comumente, na forma de imagem ou de linguagem".

A partir dos anos 60 surgiu a psicologia cognitiva, que nasceu da idéia de que a memória e a percepção dependiam da estrutura mental do observador ou daquele que evoca e de informações oriundas do ambiente, ficando, para os psicólogos, cada vez mais estreitos os limites do behaviorismo. Com a nova teoria da psicologia cognitiva, os estímulos e as respostas produzidas e os processos que intervém entre um estímulo e o comportamento passaram a ser analisados.

Os psicólogos cognitivos "tentaram seguir o fluxo da informação a partir do olho, do ouvido e de outros órgãos sensoriais até sua representação interna no encéfalo, para, então, ser, eventualmente, utilizada na memória e na ação", havia a crença de que essa representação interna "tomasse a forma de um padrão de atividade característico em grupos particulares de células interconectadas no encéfalo", dessa forma, podemos dizer que, ao se ver uma cena, "havia uma atividade-padrão no encéfalo representando aquela cena" (Squire e Kandel, 2003: 18).

Paralelamente à revolução da psicologia cognitiva houve um grande avanço no âmbito da biologia; esta destacou dois componentes importantes para a compreensão da memória: o molecular e o de sistemas. Gregor Mendel, William Bateson e Thomas Hunt Morgan enfatizaram o componente molecular, que mostrou que a "informação hereditária é passada dos pais para os filhos através de unidades biológicas discretas, as quais agora chamamos de genes, e que cada gene reside em um local específico, em estruturas filamentosas dentro do núcleo da célula, os cromossomos". James Watson e Francis Crick, em 1953, decifraram o ADN, a "molécula em dupla fita que constitui os cromossomos e contém os genes em todos os organismos vivos" e que tem um código genético, que pode ser transcrito num ARN mensageiro, molécula intermediária, que, por sua vez, é traduzido em proteína. Dezessete anos depois, foi possível a leitura desse código e a verificação de qual proteína é produzida por um gene, e a análise da seqüência codificada em um gene permitiu inferir aspectos da função da proteína. E tudo isso possibilitou o entendimento de como a célula funciona e como as células transmitem sinais umas às outras (Squire e Kandel, 2003: 19).

Já o componente de sistemas diz respeito ao mapeamento de elementos da função cognitiva em áreas encefálicas específicas. E isso tornou possível o registro da atividade de células nervosas no encéfalo de animais despertos, comportando-se normalmente, e de usar imagens obtidas por meio de tomografias por emissão de pósitrons (TEP) ou por ressonância magnética funcional (RMf) para visualizar o encéfalo humano de uma pessoa viva enquanto ela está engajada em atividades cognitivas (Squire e Kandel, 2003: 19).

"A memória foi se tornando mais complexa ao ritmo da evolução da biologia. Além de sua própria capacidade de memorizar, o homem desenvolveu 'memórias paralelas', como livros e computadores" (Chapouthier, 2006: 9). Os progressos na biologia possibilitaram o estudo do que acontece no encéfalo no momento em que as pessoas percebem estímulos sensoriais ou quando iniciam uma atividade motora, quando aprendem e quando lembram. Agora, a biologia da memória pode ser estudada em dois níveis diferentes: "um envolvendo as células nervosas e as moléculas dentro dessas células e o outro abrangendo as estruturas cerebrais, a circuitaria e o comportamento" (Squire e Kandel, 2003: 19-20).

Os estudos modernos sobre memória enfatizam duas correntes: a biologia molecular da sinalização e a neurociência cognitiva da memória. A primeira estuda a sinalização que ocorre entre as células nervosas e argumenta que a sinalização feita por células nervosas não é fixa, mas pode ser modulada pela atividade e pela experiência. Dessa forma, a experiência pode deixar um registro no encéfalo, e o faz utilizando células nervosas como instrumentos elementares para o armazenamento da memória. Já a segunda corrente se volta para o estudo dos sistemas encefálicos e da cognição e defende que "a memória não é unitária, mas apresenta-se de diferentes formas que utilizam lógica distinta e diferentes circuitos no encéfalo" (Squire e Kandel, 2003: VII).

Os pesquisadores Squire e Kandel (2003) pretendem integrar essas duas correntes historicamente díspares para fundar a biologia molecular da cognição, buscando a união dos estudos biológicos de como as células nervosas sinalizam umas às outras e os estudos de sistemas encefálicos e da cognição.

Tipos de memória

Após inúmeras pesquisas e testes, ainda há incertezas de quantos e quais sistemas de memória diferentes existem. Mas há um determinado consenso sobre os principais sistemas de memória da mente e sobre as áreas do encéfalo mais importante para cada um deles. Segundo Squire e Kandel (2003: 27), "os esquemas de classificação utilizam simplesmente diferentes termos para as mesmas distinções básicas. Por exemplo, a memória de fatos e a memória de procedimentos (habilidades) são conhecidas, alternativamente, como memórias com e sem registro, memórias explícita e implícita, memórias declarativa e não-declarativa". As de registro, explícitas e declarativas duram de minutos a anos e décadas; e as outras, geralmente, a vida toda.

As memórias não-declarativas seriam aquelas que permanecem intactas e são inconscientes; resultam da experiência, assim como as declarativas, no entanto, são expressas como uma mudança no comportamento e não como uma recordação ou lembrança.

Entende-se por memória declarativa aquela voltada para "fatos, idéias e eventos - i.é., para informações que podem ser trazidas ao reconhecimento consciente como uma proposição verbal ou como uma imagem visual". Esse tipo de memória caracteriza aquela à qual "as pessoas normalmente se referem quando usam o termo 'memória': é a memória consciente para o nome de um amigo, as últimas férias de verão ou de uma conversação que ocorreu pela manhã". E ela é possível de ser estudada tanto em humanos quanto em animais (Squire e Kandel, 2003: 27-28). "Entre todos os sistemas mnemônicos, somente a memória declarativa é acessível à consciência" (Squire e Kandel, 2006: 50). A memória declarativa tem várias operações distintas, como a codificação, o armazenamento, a evocação e o esquecimento.

"A memória declarativa é a memória para eventos, fatos, palavras, faces, música - todos os vários fragmentos do conhecimento que fomos adquirindo durante uma vida de experiência e aprendizado, conhecimento que pode potencialmente ser declarado, ou seja, trazido à mente de uma forma verbal ou como uma imagem mental ... é também denominada memória explícita ou memória consciente." (Squire e kandel, 2003: 82)

A memória declarativa é subdividida em três categorias; primeiro, a habituação (o caso mais simples de memória, uma forma de aprendizado não-associativo que engloba um tipo de aprendizado rotineiramente experimentado, como por exemplo, uma pessoa acostumar-se a sons inicialmente alertantes e aprender a trabalhar de maneira eficiente mesmo em ambiente ruidoso, pois nos habituamos a uma determinada situação a ponto de que uma coisa antes irritante passe a não atrapalhar mais; quer dizer, conforme Kintsch (1998), resulta da simples repetição de um estímulo, sem associá-lo com outro). Segundo, a sensibilização ("uma forma de aprendizado não-associativo que resulta de um aumento na intensidade sináptica. Com a habituação, o animal aprende sobre as propriedades de um estímulo benigno ou sem importância. Com a sensibilização, o animal aprende sobre as propriedades de um estímulo nocivo ou ameaçador", ou seja, nesse último caso, a pessoa apresenta uma resposta alterada a um estímulo como conseqüência da apresentação a algum outro estímulo, geralmente nocivo, como, por exemplo, uma pessoa responderá com mais força a uma palmada após receber um choque elétrico - Squire e Kandel, 2003: 60). E, finalmente, o condicionamento clássico, que se diferencia das duas categorias citadas anteriormente, em que o indivíduo aprende sobre as propriedades de apenas um único tipo de estímulo. Essa é uma forma mais complexa de aprendizagem, que "pode aumentar a responsividade de um reflexo mais afetivamente" (Squire e Kandel, 2003: 70), com a permanência de seus efeitos por mais tempo. Por exemplo, um cão que saliva toda vez ao enxergar um funcionário que o havia alimentado no passado; no entanto, se o funcionário não o alimentar mais, esse condicionamento vai se extinguindo, ou seja, declinando gradualmente na capacidade da presença do funcionário provocar a salivação no cão.

Podemos dizer que a memória varia quanto a sua durabilidade; essa constatação foi proposta inicialmente por Muller e Alfons Pilzecker, e também por William James, e é, hoje, igualmente ressaltada por Kintsch (1998) e Izquierdo (2002), que argumentam que a memória de longo prazo é tudo o que o indivíduo sabe e lembra: a memória episódica (ou autobiográfica, ou seja, a que engloba os eventos dos quais participamos ou assistimos), a semântica (que envolve os conhecimentos gerais), bem como o procedimento declarativo e procedural (memória de capacidades ou habilidades motoras ou sensoriais - hábitos - adquirida, geralmente, de maneira implícita, mais ou menos automática, sem perceber), e pode se tornar remota; enquanto a de curto prazo faz referência ao foco de atenção e consciência e pode permanecer e ser utilizada para formas de memórias de longa duração, ou seja, a memória de curta duração dura o tempo necessário para que a de longa duração se consolide. Os psicólogos identificam a memória de curto prazo com memória de trabalho. Porém, para Izquierdo (2002: 19), a memória de trabalho (memória imediata) "não deixa traços e não produz arquivos", o que não acontece com as demais.

Para Kintsch (1998), enquanto a capacidade da memória de trabalho é limitada e utilizada no momento do processamento, a capacidade de memória de longo prazo é restringida apenas pela extensão e natureza das estruturas de recuperação que podem ser acessadas através dos conteúdos da memória de curta duração.

Em contrapartida, a memória não é um fenômeno tão perfeito assim, ela pode apresentar imperfeições, já que, freqüentemente, não lembramos tão bem quanto gostaríamos. Kintsch (1998) afirma que as nossas memórias são representações mentais, o cérebro toma a informação e a transforma ou traduz em outra matéria, e nesse processo ocorrem perdas e criações.

"As fragilidades da memória são universais na experiência humana. Podemos esquecer completamente um evento apesar de nossa intenção de lembrá-lo, ou podemos recordar um evento de forma imprecisa, embora estejamos certos de que, de início, o percebemos corretamente e o entendemos bem. Uma vez que algum tempo se tenha passado, nossa memória daquilo que aconteceu pode se tornar vaga e incerta. ... Quando as pessoas tentam evocar uma memória, por exemplo, algumas vezes incorrem em erros criativos, apagando algumas partes da história, fabricando outras partes e, em geral, tentando reconstruir a informação de modo que faça sentido. Quase sempre a memória funciona pela extração de um significado, não mediante a retenção de um registro literal daquilo que encontramos." (Squire e Kandel, 2003: 90)

Mesmo que a memória seja estabelecida inicialmente e registrada, ela ainda pode ser modificada. "Aquilo que é armazenado na memória pode ser modificado pela aquisição de informação nova, interferente, assim como por episódios posteriores de recapitulação e evocação" (Squire e Kandel, 2003: 91). Os erros podem ser introduzidos na memória em qualquer estágio: durante a codificação, o armazenamento e também na evocação.

Às vezes é difícil distinguir algo que foi apenas imaginado de um evento real; e isso é comum para muitas pessoas. Quantas vezes acreditamos ter vivenciado algo que nunca ocorreu? E afirmamos com firmeza: "Mas aconteceu sim. Eu lembro!" Um bom exemplo é o citado por Pergher e Stein (2001), quando acontece de nos lembrarmos vividamente que ouvimos uma colega dizer que a prova de biologia seria no dia dois de maio, quando, na verdade, as exatas palavras dela foram: "Vamos ter uma prova de biologia logo após um feriado". Nesse caso, criamos memórias falsas, porque acreditamos lembrar de um fato no qual simplesmente inferimos uma informação; é claro que o dia dois de maio fica após um feriado, mas não foi essa a informação emitida pela colega.

 

Lembrando do que não aconteceu

Ultimamente houve grande interesse nos estudos da falsificação da memória, ou seja, na capacidade que temos de recordar de eventos que na realidade não ocorreram, e de como se dá esse processo. Entende-se por recordação um processo complexo baseado em pistas e recuperação de um evento, que pode ou não produzir implicitamente outro (Kintsch, 1998).

As falsas memórias são amplamente observadas nos âmbitos das pesquisas experimentais, da psicoterapia, da área jurídica e em outras situações do cotidiano:

"As questões relacionadas às habilidades de crianças e adultos em relatar fidedignamente os fatos vividos, tanto como vítimas de abuso físico ou sexual, quanto como testemunhas oculares de contravenções em geral, têm influenciado e incentivado os estudos científicos na área das falsas memórias." (Pergher e Stein, 2001: 353)

"... as falsas memórias referem-se ao fato de lembrarmos de eventos que na realidade não ocorreram. Informações são armazenadas na memória e posteriormente recordadas como se tivessem sido verdadeiramente vivenciadas." (Roediger e McDermott, 2000, apud Pergher e Stein, 2001: 353).

É mister diferenciar memórias falsas de memórias reprimidas. Enquanto aquela se baseia na sugestão ou no ouvir dizer, ou seja, no fato de se ter experimentado algo que na realidade nunca se experimentou; esta é uma memória retida na mente de forma inconsciente, e que pode afetar a ação e o pensamento "mesmo se aparentemente se esqueceu a experiência em que a memória se baseia". Izquierdo (2002) caracteriza como memória de repressão quando o indivíduo simplesmente decide ignorar um evento.

"A repressão é uma arma poderosa, mas pode ter o inconveniente de que as memórias reprimidas, mas não mortas, nos tragam de forma inconsciente sensações de mal-estar e causem respostas inadequadas e desagradáveis" (Izquierdo, 2003: 42).

Os primeiros experimentos demonstrando a ilusão ou falsificação da memória foram realizados pelo francês Binet (1900) e, dez anos mais tarde, pelo alemão Stern; ambos fizeram suas pesquisas em crianças. Em adultos, o pioneiro foi Bartlett, em 1932, que descreve o recordar como um processo reconstrutivo, baseado em esquemas e conhecimento geral prévio do participante, salientando o papel da compreensão nas suas lembranças. Em 1974, Elisabeth Loftus e Palmer descreveram um novo procedimento, o procedimento de sugestão de falsa informação, em que, logo após a experiência vivida, é apresentada uma informação falsa compatível com essa experiência; e os resultados produziram o chamado misinformation (efeito de falsa informação), isto é, uma diminuição nos índices de reconhecimentos verdadeiros e um aumento significativo dos falsos. (Pergher e Stein, 2001: 353-354).

Pergher e Stein (2001) realizou os primeiros estudos brasileiros na área de falsas memórias utilizando um procedimento experimental que tem sido extensivamente empregado no estudo das falsas memórias em adultos (Roediger e McDermott, 2000, e Roediger et al., 1998): o procedimento Deese/Roedieger/McDermott (DRM) de listas de palavras associadas (Roediger & McDermott, 1995), que consiste na apresentação de listas de palavras semanticamente associadas às palavras não apresentadas, seguido por um teste de memória.

Para Loftus (2006,http://www.ateus.net/artigos/psicologia/criando_memorias_falsas.php):

"falsas recordações são construídas combinando-se recordações verdadeiras com o conteúdo das sugestões recebidas de outros. Durante o processo, os indivíduos podem esquecer a fonte da informação. Este é um exemplo clássico de confusão sobre a origem da informação na qual o conteúdo e a proveniência da informação estão dissociados."

A psicóloga ressalta que as pesquisas estão começando a dar uma compreensão de como são criadas as falsas memórias de experiências emocionalmente envolventes e completas em adultos, e para isso, "há uma exigência social para que os indivíduos se lembrem; por exemplo, num estudo para trazer à tona as recordações, os pesquisadores costumam exercer um pouco de pressão nos participantes". Além disso, "a construção de memórias pelo processo de imaginar os eventos pode ser explicitamente encorajada quando as pessoas estão tendo dificuldades em se lembrar" e "os indivíduos podem ser encorajados a não pensar se as suas construções são reais ou não". Quando esses fatores externos estão presentes é mais provável de ocorrer a elaboração de falsas recordações.

Pergher e Stein (2001: 354) distingue dois tipos de memórias falsas. Algumas "falsas memórias são geradas espontaneamente, como resultado do processo normal de compreensão, ou seja, fruto de processos de distorções mnemônicas endógenas": as falsas memórias espontâneas ou autosugeridas (Brainerd & Reyna, 1995) Há uma grande diferença entre a lembrança exata de um evento e relatar uma inferência consistente com o que se viu ou presenciou. "Esta distinção é fundamental, especialmente em situações onde se espera que a pessoa relate suas experiências de forma fidedigna e não suas inferências ou entendimento sobre o que ocorreu, como no caso de um testemunho no tribunal" (Pergher e Stein, 2001: 354).

Ainda conforme Pergher e Stein (2001: 354), o segundo tipo de memória falsa é aquela que pode "resultar de sugestão externa, acidental ou deliberada, de uma informação falsa" (Reyna, 1995), a qual não fez parte da experiência vivida pela pessoa, mas que de alguma forma é compatível com a mesma como no procedimento de sugestão de falsa informação. A autora cita um exemplo: se a pessoa viu um carro que não parou numa placa de "dê a preferência" e, posteriormente, lhe é sugerido que a placa de trânsito era de "pare", poderá lembrar do sinal de "pare" como tendo sido realmente visto por ela. "A pessoa passa a recordar de fatos como se tivessem sido realmente vividos, quando, na verdade, estes fatos foram-lhe sugeridos. As chamadas falsas memórias implantadas ou sugeridas (Loftus, 1979) podem resultar deste tipo de sugestão externa".

O fenômeno das falsas memórias tem sido mais recentemente estudado com base na Teoria do Traço Difuso (Fuzzy-Trace Theory, Brainerd e Reyna, 1998; Reyna e Brainerd, 1998; Reyna e Lloyd, 1997) que identifica dois tipos de memórias: a de essência e a literal (Pergher e Stein, 2001: 354):

"A memória de essência é ampla, robusta e armazena somente as informações inespecíficas, ou seja, aquelas que representam o significado da experiência como um todo. Já a memória literal seria a codificação das informações de forma precisa, de modo que os detalhes são registrados e armazenados de forma episódica, sendo, contudo, mais suscetível ao esquecimento e à interferência, se comparada à memória de essência."

"A lembrança de um fato preciso envolve as memórias semântica e episódica". Nesse caso, a memória semântica, de longa duração, apresenta informações relacionadas aos fatos e aos conceitos, mas é a memória episódica, também de longo prazo, a responsável por lembrar de dados sobre eventos singulares, como o local e o momento em que aconteceu algo; roubo, rosto do culpado ou até mesmo uma lista de palavras apresentada uma hora atrás. Além dessas memórias, o funcionamento da memória de trabalho de curta duração, a memória autobiográfica de longa duração, e as memórias explícita e implícita também são imprescindíveis no ato de recordar. "Esses sistemas são permeáveis entre si: os conteúdos e processos de um informam os conteúdos e processos de outros". No caso de um processo forense, em que se investigam os relatos (lembranças) do réu sobre um crime, "a interação entre as memórias episódica e semântica é crucial" (Mazzoni, 2005: 80).

"Envolvendo a recordação de um ou mais eventos específicos, um testemunho recorre à memória episódica e segue suas regras de funcionamento. Várias pesquisas demonstraram, porém, como o conteúdo dessa memória é influenciado por elementos presentes na memória semântica e como os conhecimentos gerais estão ativos no momento em que se assiste à cena ou se tenta recontá-la."

Podemos dizer que a memória não pode ser reproduzida como uma seqüência de imagens ou um vídeo, ou seja, um indivíduo jamais poderá extrair da memória a recordação completa e exata de um evento, uma vez que a memória é sempre reconstrutiva.

"A memória não é reprodutiva. Ao contrário, está articulada a uma série complexa de processos - entre os quais aqueles relativos à atenção e à percepção, cujo papel é preponderante - mediante os quais informações são codificadas de modo fragmentário e distribuídas em várias áreas do cérebro. O hipocampo parece ser responsável pelos processos de codificação. ... A informação codificada, portanto, jamais será a cópia exata do que foi visto ou do que ocorreu. A recuperação efetuada pela memória pode ser o resultado de processos de reconstrução, que reativam e criam informações de natureza episódica e semântica relevantes para o que se deseja lembrar. Essas informações são integradas entre si, e a "recordação" é o resultado final dessa integração." (Mazzoni, 2005: 81)

É muito importante ressaltar que o "próprio ato de rememorar pode modificar o conteúdo daquilo que se recorda e que será lembrado mais de uma vez". A lembrança de um evento reforça a sua representação na memória, inibindo e enfraquecendo gradualmente a representação de outros elementos (Mazzoni, 2005: 81).

O processo imaginativo, ou imagens mentais, que tem grande efeito sobre a memória, pode levar às pessoas a aumentarem significativamente a certeza e exatidão de determinado evento, a preencher o resto baseado no que "deve ter visto"; a lembrança autobiográfica deste pode ser completa, no entanto, incorreta. Hacking (2000: 141) cita que, conforme Elisabeth Loftus, o "cérebro quase nunca reprime a memória de uma ocorrência profundamente importante e a reproduz mais tarde, com exatidão". As falsas memórias são relativamente difíceis de distinguir das verdadeiras, pelo fato de os indivíduos terem a capacidade de descrever minuciosamente os detalhes de algo.

Hacking (2000: 279) desenvolveu um capítulo sobre a falsa consciência, em que aponta que é, na maioria das vezes, importante no nosso dia-a-dia que o que parece que nos lembramos de fato tenha acontecido mais ou menos como lembramos. É freqüente casos de pessoas que acham que emprestaram um livro para determinada pessoa, mas emprestaram a outra pessoa. No entanto, as falsas crenças, que aparentam ser memórias, muitas vezes têm efeitos terríveis, como no caso de uma filha que corta todos os vínculos com o pai porque pensa, por engano, que o pai a violentou quando criança. A falsa consciência seria o "estado mental de pessoas que formaram falsas crenças importantes a respeito de seu caráter e de seu passado" e a falsa memória é apenas "uma pequena parte da falsa consciência".

"Isso porque a "síndrome da falsa memória" em geral refere-se a um padrão de lembranças de ocorrências no passado, que nunca se deram. Não que as ocorrências sejam lembradas de modo impreciso (como a maioria delas são), só que nada parecido com essas ocorrências realmente teve lugar. De fato, essa síndrome poderia ser chamada de síndrome de contramemória, pois as aparentes memórias não são apenas falsas mas também o oposto da realidade." (Hacking, 2000: 279)

Cabe dizer que, numa falsa memória, nem sempre ocorre uma oposição à realidade, pois pode haver, também, uma reformulação, mesmo que radical, do passado.

"A informação enganosa tem o potencial de invadir nossas recordações quando falamos com outras pessoas, quando somos interrogados sugestivamente ou quando lemos ou vemos a cobertura da mídia sobre algum evento que podemos ter experienciado nós mesmos". As pessoas são suscetíveis à modificação da memória e as recordações são mais facilmente modificadas quando a passagem de tempo permite o enfraquecimento da memória original. (Loftus, 2006, http://www.ateus.net/artigos/psicologia/criando_memorias_falsas.php).

A intervenção das pessoas, com a sugestão de informações; os sonhos e até mesmo as práticas de tratamentos de profissionais da mente humana, como questionários, apresentação de imagens (como fotos de bandidos), hipnose, podem modificar totalmente a veracidade de um fato, levando pessoas à condenação sem culpa, a enganos, enfim, a acreditar e lembrar do que não houve.

 

Conclusão

"A memória é fundamental para as atividades cognitivas e, por que não dizer, para a própria sobrevivência" (Freitas de Jesus, 2004). É incrível nossa capacidade de estar sempre expandindo nossas realizações humanas e mudanças culturais; do encéfalo capturar o que aprendemos e ensinamos, apesar de o encéfalo humano não ter aumentado de forma significativa desde o Homo sapiens; e também da capacidade de criarmos um evento que nunca existiu, transformando uma realidade, um pensamento e um sentimento.

A corroboração de um evento por uma pessoa pode ser uma técnica poderosa para induzir a uma falsa memória; de fato, só de afirmar ter visto uma pessoa fazendo algo errado já é o suficiente para conduzi-la a uma falsa conclusão. Uma falsa evidência pode induzir um indivíduo a aceitar a culpa por um crime que não cometeu e até mesmo a desenvolver recordações para apoiar os seus sentimentos de culpa. Daí o grande interesse desses estudos na área jurídica; mas, além do âmbito judiciário, vem-se pesquisando cada vez mais a ocorrência ou não de falsas memórias em pessoas que tiveram experiências de quase morte, decorrentes de coma profundo, parada cardíaca, etc., e que "retornam" à vida com relatos de "lembranças" do "outro mundo", de visões de uma "luz no fundo do túnel", do encontro com parentes, amigos, enfim.

Como alerta Loftus (2006, http://www.ateus.net/artigos/psicologia/criando_memorias_falsas.php) os profissionais do âmbito terapêutico, sejam psicólogos, psiquiatras e demais profissionais da saúde mental, bem como os defensores ou acusadores jurídicos, devem estar atentos a sua capacidade de influenciar a lembrança de eventos e da necessidade de se manter a moderação em situações nas quais a imaginação é usada como um auxilio para recuperar memórias presumivelmente perdidas. Assim, conforme a pesquisadora citada anteriormente, a prática de submeter um indivíduo a múltiplas entrevistas com o propósito de obter-se um relato mais fidedigno dos fatos pode ser falaciosa. A sugestão de informações tem a força de alterar e transformar um evento real. Até que ponto podemos confiar em nossas lembranças? Se temos boa memória, tendemos a confiar em nossas lembranças, mas os mecanismos que as elaboram pedem cautela.

 

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Notas

R.E. Eisenkraemer
E-mail para correspondencia: raqueleisen@yahoo.com.br.