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Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.21 no.spe Rio de Janeiro  2021

http://dx.doi.org/10.12957/epp.2021.63941 

Estudos e Pesquisas em Psicologia
2021, Vol. spe. doi:10.12957/epp.2021.63941
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Pesquisa em Políticas Públicas: Uma Política Investigativa a partir das Noções de Rede e Performance

 

Luciana Rodrigues*; Neuza Maria de Fátima Guareschi**
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Este artigo objetiva compartilhar a experiência da proposição de uma política de pesquisa em políticas públicas, constituída no campo da Psicologia Social, a partir das contribuições teórico-metodológicas da Teoria Ator-Rede (TAR) e dos estudos da Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS). Frente ao expressivo número de produções acadêmicas em políticas públicas filiadas aos estudos foucaultianos sobre biopolítica, esse trabalho busca contribuir para a afirmação da potência de um percurso teórico-metodológico de pesquisa que nos possibilita interrogar e visibilizar questões diversas em relação ao campo de estudos da biopolítica. Para discussão dessa política investigativa apresentamos as contribuições de uma pesquisa que buscou compreender a produção do vínculo como objeto da Política Nacional de Assistência Social, utilizando como operadores as noções de performance (enact), de Annemarie Mol e de rede, de Bruno Latour. Nesse processo, ressaltamos as mudanças que promoveram deslocamentos de nosso lugar como pesquisadoras e, portanto, em nosso modo de produzir pesquisa e análise no campo das políticas públicas. Por fim, destacamos como essa política investigativa visibiliza o caráter performativo da rede de práticas que produz os objetos que ganham existência na Política Nacional de Assistência Social.

Palavras-chave: políticas públicas, performance, teoria ator-rede, psicologia social, pesquisa.


 

Public Policy Research: An Investigative Policy from the Notions of Network and Performance

 

ABSTRACT

This article aims to share the experience of proposing a research policy in public policies, constituted in the field of Social Psychology, from the theoretical-methodological contributions of Actor-Network Theory and Studies of Science, Technology and Society. Faced with the expressive number of academic productions on public policy affiliated with Foucaultian studies on biopolitics, this work seeks to contribute to the affirmation of the potency of another research path that allows us to question and make visible different issues in relation to the field of biopolitics studies. To discuss this investigative policy we use the contributions of a research that sought to understand how the bond is enact as an object of the National Social Assistance Policy, using the notions of enact, by Annemarie Mol and network, by Bruno Latour, as operators. In this process, we highlight the changes that promoted displacements of our place as researchers and, therefore, in our way of producing research and analysis in the field of public policies. Finally, we highlight how this investigative policy shows the performative character of the network of practices that produce objects that come into existence in National Social Assistance Policy.

Keywords: public policy, enact, actor-network theory, social psychology, research.


 

Investigación en Políticas Públicas: Una Política de Investigación desde las Nociones de Red y Performance

 

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo compartir la experiencia de proponer una política de investigación en políticas públicas, constituida en el campo de la Psicología Social, a partir de las contribuciones teórico-metodológicas de la Teoría del Actor-Red y los estudios de ciencia, tecnología y sociedad. Frente al número expresivo de producciones académicas sobre políticas públicas afiliadas a los estudios foucaultianos sobre biopolítica, este trabajo busca contribuir a la afirmación del poder de otra ruta de investigación que nos permite cuestionar y hacer visibles diferentes cuestiones en relación con el campo de la biopolítica. Para analizar esta política de investigación, utilizamos las contribuciones de una investigación que buscaba comprender la producción del vínculo como objeto de la Política Nacional de Asistencia Social, utilizando como operadores las nociones de performance (enact), de Annemarie Mol y red, de Bruno Latour. En este proceso, destacamos los cambios que promovieron los desplazamientos de nuestro lugar como investigadoras y, por lo tanto, en nuestra forma de producir investigación y análisis en el campo de las políticas públicas. Finalmente, destacamos cómo esta política de investigación hace visible el carácter performativo de la red de prácticas que producen objetos que nacen en la Política Nacional de Asistencia Social.

Palabras clave: políticas públicas, performance, teoría del actor-red, psicología social, investigación.


 

 

Ao longo das últimas décadas, a produção de conhecimento em Psicologia Social tem produzido inúmeras pesquisas ligadas ao campo das políticas públicas brasileiras, principalmente no que diz respeito às áreas da saúde e da assistência social - políticas cujos serviços vêm empregando um número significativo de psicólogas(os) em nosso país. No que diz respeito à Política Nacional de Assistência Social (PNAS), foco deste artigo, o profissional psicólogo compõe obrigatoriamente as equipes dos três níveis de Proteção Social: Básica, Especial de Média Complexidade e Especial de Alta Complexidade (Ferreira, 2011).

Há alguns anos trabalhando com pesquisas na intersecção entre a Psicologia Social e o campo das políticas públicas, inicialmente voltadas a temas ligados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e, em seguida, relacionados a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) - onde, atualmente, a primeira autora situa seu percurso de pesquisa - temos acompanhado estudos e produzido pesquisas que se inspiram e/ou se filiam aos estudos foucaultianos. Essas produções acadêmicas, em meio as quais também se encontram as autoras que lhe escrevem, frequentemente compartilham a proposição de uma composição teórico-metodológica em comum que utiliza como operadores conceitos do filósofo francês Michel Foucault, tais como discurso, genealogia e, principalmente, biopolítica e governo das populações.

A partir do resultado de buscas que realizamos no portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, no ano de 2019, podemos visualizar a abrangência dessa perspectiva nas produções ligadas à área de políticas públicas. Inserindo os descritores "políticas públicas" e "biopolítica" encontramos 863 resultados; com "saúde" e "biopolítica" 677 e utilizando "assistência social" e "biopolítica" 134 resultados. Nas três buscas utilizamos como filtro apenas a opção artigos.

Essas produções seguem o que poderíamos chamar de uma tradição foucaultiana, já que se caracterizam por um modo de operacionalizar investigações que tanto se inspiram na noção de genealogia, como nos estudos sobre biopolítica e governo da vida na produção de subjetividades. No primeiro caso, a inspiração genealógica assume como função mostrar a emergência das condições de possibilidade do objeto de pesquisa em questão, ou seja, objetiva atentar para a historicidade desse visibilizando como sua existência se tornou possível no presente. Esse processo demarca a construção de uma história que não está interessada em sua origem, mas nos acontecimentos, na dispersão e nos fragmentos de seus elementos, demarcando um contraponto a uma construção de história que tenta restabelecer a continuidade e linearidade em seu trajeto (Foucault, 2004). Um modo de pesquisar que afirma o caráter de produção dos objetos, contrapondo-se a investigações que se debruçam sobre um objeto sem discutir sua emergência, como se esse tivesse sua existência sempre garantida no mundo e não fosse produto de forças históricas em luta.

Já as articulações, com a noção de biopolítica e as estratégias ao governo da vida nas pesquisas em políticas públicas, têm possibilitado dar visibilidade à atualização de um modo específico e complexo de poder, que incide sobre a vida da população através do uso de saberes da economia política e técnicas instrumentais ligadas aos dispositivos de segurança que caracterizam o que o Foucault (2008a) denominou de governamentalidade. Essa biopolítica, que permeia o corpus da população, se utiliza de estratégias e táticas específicas (e as políticas públicas podem ser incluídas entre elas) para atingir determinadas finalidades, buscando uma maneira correta de dispor as coisas para melhor conduzi-las; de conduzir a conduta dos sujeitos em prol de certos modos de governar a si e aos outros, de regular as populações a uma certa ordem social vigente.

Nesse arranjo político, as pesquisas têm chamado atenção para questões como a produção de subjetividades empreendedoras e o sujeito homo economicus, a responsabilização da família, práticas sociais marcadas pelo racismo, políticas de inclusão, entre outras. Essas produções se desdobram a partir de análises sobre as estratégias de uma arte de governar - em nosso tempo, marcada pela lógica neoliberal - que sempre tenta capturar os sujeitos. Por isso, frequentemente elas acabam abrindo mais espaço para pensar os modos através dos quais essa captura opera, do que espaços às possibilidades de resistência que surgem frente a elas.

São estudos com grande relevância por visibilizarem as estratégias biopolíticas contemporâneas. No entanto, precisamos, a partir dessas produções, também pensarmos em como avançar em relação às considerações que têm destacado práticas de captura que forjam um sujeito enredado nas malhas de uma governamentalidade que sempre o conduz. 1 Esse modo de produção de pesquisas, ligadas a essa temática foucaultiana, tem recebido algumas críticas de autores contemporâneos - que destacaremos ao longo do texto - que nos convidam a pensar outros modos de seguirmos em relação as proposições de Michel Foucault. Desse modo, o objetivo de nossa escrita é mostrar o caminho percorrido na experiência de pesquisa da primeira autora à proposição de uma outra política investigativa que se produziu no campo da Psicologia Social 2 (Rodrigues, 2017). Uma política investigativa sustentada, principalmente, pelas noções de rede (Latour, 2012) e performance (Mol, 2002, 2008a), a partir das proposições teórico-metodológicas da Teoria Ator-Rede (TAR) e dos estudos da Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS). Proposições que consideramos potentes aos estudos e investigações realizadas no território das políticas públicas ao nos possibilitar assumir uma perspectiva de pesquisa centrada na radicalidade das práticas, focando a interação entre os diferentes atores na construção e sustentação de redes de produção de sujeitos e objetos, portanto, da realidade de nosso mundo.

Produzindo um Distanciamento, Abrindo Outras Possibilidades ao Pesquisar

A proposição de uma política investigativa que se distanciasse dos estudos foucaultianos, no que diz respeito às pesquisas em políticas públicas, se fez presente no percurso da pesquisa de doutorado da primeira autora, que buscava compreender como o vínculo era performado, ou seja, produzido, como objeto da PNAS. Operando com o conceito de performance (Mol, 2002, 2008a) nos situamos na esteira de uma perspectiva teórico-metodológica que compreende a realidade, a existência de seus objetos e sujeitos como algo que não está previamente dado, como se fosse algo a ser descoberto e/ou observado. Ao contrário disso, a realidade é sempre produzida (Mol, 2008a).

Nesse caminho, nossa problemática em torno do vínculo se assentava, ainda, no fato de ser esse objeto imaterial acompanhado dos adjetivos familiar e comunitário, uma noção fundamental a essa Política de Assistência Social, posto que o "fortalecimento dos vínculos familiares e a defesa e promoção do direito à convivência familiar e comunitária são metas que perpassam todas as normatizações da política nacional de assistência social" (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2012, p. 94).

Circunscrever o vínculo como tema de investigação nos levou a buscar produções teóricas que permitissem assumir uma política de pesquisa e, portanto, uma política de escrita, que demarcasse a produção desse objeto através da atuação das práticas colocadas em jogo nessa performance, nos auxiliando, assim, a olhar para o campo de investigação a partir de outros lugares. Lugares que nos permitissem deslocar a primazia de nosso olhar sobre os elementos críticos que compõem e constituem os aspectos "sombrios das nossas sociedades regidas pelas racionalidades liberal e neoliberal ... tais como a imposição de uma soberania estatal, o fascismo, o utilitarismo, o atrelamento e subordinação dos interesses sociais aos interesses do grande capital, a exclusão includente" (Veiga-Neto, 2014, p. 45-46). Elementos que, frequentemente, demarcam os estudos foucaultianos que operam a partir de operadores conceituais como biopolítica e governo da vida (Foucault, 2008a, 2008b).

Assim, encontramos nesse percurso de pesquisa, discussões que ofereceram sustentação à produção de diferenciações no processo de investigação e análise em Psicologia Social, no campo de atuação das práticas em políticas públicas. Uma possibilidade teórico-metodológica ao fazer da pesquisa que nos colocou em movimento no sentido do que Michel Foucault nos apontava. Parafraseando o filósofo, esses movimentos são importantes para que possamos (como pesquisadores) pensar diferentemente do que somos. Entre os autores que têm se posicionado nesse debate, tanto no sentido de "pensar Foucault depois de Foucault", como de abandonar suas proposições assumindo outros caminhos, faremos referência aos pesquisadores Martin Savransky (2014), Thomas Lemke (2014) e Annemarie Mol (2002).

O primeiro, professor da Goldsmith, University of London, parte de críticas dirigidas aos estudos sobre governamentalidade para pensar o modo como produzimos nossas investigações no campo da subjetividade. Assim, as críticas mencionadas por Savransky (2014) apontam certa falta de interesse dos pesquisadores em atentar para as mudanças e o devir de novos eventos permanecendo, prioritariamente, preocupados com as estratégias governamentais e suas regularidades. Frente a essas críticas, o autor argumenta a favor de pesquisas pelas quais sejamos capazes de abrir brechas, possibilidades para que relações e sujeitos possam se tornar outros, diferentes daquilo que se encontra programaticamente intencionado pelas estratégias governamentais. Nessa direção, ressalta o uso da noção de sujeito recalcitrante, em contraponto a um sujeito que olharíamos apenas como governável.

Para o autor, ainda que os estudos sobre governamentalidade procurem evidenciar uma ênfase nas práticas mundanas, há uma limitação que se traduz no foco à pureza dos textos governamentais, em detrimento de pensar a complexidade das práticas reais (Savransky, 2014). Isso nos possibilita pensar nas pesquisas que têm como ponto de análise os textos que constituem diferentes políticas públicas, ou, giram em torno das práticas atendo-se particularmente aos aspectos que se referem aos mecanismos de regulação das populações, deixando de lado a complexidade dos elementos que envolvem suas redes de práticas. É importante destacar que o autor, por ser estrangeiro, faz suas considerações a partir de trabalhos internacionais. No entanto, mesmo se considerarmos as produções realizadas no Brasil encontramos diferentes pesquisas que partem da análise de textos que implementam as políticas públicas e/ou investigam práticas desenvolvidas em unidades, serviços e programas ligados a elas que operam com a lógica da regulação e da condução das condutas no governo da vida, como mencionamos acima.

Thomas Lemke (2014), sociólogo alemão, embora seguindo outra direção, também propõe repensar os estudos da governamentalidade chamando atenção para um ponto pouco explorado na obra de Michel Foucault e, consequentemente, esquecido com frequência pelos pesquisadores foucaultianos: o governo das coisas. Nesse caminho, o autor faz uso das contribuições do chamado novo materialismo - que aponta para a agência da materialidade não-humana - respondendo as críticas dirigidas ao fato do filósofo ter mantido seu trabalho circunscrito ao que os críticos mencionam como uma tradicional órbita humanista. 3 Tal ponto desencadearia como efeito pesquisas que acabam apenas enfatizando a atuação de atores humanos nas práticas sobre as quais se debruçam. Um modo de pesquisar que, ainda que considere a materialidade dos elementos não-humanos envolvidos, não os refere como atores que têm uma atuação no mundo.

Segundo Lemke (2014), a saída para tal questão pode ser encontrada em elementos que foram demarcados (ainda que pouco explorados) pelo próprio Michel Foucault em seu seminário intitulado "Segurança, Território e População", de 1977-1978. É nas aulas desse período que vemos aparecer um conjunto de relações complexas que não abrangem apenas o humano, mas relaciona os homens e as materialidades não-humanas a fim de dispô-las, dirigi-las através do manejo do governo das coisas (Foucault, 2008a). Portanto, seria o investimento nesse arranjo a chave que permitiria aos pesquisadores (que desejam operar com o pensamento foucaultiano) adotar uma abordagem que descentraria o foco do humano levando em consideração, também, a agência das materialidades não-humanas - tanto na relação entre o físico e moral, quanto o natural e artificial, que não se encontram reduzidas ao domínio do social (Lemke, 2014).

Diferente de Savransky (2014) e Lemke (2014), que propõem novos rumos para a pesquisa tendo como parâmetro os estudos sobre governamentalidade, Annemarie Mol (2002), pesquisadora holandesa no campo da antropologia médica, desenvolve sua crítica a partir de outro ponto da obra foucaultiana. Ao situar sua etnografia sobre o diagnóstico e tratamento da arteriosclerose em meio à produção de autores que têm avançado em relação a determinadas proposições de Michel Foucault, a autora contrapõe o uso da noção de associações/redes - à qual se filia - à de episteme do filósofo francês. A pesquisadora nos mostra, então, as implicações que o uso da noção de episteme (um corpo de conhecimento coerente) e de discurso (que estrutura construções, instrumentos e gestos) produzem no fazer da pesquisa. Ela coloca em questão a sugestão foucaultiana de que haveria um poder unificador, um conjunto coerente de normas que impõe uma ordenação, uma organização única ao conjunto de relações entre as ciências de uma dada época que, por sua vez, compõe determinada formação epistêmica - tal como na análise do discurso médico (Mol, 2002), que encontramos no "Nascimento da Clínica" (Foucault, 1987).

Desse modo, considerando as proposições latourianas (como a ideia de associações e redes) e as contribuições do sociólogo John Law sobre o discurso (como múltiplo e não como um grande organizador), Mol (2002) sustenta uma prática de pesquisa na qual: 1) não considera a existência de uma força única que agregaria tudo em um todo coerente, mas sim, pequenas forças que organizam diferentes associações (redes), que nossas análises não podem presumir que sempre estiveram lá; e 2) a pluralização de uma ordenação/organização única que, então, é deslocada para um plano processual no qual diferentes modos de ordenação interagem, mudam e, também, encaram sua extinção.

Além das questões apontadas pelos autores acima, destacamos, também, algumas críticas do filósofo francês Bruno Latour em relação a pontos da perspectiva foucaultiana. Nesse sentido, Ferreira (2007) comenta a distinção entre a simetria latouriana e a ruptura foucaultiana. Na perspectiva latouriana, Michel Foucault, com uma noção de ruptura e desconstrução crítica, é visto como assimétrico, pois ao se colocar como um intelectual que propõe a destruição das evidências e a recusa ao que somos se encontra a favor da descontinuidade (Ferreira, 2007). Ou seja, precisaríamos sempre romper, desconstruir o passado para que algo novo possa surgir.

No entanto, para Latour (2009), a descontinuidade estaria conectada à assimetria de um projeto de Constituição moderna que cria um processo de purificação através de diferentes clivagens como verdade X erro e natureza X sociedade. Esse mesmo processo acaba, também, produzindo híbridos - os quase objetos ou fetiches que não encontram um lugar possível na lógica da dualidade purificadora moderna e, consequentemente, são sempre deixados de lado. Desse modo, a noção de ruptura seria uma tradução no tempo das demais assimetrias (Ferreira, 2007) constituindo-se, em última instância, em "uma assimetria entre passado e presente" (Latour, 2009, p. 70).

Diante dessa Constituição moderna, a simetria latouriana se apresentaria, então, como ponto de base para a superação dos impasses produzidos por essa cultura purificadora, na qual cada elemento deve ser mantido em seu devido lugar - como na natureza ou na cultura - e o que é produzido nesse entre é desconsiderado. Além do mais, se a purificação sempre acaba por produzir novos híbridos, o filósofo conclui que jamais fomos modernos. E frente ao fracasso dessa Constituição, a proposta de Latour (2009) centra-se na criação de uma epistemologia política fundada na constituição de um mundo comum, que possa agregar humanos e não-humanos e não apostar na clivagem supostamente purificada de um projeto moderno. Nesse caminho, como nos fala Ferreira (2007), Bruno Latour vai ser um claro opositor da crítica como tarefa central do pensamento (ponto no qual encontramos Michel Foucault) tanto na recusa à crítica estabelecida pelos fundamentalismos modernos, como em uma recusa ao desconstrutivismo:

Sua finalidade política neste momento não é cancelar, mas, como visto, reformar a Constituição moderna, dando representação política aos híbridos… . É por tal razão que não há sentido para Latour em compreender a modernidade por conta de suas revoluções ou rupturas, ou ainda na viabilidade de suas críticas. Crer na possibilidade da crítica é legitimar a existência autônoma e fundamentante dos entes purificados, sejam estes naturezas ou sociedades. (Ferreira, 2007, p. 15)

Portanto, foi a partir dessa proposição de uma prática de pesquisa que considerasse, metodologicamente, a relação simétrica entre humanos e não humanos que nosso percurso investigativo se fez. Apoiadas em trabalhos ligados aos estudos da CTS e da TAR (Mol, 2002, 2008a, 2008b; Law & Singleton, 2014; Latour, 2009, 2012) assumimos outra perspectiva de pesquisa, não no sentido de ser mais ou menos válida que outros estudos (como os foucaultianos), mas, sim, de oferecer abertura a outras interrogações e pensares, permitindo olhares diferentes e nos constituindo como pesquisadoras diferentes do que éramos até então. Esse movimento nos permitiu produzir questões distintas daquelas decorrentes da centralidade da regulação dos corpos e da vida, enfim, do governo das populações que, como mencionamos, acabam por visibilizar os mesmos aspectos sombrios da sociedade dos quais nos falam Alfredo Veiga-Neto (2014), ligados às racionalidades neoliberais.

Essa escolha política implicou um movimento que, no fazer da pesquisa em curso, que buscava compreender como o vínculo era performado na Política de Assistência Social, nos fez mudar a perspectiva de nosso trabalho. Ao invés de nos debruçarmos sobre o vínculo como uma estratégia que conduzira a determinado governo das populações, descrevendo discursos coerentes à condução de condutas (organizado por um grande jogo de forças) que forjaria um determinado vínculo, ou seja, "O" vínculo na atualidade da PNAS, buscamos visibilizar a existência de diferentes redes de práticas que se conectavam dispondo, cada uma delas, de distintos modos de coordenação dessas práticas (Mol, 2002) que, no caso de nossa pesquisa, performava o vínculo em sua multiplicidade ontológica.

Nesse percurso, não atuarmos com a noção de genealogia não significava que estávamos ignorando a historicidade das condições de possibilidade da existência do vínculo como objeto da PNAS, muito menos, que partíamos da ideia de que ele fosse um objeto natural ou, que nenhuma relação tivesse com as estratégias de governo da vida. O vínculo é, sim, um objeto que passou a constituir a Política de Assistência Social através de negociações e lutas que transcorreram (e transcorrem) ao longo da história das práticas socioassistenciais. Ele existe e opera na Política visando a determinados fins, serve a uma política estratégica (como qualquer política social) que tenta gerir as condições para um determinado governo da população, ou seja, para tentar atingir determinados modos de conduzir a conduta dos sujeitos (Foucault, 2004). E esse é um ponto que tem sido bastante explorado e discutido na literatura sobre as políticas públicas no país. Desse modo, como citamos acima, esses aspectos ancoram inúmeros trabalhos produzidos por pesquisas que têm contribuído para um acúmulo considerável de produção de conhecimento no campo. Como aponta Savransky (2014), é importante que possamos traçar nossas investigações indo além das estratégias governamentais e suas regularidades para o governo da vida, atentando para as mudanças que emergem em meio à complexidade das práticas que acompanhamos.

Portanto, assumir certa distância da produção de conhecimento dos estudos que assumem uma perspectiva exclusivamente foucaultiana no campo da Psicologia Social é arriscar, apostar em uma operação teórico-metodológica que produza outras perguntas e, consequentemente, outro modo de investigação - como veremos adiante. Nossa aposta investiu em um processo de pesquisa que nos situou e nos constituiu como pesquisadoras diferentes dos percursos investigativos que nossa formação, marcada pela esteira dos estudos foucaultianos nos permitia.

Tecendo uma Outra Política de Escrita

"Look at its materials and explore how these were
practised in different sites and locations".
(Law & Singleton, 2014)

A partir dos estudos da CTS e da TAR, nossa aproximação com as proposições teóricas nas quais se situam as noções de performance e rede desencadeou um movimento significativo na construção da problemática de pesquisa com a qual estávamos trabalhando. Law (2007) nos auxilia a visualizar essa mudança ao chamar nossa atenção para como, por vezes, podemos de forma precipitada olhar para abordagem da TAR como uma escala reduzida das versões de discursos ou epistemes de Michel Foucault. Mas, enquanto o último nos chama atenção para o caráter estratégico e relacional de determinadas epistemes históricas, a TAR nos oferece a possibilidade de explorar o caráter estratégico, relacional e produtivo de redes heterogêneas particulares, ou seja, nos faz operar em uma escala menor. Ela nos oferece mais um relato histórico de uma tradução particular através do tempo do que o diagnóstico de uma sintaxe epistêmica. Desse modo, houve uma mudança no percurso de nossa pesquisa que pode ser caracterizada como uma mudança de escala (Mol, 2002; Law, 2007), pois deixamos de interrogar o que está em jogo na coerência lógica de um todo - seja de um discurso, uma episteme ou uma racionalidade política específica - para rastrear as associações em rede que performam o vínculo como objeto da Política.

Esse movimento se aproxima, também, da distinção a que se refere Latour (2012) entre a possibilidade da visão oferecida pelo panóptico 4 e pelo oligóptico. 5 Diferente da megalomania vigilante do primeiro (constituído a partir de uma episteme que possibilita o controle e vigilância dos corpos) os oligópticos se referem a lugares pelos quais nós podemos ver muito pouco, mas, em contrapartida, vemos muito bem o pouco que nos é possível ver. Para o autor, são justamente esses os lugares que nos permitem seguir com olhos míopes as pistas que encontramos em nossas investigações - sem sucumbir à tentação de cair em explicações generalistas e/ou totalizantes.

Nesse sentido, o uso da noção de rede foi estratégico para operar essa mudança no modo como se constituiu nosso pesquisar. Rede, na perspectiva da TAR, se configura através de associações de séries heterogêneas de elementos (que podem ser humanos e não humanos, materiais ou imateriais) que não se constituem como entidades estáveis, meramente conectadas sem a possiblidade de transformação. Ao contrário, tais elementos podem se modificar em sua relação com os demais, em um processo que faz e refaz a rede constantemente. 6 Assim, contrastando com a ideia de estrutura social, essa imagem da rede heterogênea permite assumir, no fazer da pesquisa, a agência dos atores nela envolvidos que deixam de ser meros ocupantes de um lugar para se tornarem atuantes (ou actantes) que transformam, ao invés de apenas informar, produzindo objetos e marcando uma diferença (Latour, 2012). Esse processo exigiu que considerássemos a atuação não só dos atores humanos, mas dos não humanos envolvidos na produção do vínculo - pois se há técnicos e especialistas, há também papéis, equipamentos e conceitos envolvidos nessa rede de produção. Portanto, se o que existe no mundo só ganha existência por se continuamente gerado como um efeito das redes de relações, torna-se relevante explorar e caracterizar tais redes e suas práticas, descrevendo a performance das relações heterogêneas que produzem e rearranjam seus atores (Law, 2007).

Desse modo, também consideramos os atores envolvidos na performance do vínculo como entidades que possuem tanto propriedades como capacidades (Delanda, 2006). Distintas das propriedades, que já estão dadas a cada ator que compõe a rede (quando escolhemos partir de atores/entidades específicas postos em relação, sem nos debruçarmos sobre os elementos em associação que atuam na produção dessas mesmas entidades) as capacidades são sempre abertas e imprevisíveis, pois são exercidas apenas na interação, não sendo possível dizer a priori de que modo determinada entidade pode afetar e ser afetada por outras. Por isso, as capacidades têm a possibilidade de não serem exercidas, caso nenhuma entidade esteja disponível para interação. Assim, a existência de uma rede - como a rede socioassistencial - só se mantém e se sustenta pela atuação e exercício da capacidade de suas entidades e não pelo mero agrupamento delas: "[T]he reason why the properties of a whole cannot be reduced to those of its parts is that they are the result not of an aggregation of components' own properties but of the actual exercise of their capacities" 7 (Delanda, 2006, p. 11). Essa distinção nos permite interrogar o que as diferentes interações produzidas nos encontros da rede de práticas da Assistência Social possibilitam ou, ainda, capacitam os sujeitos no exercício cotidiano de suas vidas.

A escolha por esse modo de compreender a rede, além de nos oferecer um entendimento singular a respeito da atuação dos atores envolvidos na sua composição, também contrasta, como vimos acima, com a concepção de episteme como um coerente corpo estruturado de conhecimento (Mol, 2002). As redes, por serem abertas, possibilitam aos elementos que as compõem não apenas conexões com elementos de seu próprio interior, mas, igualmente, com elementos localizados em redes externas (Mol, 2002).

Como a existência dos objetos não se constitui fora nem a priori à atuação dos atores em rede, se assume que sua ontologia - aquilo que, como menciona Mol (2008a), diz respeito ao real e as suas condições de possibilidades, ou seja, seus modos de existência - é política e depende, a cada momento, da composição e operações que se encontram disponíveis em cada uma delas. Nesse sentido que a pesquisadora opera com o termo política ontológica, demarcando que a combinação de ambos "sugere-nos que as condições de possibilidade não são dadas à partida. Que a realidade não precede as práticas banais nas quais interagimos com ela, antes sendo modelada por essas práticas" (Mol, 2008a, parágrafo 1).

É, então, ao traçar as conexões dos diferentes atores, descrevendo a rede heterogênea de elementos que a constitui e sustenta, que se torna possível visibilizar a existência dos objetos que produz (como o vínculo, no caso de nossa pesquisa). Como nos fala Latour (2012), a sociedade, assim, como a natureza ou a subjetividade não são entidades abstratas - existindo misteriosamente, sem precisar ser constantemente retraçada e refeita - e o mesmo vale para os outros objetos (materiais e imateriais) que ganham existência no mundo:

Não existe uma sociedade por onde começar, nenhuma reserva de vínculos, nenhum tranquilizador vidro de cola para manter unidos todos esses grupos. Se você não promover a festa hoje ou não imprimir o jornal agora, simplesmente perderá o agrupamento, que não é um edifício à espera de restauração, mas um movimento que precisa continuar. Se uma dançarina para de dançar, adeus à dança. A força de inércia não levará o espetáculo adiante. (Latour, 2012, p. 63)

Segundo o autor, seguir esses pressupostos exige nosso esforço em nos mantermos apenas acompanhando (a passos demorados e olhos míopes) a associação em rede dos atores, deixando de lado o uso de contextos e noções totalizantes como ferramentas explicativas de análise. Isso torna a TAR muito mais descritiva, nos levando a contar histórias sobre como as relações são ou não são construídas (Law, 2007). Encarnar essa postura, na tentativa de construir narrativas que nos possibilitem conhecer a produção do vínculo como objeto da PNAS, implica, como já mencionamos, compreender que ele apenas se torna real por ser parte de práticas (sempre localizadas histórica, cultural e materialmente) que, constantemente o produzem no entrelaçamento entre o real e o político (Mol, 2002).

É essa relação que forja o que Mol (2008a) destaca como ontologias políticas - demarcando não a pluralidade de perspectivas sobre uma realidade única, mas, sim, suas diferentes performances.

Assim, se o trabalho em rede precisa ser constante para produzir e manter a existência de um objeto como o vínculo (na Política de Assistência Social), não há como o concebermos como algo natural, já dado, que sempre existiu intocado em um centro a espera de ser observado por uma diversidade de pontos de vista que, ao invés de atentar para sua fabricação, criam distintos modos de olhar para uma realidade sempre única (Mol, 2008a). Aqui o movimento é oposto, não há um objeto ao redor da qual pairam nossas investigações e análises na tentativa de desvendá-lo, pois o vínculo é produzido, manipulado "no curso de uma série de diferentes práticas" (Mol, 2008a, p. 7) que o performam (ao contrário do que poderíamos pensar em um primeiro momento) não como um objeto único, mas múltiplo. Isso porque diferentes lugares e redes de práticas - como o documento da Política ou o campo de conhecimento da Psicologia - compõem distintas versões de vínculo (Rodrigues & Guareschi, 2018). Como nos fala a pesquisadora, são "objectos diferentes, embora relacionados entre si. São formas múltiplas da realidade - da realidade em si" (Mol, 2008a, p. 7).

Nesse ponto de nossa escrita, você, caro(a) leitor(a), deve estar se perguntando se é possível visualizarmos outras diferenças, em termos de perguntas e operacionalização, a partir dessa mudança teórico-metodológica que realizamos em nossa pesquisa. Pois bem, é possível visualizarmos mudanças ao contrastarmos os efeitos gerados pela problemática da pesquisa, aqui já citada, em seu momento inicial (como projeto apresentado para seleção em um programa de pós-graduação), em relação ao projeto final e seu resultado (uma tese de doutorado). O primeiro, apoiado nas contribuições de Michel Foucault, apresentava uma pesquisa que se organizava em uma escala mais ampla, digamos, mais abrangente. Mesmo pretendendo buscar conhecer as práticas cotidianas de um serviço da rede socioassistencial, a investigação girava em torno de pensar sobre a racionalidade política que sustenta a centralidade dos vínculos na PNAS e, além disso, dar visibilidade ao processo biopolítico que coloca em jogo um determinado modo de conduzir as famílias usuárias da Política. No entanto, com os novos encontros teórico-metodológicos essa escala se reduziu e a investigação da produção do vínculo passou a rastrear os atores conectados em dois locais específicos do território da Política - em um de seus documentos e nas práticas cotidianas desenvolvidas em um Centro de Referência em Assistência Social. Assim, a lente se ajustou ao registro da forma rede, deixando "de dividir os dados em duas porções: uma local e outra global" (Latour, 2012, p. 257).

Nesse sentido, ao abandonar a ênfase sobre uma racionalidade política e, também, sobre o modus operandi da organização da PNAS para o governo da vida, passou a ser possível interrogar outro ponto como questão de pesquisa, ou seja, investigar como as práticas da rede que compõe a Assistência Social performam (enact) o vínculo como seu objeto. Um exercício acadêmico que os redireciona a outros pontos, outras possibilidades de interrogação e análise que, ao discutir redes de práticas localizadas, se tornam potentes no campo das políticas públicas ao nos permitir compreender como, a partir de cada local, de cada rede de práticas, se produz e se cultiva a existência dos objetos que ganham existência no mundo.

 

Considerações Finais

Através da escrita desse artigo buscamos compartilhar a experiência de uma política de pesquisa, operacionalizada no campo da Psicologia Social, que se constituiu como um percurso de investigação potente às práticas situadas no território das políticas públicas. Uma política de pesquisa que, articulada às proposições teórico-metodológicas da Teoria Ator-Rede (TAR) e dos estudos da ciência, tecnologia e sociedade (CTS), nos permitiu produzir interrogações diversas em relação aos estudos que têm como base contribuições foucaultianas, como a biopolítica. Além disso, essa proposição investigativa nos permitiu assumir uma perspectiva de pesquisa que se volta para a radicalidade das práticas, focando a interação entre os diferentes atores na construção e sustentação de redes de produção de sujeitos, objetos, enfim, de produção de mundo – o que nos posibilitou um movimento de mudança na pesquisa. Se antes nosso olhar para o objeto da pesquisa – o vínculo – era sustentado por noções biopolíticas para o controle da vida, agora se tornava possível atentar para o vínculo como objeto múltiplo em produção na rede de práticas da Política de Assistência Social, analisando o que essa produção nos permite fazer.

Ressaltamos que não é nossa intenção valorizar ou hierarquizar as possibilidades do pesquisar que dizem respeito às duas perspectivas que discutimos aqui, mas visibilizar a potencialidade que as proposições teórico-metodológicas da Teoria Ator-Rede e dos estudos da ciência, tecnologia e sociedade podem trazer à pesquisa em políticas públicas ao nos situarem em lugares diferentes, que, como efeito, permitem a formulação de perguntas distintas.

Portanto, nossa aposta se coloca na possibilidade de oferecer pontos de contraste e comparação (Mol, 2008b) para que outros pesquisadores(as) do campo, também possam olhar para suas práticas, seus modos de pesquisar em um convite que nos possibilite pensar e discutir os feitos de nossas produções acadêmicas na composição de olhares, lugares, objetos, sujeitos e narrativas que compõe e povoam o mundo (Moraes & Tsallis, 2016) sobre o qual nos debruçamos.

Nesse sentido, as noções de rede e prática, no fazer da pesquisa, nos situam no percurso dos estudos que se voltam para a centralidade das práticas, das interações entre as diferentes práticas que produzem redes de atuação e sustentação de objetos. É importante pontuar que pesquisar a produção daquilo que ganha existência no mundo (sejam objetos materiais ou imateriais ou, ainda, sujeitos) não significa, a despeito de algumas críticas dirigidas a essa perspectiva, que possamos simplesmente inventar realidades, como num sonho ou em um conto de fadas onde tudo seria possível. Além de um mal-entendido, essa linha de pensamento é, segundo Law e Singleton (2014), por si só uma fantasia, pois a TAR nunca teria se posicionado dessa forma. O que se coloca em jogo não é uma invenção fantasiosa sobre aquilo que apenas sonhamos ser possível obter existência no mundo, pois a ontologia dos objetos não é uma abstração, mas um efeito das associações entre entidades materiais e não materiais que atuam em rede (Gardner, Dew, Stubbe, Dowell, & Macdonald, 2011). Se objetos ganham existência no mundo através de atuações que se operam através de redes, isso não é uma questão de imaginação, mas sim de práticas que requerem esforço e trabalho duro (Law & Singleton, 2014).

Nos aproximando do final da tessitura de nosso texto, afirmamos que nessa política para um fazer da pesquisa nossa tarefa diz respeito a assumir a postura de pesquisadora que, firmemente, segue seu caminho "como uma formiga, carregando seu pesado equipamento" (Latour, 2012, p. 47) na tentativa de estabelecer as associações e conexões que possibilitam a sustentação dos atores que constituem objetos de nossas pesquisas. Para tanto, é preciso que possamos considerar, no plano investigativo, a relação simétrica entre os diferentes atores que se entrelaçam nas práticas que forjam a realidade dos objetos, sejam eles materiais ou não (Latour, 2009). Trata-se de um movimento importante que nos permite (utilizando uma expressão do autor) abrir a "caixa preta" daquilo que se torna objeto de nossas pesquisas.

Nesse caminho, a própria política de pesquisa é performativa. Em outras palavras, ela também produz a realidade da qual fala - "o que nos faz entender que a discussão de método de pesquisa não é tanto uma questão epistemológica, mas acima de tudo, política" (Moraes & Arendt, 2013, p. 321). Parafraseando os autores, o que se coloca em jogo é interrogar quem e o quê conta para o território, para a composição dos sujeitos e objetos sobre os quais se debruçam nossas pesquisas.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Luciana Rodrigues
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Instituto de Psicologia
Rua Ramiro Barcelos, 2600, Santa Cecília, Porto Alegre - RS, Brasil. CEP 90035-003
Endereço eletrônico: lurodrigues.psico@gmail.com
Neuza Maria de Fátima Guareschi
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Instituto de Psicologia
Rua Ramiro Barcelos, 2600, Santa Cecília, Porto Alegre - RS, Brasil. CEP 90035-003
Endereço eletrônico: nmguares@gmail.com

Recebido em: 26/02/2020
Reformulado em: 19/05/2020
Aceito em: 26/05/2020

 

 

Notas

* Doutora em Psicologia Social e Institucional. Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS.
** Doutora em Educação pela University of Wisconsin-Madison. Professora Associada I da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
1 Não perdemos de vista que na própria obra de Michel Foucault há elementos que nos permitem atentar para práticas de resistência em meio as práticas e estratégias biopolíticas. No entanto, nosso interesse aqui é operar com elementos teóricos e metodológicos que como pesquisadores nos situem em posicionamentos que se diferenciam dos estudos sobre governamentalidade, no sentido de permitirem outras interrogações possíveis ao campo de pesquisa.
2 Essa proposta se materializou no percurso de doutorado acadêmico da primeira autora, no qual se circunscreveu como tema de pesquisa e análise as performances que possibilitam ao vínculo ser objeto da Política Nacional de Assistência Social – PNAS (Rodrigues, 2017).
3 Para a qual um dos argumentos possíveis é o desenvolvimento das análises sobre saber-poder focadas somete nas ciências humanas - o que teria implicado na falta de agência da materialidade não-humana em suas investigações (Lemke, 2014).
4 Ideal de prisão imaginada por Jérémy Bentham, no início do século XIX (ver Foucault, 2010).
5 Palavra grega que designa "um ingrediente ao mesmo tempo indispensável e fornecido em pequenas quantidades" (Latour, 2012, p. 262).
6 Embora faça uso do termo network, o autor menciona que deveríamos dizer worknet para, assim, enfatizarmos o trabalho e o movimento (Latour, 2006).
7 Tradução livre: "A razão pela qual as propriedades de um todo não podem ser reduzidas a suas partes é que elas não são o resultado da agregação dos próprios componentes das propriedades, mas do real exercício de suas capacidades."

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de doutorado da primeira autora pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul – FAPERGS.

 

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