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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. v.15 n.1 Goiânia jun. 2009

 

TEXTOS CLÁSSICOS

 

La Psychologie de la forme1

 

Posição filosófica da teoria da forma2

(Capítulo IX - Comparações e discussões/Parte 1)

 

 

Paul Guillaume (1937)

 

 

Introdução3

A teoria da Forma (Gestalttheorie)4 é, ao mesmo tempo, uma filosofia e uma psicologia. Por um lado, ela introduz as noções de forma ou de estrutura, tanto na interpretação do mundo físico quanto do mundo biológico e mental; ela estabelece a conexão de fatos que as concepções tradicionais separam e funda, sobre essas aproximações, uma filosofia monista da natureza. Por outro lado, aplica essas mesmas noções, no domínio especial da psicologia, a problemas determinados e concretos. Quer libertar essa ciência de certos quadros tradicionais, que limitaram os seus horizontes e afastaram-se da realidade e da vida. Mas sua orientação permanece científica; seus fundamentos são, antes de tudo, experimentadores habituados a pedir, a observações exatas e minuciosas, o controle de suas hipóteses mais ousadas.

Seria, pois, fazer a mais falsa idéia dessa teoria &– e esse erro foi cometido, por vezes &– nela ver uma pura especulação filosófica, e crer que seu interesse se limita à exploração, por meio de uma nova linguagem, de certas analogias, muito gerais, entre diversas classes de fatos. Para compreendê-la e julgá-la, ser-nos-á necessário &– dentro dos limites que se impõem pelas dimensões desse livro &– seguir os autores no seu laboratório e assistir a alguns de seus experimentos. Aliás, qualquer que seja a sorte futura da teoria, os fatos novos que terá divulgado permanecerão, as idéias experimentais conservarão seu interesse. O papel de uma teoria não provém unicamente da inteligibilidade que introduz nos fatos conhecidos, mas também do seu valor heurístico e da sua fecundidade na pesquisa.

A teoria da Forma surgiu na Alemanha, nos princípios do século XX. Veremos, mais adiante, a que crise havia conduzido, naquela época, a evolução de uma psicologia orientada, desde meio século, para a análise. Por toda parte sentia-se a necessidade de novos princípios. A reconhecida insuficiência da teoria dos elementos fazia reclamar uma psicologia dos conjuntos, das estruturas, das formas; esse programa era comum a várias escolas. Mas nosso objetivo não é fazer a história desse movimento. Limitaremos nossa exposição a uma dessas escolas, a que nos pareceu a mais interessante, tanto pela homogeneidade de sua doutrina, como pela importância de sua contribuição experimental, aquela que na Alemanha se chama escola de Berlim, ilustrada pelos nomes de Wertheimer, de Köhler, de Koffka, de Lewin. Deixaremos para indicar, se houver ocasião, os pontos em que assentam as diferenças entre as escolas.

Aliás, seria prematuro querer fazer obra de historiador, quando se estuda um pensamento vivo, que não se poderia imobilizar. Tínhamos publicado, em 1925, um primeiro estudo5, do qual retomamos os materiais nesse livro. Porém, desde essa época, a teoria da Forma ampliou suas perspectivas, estendeu suas pesquisas a novos capítulos da psicologia. Podemos seguir, hoje, sua influência fora da Alemanha. Foi nos Estados Unidos que apareceram as duas exposições de conjunto mais importantes: as de Köhler (Gestaltpsychology, 1929) e de Koffka (Principles of Gestaltpsychology, 1935). Primeiro tínhamos pensado em dar uma tradução de uma dessas obras, mas elas concedem grande espaço à discussão de idéias e de métodos que são os da Psicologia americana contemporânea. Preferimos correr o risco de uma exposição pessoal, mais adequada aos hábitos e às disposições do leitor francês. Aliás, trata-se de um pensamento que, pela sua orientação científica e pelo seu ponto de apoio experimental, é iminentemente assimilável. Sua repercussão mundial impõe-no à nossa atenção, podemos, certamente, discuti-lo; não temos mais, contudo, o direito de ignorá-lo.

 

Posição Filosófica da Teoria da Forma

O leitor que tiver tido a paciência de seguir, passo a passo, nossa exposição, sentirá sem dúvida necessidade de condensar, em algumas fórmulas, as noções que adquiriu acerca da Teoria da Forma e de situá-la entre as doutrinas filosóficas que lhe são familiares. Essa empresa não está isenta de perigos. Uma nova doutrina nunca entra exatamente nos antigos quadros e a etiqueta que lhe dão não lhe convém senão em parte. Os termos que empregamos estão carregados de valores históricos. Sensíveis a certas analogias, estamos inclinados a esquecer as diferenças, e por isso a desconhecer precisamente o que essa doutrina traz de novo e de importante.

A Teoria da Forma será um espiritualismo ou um materialismo? Se for espiritualismo se entende um dualismo, a oposição cartesiana de duas substâncias, de dois princípios autônomos, a Teoria da Forma repele expressamente tal idéia. É um monismo. Não deixa lugar algum para uma atividade livre, suprafisiológica; estende o determinismo ao universo inteiro e faz do homem uma parte num todo; seu princípio do isomorfismo é a extrema generalização do paralelismo psicofisiológico.

Será então um materialismo? Se por materialismo entendemos, segundo uma definição clássica, uma explicação do superior pelo inferior, nenhuma doutrina parece mais afastada dele que a Teoria da Forma. Nenhuma demonstrou melhor a impossibilidade de explicar a adaptação por meio do acaso, a finalidade por mecanismos, a ordem pela desordem; de reduzir os atos inteligentes a somas de reflexos, o pensamento lógico a associações extrínsecas e, em geral, os fatos superiores a combinações aditivas de fatos interiores. Ela insiste nas diferenças de valor intrínseco e admite toda uma hierarquia de formas da existência.

A noção de matéria só era empobrecedora quando definida primeiramente por certas propriedades estritamente limitadas. Assim o fazia o atomismo de Demócrito, o qual negava aos seus átomos todas as determinações qualitativas e fazia do acaso o princípio universal; assim fazem as doutrinas modernas que reduzem os fatos físicos a fatos mecânicos e que, depois de terem excluído, em princípio, a ordem do mundo físico e a adaptação do mundo biológico, não podem restabelecê-las senão por acidentes. A idéia de que no mundo físico só os elementos têm existência verdadeira, e não os todos, era de essência materialista. Mas todas essas limitações da noção do real são estranhas à Teoria da Forma.

Outra idéia de materialismo seria a quase-negação da consciência, que se encontra na idéia de epifenômeno: toda a realidade seria constituída pelos elementos objetivos com os quais a física constrói nosso universo; todo o mundo interior seria excluído do real. Quando se procura, nessa doutrina, o que seria suscetível de se enunciar em termos claros, chega-se a uma das duas afirmações seguintes: ou bem a consciência não existe, &– ou bem existe, mas poderia também não existir, sem que nada seja anulado no curso das cosias e até no comportamento do homem. A Gestalttheorie repele essas duas teses tão claramente quanto possível. A realidade da experiência imediata, do “fenômeno”, é para ela uma evidência primeira, a qual não se pode recusar a não ser por conseqüência de um mal-entendido. Quanto à afirmação de que um mesmo fato objetivo, cerebral, tanto poderia ser inconsciente como consciente, estaria em contradição com o princípio do isomorfismo. A mesma organização não pode ser ora consciente, ora inconsciente. Estando os “fenômenos” compreendidos no determinismo universal, não há lugar para epifenômenos caprichosos. Por todos esses aspectos, a Teoria da Forma é, pois, algo inteiramente distinto de um materialismo.

Será uma metafísica ou uma filosofia positiva? Se chamarmos metafísica a uma teoria distinta da ciência e excedente à ciência, a Teoria da Forma pouco corresponde a essa definição. A interpretação que dá da física quer ser puramente científica; sua crítica é interior à própria ciência e conforme ao seu espírito. Sua psicologia parte dos fenômenos, da experiência ingênua, e se propõe a determinar, pela experimentação, suas condições, e chegar a leis que permitam previsões. A interpretação fisiológica ultrapassa, sem dúvida, a experiência atual; mas não nos propõe senão um inverificável provisório; suas hipóteses são de tal natureza que progressos da técnica poderiam invalidá-las ou confirmá-las. Nas memórias que resumimos, a descrição concreta e a experimentação têm um lugar que a concisão necessária de nossa exposição arriscaria por demais subestimar. A metafísica que poderiam esconder estaria totalmente implícita, a menos que se convenha em chamar metafísica uma psicologia que se apresenta como a única teoria possível do conhecimento e dos valores.

Tratar-se-á então de um positivismo? O livro de Koffka6 termina com um repúdio dessa doutrina. Porém, em que sentido? Koffka define aqui o positivismo como a filosofia que repousa no princípio de que “todos os eventos são igualmente ininteligíveis, irracionais, desprovidos de significação (meaning), puros dados de fato”. Em outras palavras, trata-se dessa concepção tímida da ciência que desconfia das teorias, nas quais Comte temia ver ressurgir, insidiosamente, o espírito metafísico. Ora, a Teoria da Forma admite que toda ciência não é simplesmente a procura de correlações empíricas entre fatos quaisquer. Filha da física matemática e da dinâmica, crê na fecundidade das teorias. Repudia a crítica da causalidade, de Hume; estende, pelo menos a uma parte das relações causais, a ininteligibilidade que parecia própria das matemáticas puras. Nesse sentido, está muito longe dessa espécie de positivismo estreito.

A Teoria da Forma será um empirismo ou um racionalismo? Se empirismo se chama à teoria que vê a origem de todo conhecimento nas correlações experimentais de materiais sem relações intrínsecas inteligíveis, essa doutrina é o oposto da que estudamos. Por outro lado, a Teoria da Forma limita, em todos os capítulos da psicologia, o papel desmedido que se atribuía à memória; nisso vai muito além da crítica clássica do empirismo; esta se limitava a reservar-se o domínio do puramente racional e abandonava à influência da educação todo um domínio, o qual a Teoria da Forma a ela subtrai e subordina às leis da organização.

Será então um racionalismo? A palavra “Forma” pode fazer pensar no racionalismo antigo. As “Gestalten” serão análogas às Formas aristotélicas, às Idéias platônicas? A Lei da Boa Forma unirá, como a física de Aristóteles, a causalidade e a finalidade? Para reduzir essas comparações ao seu justo valor, basta notar que a Gestalttheorie rechaça todo dualismo da matéria e da forma. O pensamento grego sempre imaginou a natureza pelo modelo da arte humana, na qual a intenção formadora trabalha em materiais indiferentes, ao passo que os gestaltistas tomam como modelo a organização espontânea, necessária, que se realiza em um equilíbrio físico ou químico. Acrescentemos esta outra diferença capital: a ação da forma sobre a matéria, para os antigos, permanece indeterminada nos graus e modalidades de sua realização; sua explicação fica puramente filosófica e não tende à determinação exata de nenhum evento particular; ao contrário, a Gestalttheorie procura as leis que permitem prever as estruturas a partir de suas condições. Será necessário acrescentar que nessa doutrina não há nada análogo ao “acidente” aristotélico; que o “fenômeno” faz parte do mundo real e que é uma “forma”, etc? A semelhança com o racionalismo antigo é puramente nominal.

O racionalismo de Kant e de seus sucessores é outro dualismo, no qual as leis originais do espírito se impõem a tudo o que pode vir a ser, para nós, objeto de conhecimento. A estrutura própria da faculdade de conhecer é a fonte de toda organização, posto que em face dela não há mais que uma pura diversidade, sensível, caótica. Toda forma é produto de uma “atividade” formadora; o pensamento de Kant permanece pois, no fundo, como o pensamento antigo, artificialista. Por outra parte, se a teoria do conhecimento postula, por via de razões metafísicas, essa atividade, a ciência não a pode observar, porque só atinge, segundo Kant, fatos organizados que já seriam os produtos dessa atividade organizadora. O ponto de vista da Gestalttheorie é totalmente outro. Nela não há mais lugar nem para o caos dos materiais, nem para a atividade que os organiza, nem consequentemente, para uma teoria do conhecimento distinta da psicologia. As transformações orgânicas dos fenômenos, que a psicologia observa, situam-se no mesmo plano que as transformações do mundo físico. O conhecimento não cria a organização do seu objeto; imita-o, na medida em que é um conhecimento verdadeiro e eficaz. Não é a razão que dita suas leis ao universo, mas antes uma harmonia natural entre a razão e o universo, porque obedecem às mesmas leis gerais de organização. Vê-se em que sentido a Teoria da Forma seria e não seria um racionalismo.

A teoria da Forma será uma psicologia da consciência ou uma psicologia do comportamento? O problema colocou-se claramente pelo fato de, nascida na Alemanha, num meio formado na escola da introspecção, ter-se aclimado nos Estados Unidos, onde encontrou o behaviorismo.

Se por psicologia do comportamento entende-se um método que ignoraria, deliberadamente, a experiência vivida pelo sujeito, a psicologia da Forma é totalmente oposta; para ela o essencial é determinar como o sujeito percebe a situação na qual está colocado, é descrever o “fenômeno individual” que lhe corresponde. Enquanto todo o programa do behaviorismo contém-se na fórmula estímulo-resposta, ela procura estabelecer uma ligação inteligível entre esses termos distantes, mostrar como a constelação objetiva dos estímulos condiciona a organização perceptiva e com esta, por sua vez, reflete-se na organização da reação. A fórmula estímulo-resposta conduz o behaviorismo a uma concepção “molecular” do comportamento; analisando as condições objetivas e as reações objetivas em elementos, procura correlações entre elas e vê, na conduta, uma soma de reflexos elementares. Ao contrário, cumpre considerar, como o vimos, relações de complexo a complexo, de forma a forma, e chegar a uma concepção “molar” do comportamento. O contraste das duas doutrinas acentua-se ainda se, no behaviorismo, vê-se não somente um método, mas uma filosofia que, como a teoria dos epifenômenos, exclui a consciência da realidade da qual a ciência se ocupa. Mas opor a observação física à dos fatos da consciência é esquecer que se trata, simplesmente, de dois diferentes modos de organização de uma mesma experiência individual imediata. O físico acentua uma seleção e fia-se, sobretudo, em certas percepções que permitem, melhor que as outras, edificar uma concepção geral coerente e fecunda; porém, em sua origem, essas percepções fazem parte da experiência individual imediata, ponto de partida comum da física e da psicologia. Pelo lugar central que dá a essa noção, a teoria da Forma afasta-se, portanto, do behaviorismo.

 

 

Tradução: Adriano Holanda

Nota Biográfica
Paul Guillaume (1878-1972) foi psicólogo e o principal representante da Psicologia da Gestalt francesa, bem como seu maior difusor em língua francesa. Foi autor do clássico La Psychologie de la Forme (1937), que teve uma tradução para o português em 1966, pela Companhia Editora Nacional (tradução de Irineu de Moura; Volume 81 da coleção “Atualidades Pedagógicas”). Além desse importante texto, publicou ainda L’Imitation chez l’enfant (1925); La Formation des Habitudes (1936) [A Formação dos Hábitos, tradução de Ramiro de Almeida; Volume 36 da coleção “Atualidades Pedagógicas”]; La Psychologie Animale (1940) [Psicologia Animal, tradução de Lavínia Costa Raymond; Volume 25 da coleção “Iniciação Científica”]; La psychologie de l’enfant en 1938-1939 (1941); La psychologie des singes (1942) e Introduction à la psychologie (1943) [Manual de Psicologia, tradução de Lólio Lourenço de Oliveira e J. B. Damasco Penna; Volume 60 da coleção “Atualidades Pedagógicas”]. Todas as edições em português foram traduzidas e publicadas pela Companhia Editora Nacional, de São Paulo.
1 Publicado originalmente em 1937, na Bibliothèque de Philosophie Scientifique, pela Flammarion (Paris, França), tendo uma reedição pela mesma editora em 1948 e outra edição, mais recente, de 1979. No Brasil, tem sua primeira tradução pela Companhia Editora Nacional (São Paulo), em 1966, por Irineu de Moura, compondo o Volume 81 da coleção Atualidades Pedagógicas.
2 O texto aqui apresentado compõe o capítulo IX (e final) do livro, intitulado “Comparações e Discussões”. Este capítulo é composto por três partes: 1) Posição filosófica da Teoria da Forma; 2) Discussão de algumas críticas; e 3) Conclusão.
3 A Introdução desse texto corresponde à introdução do próprio livro. A decisão em colocá-la aqui se deve ao fato de conter informações importantes para contextualizar o texto a seguir (N.do T.).
4 Conservamos o termo francês forme [em português, forma], embora não corresponda exatamente à palavra alemã Gestalt, que seria melhor traduzida por estrutura, organização.
5 “La Psychologie de la Forme”, Journal de Psychologie, XXII, 1925, p. 768-800.
6 Koffka, K. (1935). Principles of Gestalt Psychology. New York: Harcourt.

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