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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.4 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2012

 

ARTIGOS

 

Claudel e as implicações da derrisão do pai

 

 

Denise Maurano

Denise Maurano, psicanalista, membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise, doutora em Filosofia pela PUC/RJ e pela Universidade de Paris XII, professora associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), trabalhando junto a Faculdade de Direito e ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Memória Social (PPGMS). E-mail: dmaurano@corpofreudiano.com.br

 

 


RESUMO

A trilogia Les Coûfontaines do dramaturgo francês Paul Claudel é abordada como meio de expressão e de reflexão de questões candentes da dinâmica trágica contemporânea, que recaem, sobretudo, nos modos pelos quais nela a função paterna atua. A leitura de Jacques Lacan servirá de suporte para muitas das proposições acerca da dimensão trágica da função do pai na contemporaneidade.

Palavras-chave: Tragédia, contemporaneidade, pai, psicanálise.


ABSTRACT

The trilogy Les Coûfontaines of French playwright Paul Claudel is discussed as a means of expression and reflection of burning issues of tragic contemporary dynamics, that falls, especially, in the ways in which the paternal function operates. Reading Jacques Lacan will serve as support for many of the propositions about the tragic dimension of the father's role in contemporary times.

Keywords: Tragedy, contemporaneity, father, psychoanalysis.


 

 

Neste trabalho vou tratar da trilogia Les Coûfontaines de Paul Claudel e de uma reflexão acerca da leitura feita por Jacques Lacan. Lamentavelmente, ao que me consta, ainda não temos em nossa língua nenhuma tradução dessa obra que mostra com efetiva sagacidade o devir da função do pai na tragédia contemporânea. Para isso, começarei por retomar aspectos de meu livro A face oculta do amor (MAURANO, 2001).

 

 

É notória a importância que é dada à função do pai na teoria psicanalítica, e certamente não é gratuito seu remetimento à tragédia. Aliás a tragédia pode ser pensada como o que se sustenta de uma interrogação sobre a função do pai diante da desmedida do que se verifica no impasse entre o campo dos bens, das posses, domínio do asseguramento das leis e o campo evanescente e arriscado do desejo. Essa é inclusive a proposta de Lacan em sua abordagem da tragédia, nesse ponto em nada distante da concepção freudiana.

O primeiro observa entretanto, que essa interrogação parece ter sofrido "gradações", ao longo da história, demonstradas pelas diferenças dos níveis de incidência da função do pai desde o que aparece na tragédia antiga até a tragédia contemporânea (LACAN, p. 277). Verifica que, se na tragédia antiga, nível referente a do Édipo, o pai já está morto de saída, e na tragédia shakespeariana, nível referido a de Hamlet - a qual proponho nomear de tragédia moderna -, o pai fantasma, ideal de homem, aparece como condenado, no nível da tragédia contemporânea, onde se situa a tragédia claudeliana, o pai, um reles vivente, é descrito como um pai humilhado na mais absoluta derrisão. Assim, quanto mais vivo, mais vulnerável, menos fiável.

O que se verifica é que na tragédia contemporânea estamos para além de todo sentido (IBID., p. 273), dado que há nela, uma dissolução ainda mais radical da função do pai, o que nos coloca no extremo da falta. Enquanto morto o pai tem ao menos o trunfo dos efeitos que sua própria morte provoca. Um pai condenado, como é o de Hamlet - tema extensamente investigado no seminário lacaniano O Desejo e sua interpretação -, mas ainda assim sustentado pelo filho na condição de homem ideal, situa um contexto de queda do pai menos drástico do que aquele que Claudel leva a termo na tragédia chamada Le père humilié, e que não sem razões constitui o terceiro tempo de sua trilogia Les Coûfontaines.

A experiência trágica apresenta algo inteiramente oposto ao tratamento do desejo do homem que visasse uma definição científica, coisa que poderíamos dizer que teria sido buscada desde Sócrates. As circunvoluções e os impasses da relação do homem com o desejo e com a lei no matiz que isso toma na contemporaneidade, é exemplarmente demonstrado na trilogia claudeliana acima mencionada, que comporta três tragédias: L'Otage, Le pain dur e Le père humilié. Tais tragédias: O refém, O pão duro , e O pai humilhado infelizmente não se encontram ainda traduzidas para o português, razão pela qual tentarei ser mais minunciosa no atravessamento de trechos de suas tramas, na tentativa de não apenas apontar, mas sobretudo de obter elementos para melhor entendermos a dinâmica trágica contemporânea.

 

A TRAGÉDIA DO DESEJO NA CONTEMPORANEIDADE:

As consequências da Revolução Francesa e da queda da Monarquia, o início da Revolução Industrial, a ascenção do capitalismo, os conflitos na Europa, a colonização algeriana, e a questão dos judeus, formam o pano de fundo histórico onde se desenvolvem as cenas, evidente no texto em si e conforme observa Marcel Marechal, a seu respeito, no programa das peças montadas por sua Companhia de outubro a dezembro de 1995 no Teatro do Rond-Point. Malgrado a aspereza da crítica, considero grande sorte tê-las assistido. A tragédia L'Otage versa sobre a história de Signe de Coûfontaine, uma moça da nobreza francesa que, privada de seus familiares e de seus bens, toma para si a tarefa de recuperar suas terras. Porém, aconselhada por seu confessor, cede ao assédio do Barão de Turelure, filho de uma antiga criada sua, e casa-se com esse sujeito desprezível, ele próprio, exterminador de sua família, e que está no poder graças à sua adesão a Napoleão I. Ela age deste modo para que o Papa não seja morto. Isso porque, logo no início da peça, Turelure já sabe que o Papa, prisioneiro de Napoleão I, fora raptado da prisão e encontra-se agora abrigado clandestinamente por Signe.

Dessa operação de renúncia que Signe empreende casando-se com a figura abjeta do Barão de Turelure, resta-lhe um sintoma, um certo tique nervoso que a faz balançar a cabeça em sinal de não. Signe, que em francês é sinal, introduz seu não desde a primeira cena, ante a notícia de morte, a morte dos filhos de seu primo amantíssimo (CLAUDEL, 1990, p. 19). Mas, nesse momento o sinal está apenas prenunciado. Signe ainda não está tomada pelo não, pela renúncia radical a todos esses objetos atravessados pelo desejo, os quais promovem os desvios necessários ao distanciamento da queda no não-senso e na morte, como logo sucederá.

Porém, já nesta primeira cena onde se desenvolve um diálogo entre Signe e seu primo, George de Coûfontaine, esse campo do não, se é que posso chamá-lo assim, essa circunstância na qual os valores de sustentação da existência, valores da fé nas suas mais variadas versões e nas suas mais íntimas raízes, já mostra os limites nos quais esbarra. Deus, seu poder e sua própria existência estão aí colocados em questão. George insurgindo-se contra a idéia da onipotência divina, diz: "como a terra lhe dá seu nome (ele se chama de Coûfontaine, nome de uma região) eu lhe dou minha humanidade" (Ibid., p.24), rebaixando Deus àquilo que o homem lhe empresta.

Nesse primeiro momento da peça há ainda em Signe um esforço de restauração da fé, configurado plasticamente pela recuperação, como foi possível, de um crucifixo de seus ancestrais que havia sido mais que enxovalhado, quebrado em pedaços pelos republicanos. Ela conta que encontrou a cabeça no fundo de um forno de padaria; o peito servia de bigorna na casa de um marechal, e por aí foi... Esse crucifixo que aparece em cena até o final da segunda peça da Trilogia - "O pão duro" quando será dramaticamente negociado a peso e transformado em barganha de valor precário em moeda corrente, está aqui, apesar das imperfeições que as circunstâncias lhe trouxeram, devidamente fixado na parede, preso a uma cruz feita com as vigas da casa incendiada dos Coûfontaine (Ibid., p.31).

A trama do texto é tecida de modo a deixar, desde já, transparecer a dimensão de fragilidade da fé, fragilidade ainda assim operante, dado que é a ela que o confessor de Signe apela para persuadi-la a, "por sua própria vontade", aceitar a incumbência de salvar o representante do Pai de todos na Terra casando-se com Turelure. O confessor, curiosamente, menciona a segunda morte imposta a Cristo todos os dias, depois de ter sido morto e crucificado, que é o pecado mortaldaqueles a quem ele ama. É o que circunscreve Cristo, também ele, no espaço do « entre-duasmortes », onde se desenvolve a cena trágica. Trata-se do que vigora entre a morte de fato, mas que ainda é fecunda porque deixa restos que adubam novas vidas, e a morte radical, "segunda morte", pinçada do texto sadiano, marcada pela mais absoluta esterilidade. Signe que alegava não ter forças para essa empreitada, é pressionda pelo seu confessor, que argumenta ser à sua fraqueza que Deus apela (Ibid., p.100), o que não lhe dá outra saída senão aceitar, para não ser, também ela, agente da segunda morte de Cristo. Seja feita a vontade de Deus e não a dela (Ibid., 103), o que impele sua entrada no dito espaço trágico.

Lacan ressalta que em L'Otage tudo é feito para mostrar que ao ceder nessa via, Signe deve renunciar ao seu próprio ser, ao pacto de fidelidade que a ligava à sua família, às razões mesmas que davam sentido à sua vida, dado que a fé, apesar de seus esforços de restauração, não expressava, para ela, um valor tão fiável, conforme a sequência da trama vai confirmar. Porém ainda que morta em seu ser, Signe permanece viva. Levada aos limites da chamada segunda morte, pede-se à heroína que ela os atravesse. "A vida é deixada de longe, para trás...A heroína vai contra tudo que se liga a seu ser até suas mais íntimas raízes" (LACAN, 1992, p. 271). Cenicamente, no lugar do grande cruxifixo ao fundo, está agora um grande retrato do Imperador Napoleão, vestido com trajes sagrados. Neste ponto, o não, dito por Signe várias vezes, até na conversa com seu confessor, deixa de ser pronunciado e transforma-se em sintoma, num tique nervoso que a faz agitar a cabeça lentamente da direita para a esquerda, como alguém que diz - Não, conforme descreve Claudel (CLAUDEL, 1990, p. 105), conferindo ao sintoma o valor de mensagem, essa propriedade de velar, e ao mesmo tempo desvelar a articulação significante, o discurso que ele abriga.

Na seqüência da história, quando o Barão de Turelure em nome de uma "boa e lucrativa traição" deve devolver as chaves da cidade ao Rei Luis XIII, ele se vale de estratégias que colocam o primo de Signe, Georges de Coûfontaine, o último da família que restava além do filho renegado que nasce da infeliz união de Signe e Turelure, na qualidade de embaixador dessa negociação. Turelure aproveita-se para nesse momento exigir-lhe que entregue tudo o que lhe resta, inclusive o nome Coûfontaine, que irá passar ao recém-nascido. Tal situação deixa claro que o nome Turelure, é insuficiente para a função de pai, não vale muita coisa. Dessa forma, a própria restauração do poder expressa-se como efeito de uma negociata. George consente mas sabe que mais triste de que perder a vida, é perder a razão de viver (Ibid., p, 118). Além disso sabe que essa situação remete ao absurdo de o Rei, segundo Deus, tornar-se agora Rei, segundo Turelure (Ibid., p. 116). Disso resulta um fim drástico, como não poderia deixar de ser em circunstâncias como esta. No momento da devolução das chaves da cidade, dia do batizado da infeliz criança, há entre Turelure e o primo de Signe, um atentado à pistola e Signe joga-se no caminho da bala que alvejaria o marido, colhendo a morte com esse gesto, e mostrando em sua expressão facial "a beleza insensível dos ultrajes" (LACAN, 1992, p. 272).

Fica muito claro, tanto nesta quanto em outras peças da trilogia de Claudel, que a decadência não é só a de Deus, dos valores da fé, mas também de toda a organização do poder e da lei. É Signe quem assinala, quem dá o "sinal" dessa decadência no diálogo em que convoca o primo a consentir, ao dizer: "Tudo mudou, Georges. Não há mais direito, só resta um gozo. A única aliança para sempre, entre a terra e o homem é o túmulo" (CLAUDEL, 1990, p. 105). Peço que atentem para essa relação direito-gozo, pois a ela voltarei mais adiante. A terra, antes situada como o que nomeia as pessoas, estratégia pela qual estreita-se a relação do significante com o real buscando sua consistência e fazendo-o brotar da terra, esta terra está agora referida à morte, ao túmulo, ao silêncio absoluto do significante. É nessa mesma perspectiva que Signe descrê da ressurreição, e aponta as conseqúências -"Agora cada um não vai viver senão por si mesmo, à vontade (ao acaso) e não haverá mais Deus nem Senhor" (Ibid., p. 128).

Parece que a morte é suficiente para fazer o fim de um drama, não basta contudo para finalizar uma tragédia. Signe, alvejada, ainda fala, balbucia, retoma seu não nos dois finais que Claudel oferece para a peça, num deles contracenando com seu confessor e no outro, com Turelure. Ela retoma o não, não propriamente para enunciá-lo, mas para constituir-se como esse não, ou seja, para dar testemunho de que tudo está acabado até a essência, esvaziado até a última gota, conforme a frase que Turelure lê no movimento de seus lábios (Ibid., p. 153). Num dos finais aparece ainda mais reforçada a dimensão trágica da atitude de Signe, pela maneira como ela se recusa na hora derradeira a ser exortada pelo padre, seu confessor: "uma recusa absoluta da paz, do abandono, da oferenda de si mesma a Deus, que vai recolher sua alma" (LACAN, 1992, p.273). Há aí um mergulho na eterna privação de Deus. Ela não faz apelo a nenhuma reconciliação com a fatalidade. Nenhum perdão, nenhuma absolvição, nenhum laço com as negociações da vida. É nessa via que ela se recusa também a ver o filho. Ela não o quer. Nenhum objeto é capaz de iludíla, fazendo-a desviar desse caminho de finalização radical, onde o desejo se realiza na sua própria extinção.

Ao comparar a tragédia antiga a esta, chamada de contemporânea, Lacan observa que, na primeira, ao menos o Deus malvado, ao qual se referiu Paul Ricoeur em seu estudo sobre Antígona, reúne-se ao homem na Até, da qual ele é o ordenador. A Até, termo grego, fundamental para os estudos sobre a tragédia, tem o sentido de ponto onde o destino se inscreve e ao mesmo tempo, limite do que pode ser visto. Em L'Otage estamos além de todo sentido. Estamos, eu diria, no ponto de ruptura do sentido, de rasgamento do mesmo, em função de seu esgarçamento excessivo. O sacrifício de Signe só consegue atingir a derrisão absoluta de seus fins. O Papa, suposto representante de Deus na Terra, pai de todos os fiéis, a quem ela é convocada a proteger, raptado de seu lugar de origem não figura na narrativa senão como um homem impotente, sem força. Além disso, a restauração da legitimidade na cidade não passa aqui também como vimos, de uma negociata, um logro, um prolongamento da ordem subvertida (Ibid., p. 273).

Entre Antígona e Signe, Lacan faz um escalonamento do espaço trágico do « entre-duasmortes » - o já mencionado ultrapassamento da morte factual, a primeira morte, em direção à mais absoluta esterilidade, a segunda morte. Antígona toca o limite da segunda morte tendo a Até por direção. Nesse sentido, mesmo que na Até o que esteja designado seja o limite da condição humana e que sua ultrapassagem traga a desgraça por conseqüência, é em nome do Destino, em nome das Leis não escritas (SOPHOCLE, p. 79), que ela vai em direção à sua condenação, que ultrapassa efetivamente seus limites. Já Signe faz essa ultrapassagem de forma ainda mais radical. Com palavras de Lacan:

Ali, onde a heroína antiga é idêntica a seu destino, 'Até', a esta lei para ela divina, que a conduz à provação - é contra a sua vontade, contra tudo aquilo que a determina, não em sua vida, mas em seu ser, que, por um ato de liberdade, a outra heroína vai contra tudo o que se liga a seu ser até suas mais íntimas raízes (LACAN, 1992, p. 271).

Parece que na concepção de tragédia, segundo a apreende Lacan, quanto mais longe do sentido e mais próximo do belo estivermos, mais o domínio do trágico encontra seu vigor. Em tal contexto, Lacan faz menção de colhermos desse "tema da superação da passagem feita para além de todo valor da fé ... um indício de um sentido novo dado ao trágico humano" (Ibid., p. 274). Seguindo por essa trilha buscarei destacar a noção de tragédia contemporânea. Por essa via, Lacan menciona a interpretação hegeliana da tragédia na Fenomenologia do Espírito para marcar a sua discordância da perspectiva nela presente, de uma reconciliação, redenção que resolveria o impasse fundamental da tragédia pelo recurso do apelo a um vínculo que a todos sustentaria: o Absoluto. Neste ponto, da mesma forma, Lacan assinala o renascimento do vigor da contradição na interpretação de Kierkegaard, e a subsistência da dimensão trágica que não se encerra com a era cristã, conforme o testemunha a obra de Shakespeare, por exemplo (Ibid., p. 276).

As duas peças restantes da trilogia de Claudel: Le pain dur (O pão duro) e Le père humilié (O pai humilhado), girando em torno ainda mais explicitamente da questão do pai, fazem uma decomposição caricatural e mesmo abjeta da função deste. Em Le pain dur alguns recursos cênicos enquadram desde o primeiro ato, o seguinte contexto: o grande crucifixo está tombado debaixo do retrato do Rei Louis-Philippe, no qual está usando o uniforme da Guarda Nacional; ao fundo, os livros retirados das prateleiras estão, também eles, tombados pelo chão, em grande desordem.

A decomposição no cenário parece indicar uma íntima conexão entre a derrocada de Deus, a arbitrariedade do poder constituído que pode deslizar de um Napoleão para um Louis-Philippe ou qualquer outro, e a queda da crença na legitimidade da escritura que faz o texto da lei. Aqui é interessante pensar que se, por um lado, no seu esforço de adequação,a constituição da lei mesmo nas suas melhores intenções pretende representar os termos do real impossível de se atingir, visando aí uma medida para a partilha do Direito em sua aspiração de Justiça, por outro, dado a impossibilidade do estabelecimento humano dessa meta - tocar os termos do real - deixa ver, na sua pretensão, a obscenidade de seu gesto. Ou seja, o Direito ou a lei, constituída para interditar o gozo, ou melhor dizendo, para promover uma partilha do gozo: a cada um seu bocadinho para que um não avance no bocado do outro, como Lacan menciona em seu seminário Mais ainda, seria entretanto antes ato de transgressão, dado que apontaria a recusa da impossibilidade do homem de haver-se com o real. Ou de haver-se com a justa medida que lhe proporcionaria uma relação natural, da qual a relação sexual, enquanto apoiada na lei do instinto, se este vigorasse, seria o paradigma.

O desvelamento cruel da faceta obscena da constituição das leis é indicado no texto de Claudel no diálogo entre o Barão de Turelure, que continua a mesma figura abjeta, e Lumir, a noiva de seu filho Louis, a criança rejeitada que agora já conta trinta anos. Esta moça, no auge do amor por Louis, deu-lhe o dinheiro da luta dos poloneses que estava em sua confiança, mas que não lhe pertencia. Tal circunstância endossa a fórmula lacaniana, apresentada no texto dos Escritos, A Direção da Cura e os Princípios de seu Poder e extraída da parábola bíblica que diz que amar é dar o que não se tem. Depois disso, oprimida por essa traição a seu povo, dado que ela é polonesa, vem cobrar do pai o dinheiro emprestado ao filho. Como seria de se esperar, Turelure não quer pagar e no auge da discussão, ela pergunta se ele não respeita as leis, ao que ele responde: "A cada um o seu papel, o meu é de fazê-las, escancarando a dimensão da arbitrariedade, no seio deste ato.

Essa peça de Claudel trará à cena o que decorre da vigência absoluta da arbitrariedade. O dinheiro como um valor decisivo e a questão da dívida, da usurpação, da trapaça irão dominar a trama. Da relação com a terra sobrou o seu valor em moeda. A expatriação e o desterro são evocados pela figura de Lumir que como polonesa se insurge contra a ocupação russa na Polônia, e também através de Sichel, a amante de Turelure, que enquanto judia traz à baila a questão da substituição da posse da terra prometida, pela posse do dinheiro a qualquer custo, declarando-se descrente de Deus, e não esperando nenhum Messias. Louis, numa discussão com Lumir, contextualiza isso indicando que não há outra pátria senão cada um.

Lumir e Sichel tramarão a morte de Turelure, e farão de seu filho Louis o instrumento de sua execução. Louis hesita o quanto pode. Mesmo no confronto com o pai, ele ainda tenta arrancar desse velhaco alguma paternidade, algum sentimento de pai. Tenta aprender com ele alguma coisa, extrair dele algum saber, razão pela qual lhe pergunta sobre o objetivo da sua existência, ao que este lhe responde não na medida do desejo, mas, digamos, na medida da necessidade, revelando sua condição quase inumana ao dizer que o objetivo de um nadador é não afundar, não há tempo para pensar em outra coisa. Mas, ante a iminência de sua própria morte, Turelure tenta apelar aos sentimentos religiosos do filho, interpelando-o quanto à sua crença em Deus, obtendo de Louis o não como resposta, e o acionamento simultâneo de duas pistolas, que, embora falhem no tiro, acertam no alvo. Turelure morre literalmente de medo, pondo às claras a fragilidade desse pai.

Aqui também a morte em si não basta para encerrar a tragédia, ainda que seja a morte de um pai. Morto Turelure, como mencionei, de medo, de susto, Louis é deixado pela noiva, que segue em direção à Polônia com o dinheiro resgatado, e numa empreitada um bocado suicida, ao qual ele se recusa a acompanhá-la. A ruptura entre Lumir e Louis já havia sido prenunciada no gesto desta moça, que, incubida de armar as pistolas para o crime, onde já se imaginava que, provavelmente, com a covardia de Turelure, bastaria o estampido para que ele caísse morto, ela mente ao noivo e, ao invés de colocar numa das pistolas apenas um tiro de festin conforme o combinado, ela arma as duas com balas de verdade, o que revela sua intenção de levar o noivo ao cadafalso. Com isso, há umareviravolta na peça. É a Sichel que cabe toda a herança de Turelure, que havia sido, astuciosamente, por ela convencido a doá-la, por precaução, alegando que assim Louis não teria por quê matá-lo. E, apesar de tudo, Louis demostra bem de quem ele é filho ao assumir um casamento com Sichel, apropriando-se não só dos bens de seu pai, mas também de sua mulher, o que não estava excluído dos projetos desta última.

Será numa cena tocante, que reúne Louis e o pai de Sichel, um negociante que servia às trapaças de Turelure, que Claudel nos oferecerá um final eloqüente para esta tragédia. Parece que, neste ponto, estamos mais próximos da chamada segunda morte que dá a tônica ao trágico, referida aqui como a derrisão de Cristo com todas as suas implicações. Louis pede a esse sujeito, esse outro pai, Ali Habenichts " - 'haben nichts', que não tem nada, é um jogo de palavras" (LACAN, 1992, p. 282) - que ele o livre desse crucifixo, donde se desenvolve a negociação que reduz esse símbolo supremo da fé cristã a um objeto decaído, de pouco valor no mercado. Ali diz que aquilo não vale mais nada, que a chuva e o tempo fizeram dele uma coisa informe. Sichel, que participa da cena, argumenta que ele é do séc. XV. Ali retruca que ele foi despedaçado, a mãe de Louis que o recompôs, ao que este último insiste que Ali verifique, pois é de bronze maciço, convidando-o a bater com um objeto duro (uma chave, por exemplo), para verificar o som da peça. Cristo é golpeado na cabeça e merece, segundo Ali, três francos por quilo. Louis não se satisfaz e, com a mesma chave, arranha o braço da peça para mostrar a qualidade do metal, pedindo cinco francos o quilo. Por fim, Cristo, antes objeto de adoração, o filho de Deus Pai na Terra, é arrematado por quatro francos o quilo. Só aí, Claudel dá-se por satisfeito, para finalizar essa tragédia que se chama, precisamente, O pão-duro.

O trabalho de esgarçamento do sentido, até que como conseqüência de sua própria expansão desmedida, de seu excesso, se rompa, atua como a passarela que serve para abrigar o desfile dastragédias. É desta forma que entendo a tragédia contemporânea referida por Lacan como tragédia do sentido. O sentido esgarçado por Claudel nessa tragédia contemporânea passa pelo valor da crença, seja ela no Deus Pai, no amor conjugal, ou em qualquer coisa que tome o lugar de um ideal a ser atingido. Num certo plano, o ideal aparece aqui numa versão derrisória, reduzido ao capital e exposto à abertura desenfreada da economia de mercado. A lei do mercado, que comanda em tal momento, não somente na peça mas também em nossa época, desvela antes a dimensão de arbitrariedade que a de ordenação das coisas, dado que tudo fica reduzido a seu valor enquanto mercadoria, sempre sujeita à barganha. Este procedimento não está fora do campo de valores, mas o expõe na sua mais absoluta relatividade. Não estamos em uma época sem lei, mas sim, regidos por essa sua peculiar expressão, temárica que merece uma reflexão mais aprofundada.

Para entendermos as dimensões psíquicas desse esboroamento do sentido, não creio ser demais me deter um pouco mais, nas implicações da função do pai. Recorrendo a Totem e Tabu de Freud, onde a reunião de diversos mitos serve à criação do "mito da horda primitiva", podemos relembrar a proposta de que a origem da cultura advém de uma situação em que os filhos, submetidos ao poder arbitrário de um pai totalitário, gozador, dono de todas as mulheres, reúnem-se e por ódio, matam-no. Satisfeito o ódio, surge sua contrapartida, o amor e conseqüentemente a culpa que se manifestará como medo. Assim, morto o pai tirânico, faz-se imperativa a construção de um pacto entre os irmãos para que alguma ordem vigore, e para que a interdição dos filhos quanto ao gozar da mãe preserve o espaço da manutenção do desejo em sua condição radical de desejo insatisfeito. É a referência à lei que vem então, demarcar o apelo a essa ordem que busca preservar a dimensão do desejo em sua relação com a falta que lhe é motriz.

No seminário O Avesso da Psicanálise, Lacan retomará a questão do pai e por decorrência, aquestão do Édipo, para dizer que a morte do pai é aquilo com que a psicanálise lida; morte essa que não nos libera da lei, muito pelo contrário. "A morte do pai, na medida em que faz ressoar esse enunciado como centro de gravidade nietzscheano, a esse anúncio, a essa boa nova de que Deus está morto, não me parece - longe disso - talhado para nos liberar" (LACAN, 1982, p. 112). A experiência vem mostrar que se Deus está morto, isso tem como conseqüência o alastramento da interdição. A morte do pai é mesmo o que interdita o gozo, ou melhor dizendo, apropria-se do gozo do sujeito, intervém nele, como mostra o mito da horda primitiva. Nesse ponto, notem que na verdade, a questão não é apenas a morte do pai, mas seu assassinato, o que traz implicações cruciais para o gozo do sujeito. "O mito de Édipo, no nível trágico em que Freud se apropria dele, mostra precisamente que o assassinato do pai é a condição do gozo" (LACAN, 1992, p. 113). Em seguida Lacan acrescenta:

Tal como se enuncia, não mais no nível do trágico, com toda a sua leveza sutil, mas no enunciado do mito Totém e Tabu, o mito freudiano é a equivalência entre o pai morto e o gozo. Eis o que podemos qualificar com a expressão operador estrutural. Aqui o mito se transcende por enunciar, na qualidade de real - pois este é o ponto em que Freud insiste - que isso aconteceu realmente, que é o real, que o pai morto é aquele que tem o gozo sob sua guarda, é de onde partiu a interdição do gozo, de onde ela procedeu (Ibid., p. 116).

Pode-se concluir que se isso é o real, ou seja, se o pai morto (portanto, excluído, inacessível), está com o gozo, então tanto o gozo, esse aspirado gozo pleno, quanto o pai, que supostamente o deteria, estão no real, o que quer dizer que são o que para nós apresenta-se como impossível, ou no mínimo, como estando alhures, inalcançável. Isso situa o real como sendo do simbólico, o que se equivale a uma impossibilidade. O mito vem situar-se portanto, como um enunciado possível do impossível.

Por esse viés de interpretação pode-se perceber que, rigorosamente, a noção de pai real, a qual está situada em nossa origem e cuja morte está na mesma origem, configurado como um termo do impossível, coloca-se como um paradigma no sistema freudiano, com a qualidade de um operador estrutural, para além da forma como ele é tratado quando se privilegia o mito do Édipo. Isso quer dizer que o pai, tal como situado no chamado complexo de Édipo, e que viria incidir na organização dos afetos do sujeito, o pai tributário de um poder que o sujeito lhe conferiria, revela-se em verdade como um mito. Trata-se de algo perdido no real, que busca entretanto, articulá-lo. Isto é o que as histéricas sempre mostraram para Freud (Ibid., p. 92), dado que a tônica de suas queixas recaíu sempre na insuficiência do pai com relação à verdade. Tais queixas indicam portanto, o pai como castrado desde a origem, ou seja, submetido ao significante. Este, na arbitrariedade de seu remetimento à significação, indica a dimensão parcial e fragmentária de nosso acesso à verdade. Lacan critica o poder conferido por Freud à posição do pai no complexo de Édipo (Ibid., p. 93), e argumenta a esse respeito que embora já tenha articulado a castração a uma função essencialmente simbólica, ou seja, concebida exclusivamente na articulação significante, seu agente é o pai real como um efeito da linguagem, uma suposição de princípio (Ibid., p. 117). Isso mostra que a apresentação dada a esse pai original, muito antes de indicá-lo num lugar todo-poderoso, convida-o à derrisão.

Estendendo ainda mais sua crítica, Lacan observa a contradição em Freud quando, por um lado critica a religião que coloca os homens numa posição infantilizada de amor/temor ao Deus Pai e por outro, mostra-se crente quanto ao pai, quando o situa como aquele que para a criança, enquanto fonte de amor, representaria apoio e proteção: "Freud acredita que isso irá evaporar a religião, ao passo que na verdade é a própria substância desta, que ele conserva com esse mito, bizarramente composto, do pai" (Ibid., p. 94).

O que Lacan quer destacar com isso é que o pai, tal como a clínica analítica dá testemunho, aparece na configuração da criança, desde sempre castrado, ou seja, restrito à sua submissão à lei do significante. Portanto, aparece em posição suspeita e de insuficiência quanto à proteção almejada, o que não impede, obviamente, que do ponto de vista imaginário, seja possível dotá-lo de atributos de onipotência. Tal onipotência, entretanto, mostra-se em defasagem com o que a experiência cotidiana vem revelar.

A última peça da trilogia dos Coûfontaine de Claudel, nesse domínio de "perdição", terá por função ressituar o desejo. Referindo-se a Claudel, Lacan diz que "ele nos mostra, depois do drama dos sujeitos, como puras vítimas do logos, da linguagem, o que se torna o desejo" (LACAN, 1992, p. 303). Isso porque em Le père humilié surge a adorável figura da Pensée de Coûfontaine, neta de Signe, que terá a função de compensar algo do sacrifício da avó. Da análise de Lacan desta peça destacamos alguns elementos. Pensée, que em francês significa pensamento, incorpora o pensamento vivo, pensamento em carne e osso, e aparece na trama como uma linda personagem cega que se movimenta pela percepção dos ecos. Ela é animada pela paixão à justiça e apresentada como objeto de sedução, de desejo.

Parece portanto, que o desejo se tornou Pensée, pensamento. Ainda que cega e até mesmo por isso, Pensée revela o percurso que vai do desejo de pensamento ao pensamento de desejo, pensamento sobre o desejo. Isso fica claro nessa peça não só de forma tematizada, mas mais ainda, de forma efetivada, recurso pelo qual a tragédia coloca o texto em ato. A personagem Pensée evoca a figura da mulher como objeto sublime, objeto de adoração, que promovida à fascinação da Coisa(1), do objeto perdido, é suposta portadora de toda preciosidade aspirada. É a figura da mulher aparecendo como o que torna visível o desejo, embora paradoxalmente, sendo cega ela não possa ver a si própria.

Estamos em presença de um objeto de um desejo. E o que eu quero mostrar a vocês, e que está inscrito em sua imagem, é que é um desejo que não tem mais, nesse nível de despojamento, que a castração, para separá-lo radicalmente de qualquer desejo natural (LACAN, 1992, p. 302).

O que podemos verificar é que o desejo está na trama para representar a dimensão da perda, a dimensão da perda de nós mesmos, que aparece plasmada na convocação ao amor que Pensée empreende. Vejamos mais de perto como isso se dá na seqüência da peça.

A cegueira de Pensée tanto quanto o que ela oferece à visão por sua beleza, são elementoschave em seu poder de sedução. Na cadeia de parentesco, ela é filha da judia Sichel e de Louis deCoûfontaine. É o fruto do casamento arranjado entre o desterro e as armadilhas corruptas do brilho da fortuna. Por um lado, com sua cegueira ela é a presentificação mesma da falta, imagem da castração, aquela mesma que Édipo se imprimiu quando furou os olhos. Por outro, com o brilho de sua beleza, ela ofusca essa carência sem precisar negá-la. Ela tem com isso, recursos que lhe permitem estar próxima da verdade do horror da incompletude humana, dado que pode abordá-la pelo instrumento transfigurador da beleza. Isso lhe confere um poder que só pode atrair quem dela se aproxima. Essa conjugação de recurso e pobreza evoca uma associação direta com o mito do nascimento do amor como resultado da conjugação desses dois elementos: Poros e Aporia, referido por Sócrates no Banquete de Platão. Por ora quero apenas enfatizar a fecundidade da falta, desde que se tenha aparelhos para abordá-la, o que é completamente diferente da esterilidade de sua recusa obstinada, ou do ressentimento enauseante por sua incidência. Pensée sabe bem disso. No diálogo inicial da peça, já tendo escolhido um alvo para o seu amor, e ciente de poder seduzí-lo, ela responde à sua mãe: "Não é porque eu sou cega que ele deixará de ver minha parte de luz" (CLAUDEL, 1990, p. 310).

O desejo de pensamento, o qual promoveu toda a construção do edifício filosófico e que está na base da relação da cultura ocidental com o saber, onde o saber é aquilo que posso focalizar à luz do pensamento, do logos, da razão, sofre uma operação de torção nessa tragédia, ao ser figurado pela imagem dessa mulher bela e cega, que convoca ao amor, à desrazão. Desrazão em que o amor incide como esse pensamento que é encampado, possuído pelo desejo. Isso não pode deixar de trazer conseqüências para as tentativas de abordagem da verdade. A mulher como elemento operador dessa torção no logos e de sua relação com a verdade, aparece de forma semelhante na obra de Nietzsche. No Prólogo de Além do Bem e do Mal, ele parte da suposição de que a vida seja uma mulher, o que explicaria a insuficiência do dogmatismo filosófico para abordá-la. Ali assevera que a seriedade e a desajeitada insistência com que os filósofos aproximaram-se da verdade, "foram meios impróprios e inábeis para conquistar uma dama" (NIETZSCHE, 1990, p. 7). Essa articulação entre a mulher e a verdade, parece encontrar sua extensão em Assim falou Zaratustra, onde Nietzsche deixa entrever ainda, uma equivalência entre a mulher e a vida, que, traiçoeira, remete a riscos. Daí o conselho da velhinha: "Vais ter com as mulheres? Não esqueça o chicote" (NIETZSCHE, 1989 p. 82). Decorre que, no 'casamento' com a vida, o herói Zaratustra não deve esquecer o chicote para fazê-la dançar e gritar, apontando uma certa dimensão de antinomia entre a mulher-vida, e o saber, no comentário: "Naquele tempo, contudo, eu gostava mais da vida do que algum dia gostasse de toda a minha sabedoria" (Ibid., p. 232-233).

Se prosseguirmos com as implicações dessa relação da mulher com o logos, creio que podemos alinhar, de um lado, o saber racional, o logos, a vinculação do homem à civilização, e do outro, a verdade, o enigma da vida e a mulher. Obviamente não estou aqui fazendo referência a uma mulher, ou às mulheres na dimensão empírica de sua existência cotidiana. Também não estou buscando fórmulas que pretendam generalizar as mulheres (como se isso fosse possível), mas estou aqui fazendo referência à possibilidade de expressar alguma dimensão de diferença radical, que esse Outro sexo tem, indicando encantos situados além da falicidade, do poder do sentido.

Entretanto, o alinhamento proposto, como certamente deve ser o destino de todo alinhamento, desalinha-se na perspectiva em que a tragédia revela-se como campo de condensação de elementos heterogêneos, mantendo em seu seio a tensão da antinomia à qual se destina a abrigar. É assim que Pensée, pensamento, logos, é mulher (por quê não?), na tragédia de Claudel. Torção que traz, por conseqüência, a contaminação do logos por esse elemento perigoso, enigmático; elemento de alteridade radical, que traz a fatalidade e que com isso, tem o poder de afetar o que está instituído, organizado. Orian de Homodarmes - homem de armas - como no jogo de significantes Claudel sugere, é o alvo preferencial de Pensée, e não por acaso, como tentarei mostrar. O autor o situa como sobrinho predileto do Papa Pio, a quem Orian dedica máxima fidelidade.

Num baile de máscaras em Roma, lugar onde o pai de Pensée desempenha a função de embaixador, Orian, que no início da trama não sabe efetivamente quem é Pensée e nem percebe que é cega, comete a imprudência de, ao modo de brincadeira, de olhos fechados, deixar-se conduzir por ela, que sabia como transitar nas trevas, num passeio pelo jardim. Ele comete ainda uma outra imprudência, que é a de aceitar a incumbência de ser o porta-voz, frente a Pensée, do amor que seu irmão, Orso de Homodarmes, dedica-lhe. Porém ela já fizera sua escolha e tenta dissuadir Orian do caminho de santo (LACAN, 1992, p. 347), que este havia escolhido. Isso quer dizer que Orian, tendo decidido dedicar sua vida a grandes causas a serviço do Santo-Pai na carreira eclesiástica, sem se deixar cair na querela evanescente do amor carnal, vê-se, pouco a pouco, fisgado pela sedução de Pensée.

A tônica dos dois diálogos estabelecidos entre Orian e Pensée circunscreve-se diria, em torno de três temas: a fé no Pai, a felicidade e o amor. No primeiro diálogo, quando Pensée, remarcando a dimensão claudicante de seu pai, refere-se à adesão utilitária deste ao catolicismo para fazer advir sua fortuna, ela diz: "Um pai? Eu não tenho disso" (CLAUDEL, 1990, p. 338). E escandindo a questão que aí se coloca ela vai questionar a existência de Deus, vai situar Deus como uma atribuição humana, ao que Orian, defendendo a sustentação da fé como bom temente, argumenta: "Quem matará então em você isto que é capaz de morrer" (Ibid., p. 345) ? A personagem Pensée, parecendo corroborar as relações tradicionalmente apontadas entre a mulher e o demônio, segue tentando Orian. Ela pergunta-lhe se a alegria existe, e Orian responde-lhe que a alegria da qual ele precisa está ao lado do Pai, que nunca se engana. E acrescenta: "Onde está a paz em outra parte senão no Pai que não está fora de coisa alguma e que não tem raiva de ninguém" (Ibid., p. 348) ? Ela insiste que ele diga então, o que é essa alegria que não está na vida. Ao que me parece, sua resposta faz alusão à questão do gozo, talvez implicada em toda essa discussão. Quando ele menciona o limite do que disso pode ser dito, articulado no contexto também à questão do que é possível ser visto, inicia assim sua resposta: "O que eu posso dizer é que ela não começa e que ela não tem nenhum fim" (Ibid., p. 350) ? Mas, mostrando sua inexperiência com o assunto, conclui que isso está mesmo é noutra vida. Só aí Pensée revela-se cega.

 

A OPOSIÇÃO ENTRE O PAI E A MULHER

Depois desse diálogo, o moço fica completamente perturbado, confessa ao irmão seu amor por ela e arma-se a confusão. É preciso um árbitro para resolver o impasse, e eles recorrem, como não poderia deixar de ser, ao Papa Pio. Claudel aproveita a cena novamente para fazer o seu questionamento de Deus avaliando a importância da causa que Orian até então defendeu. O Papa alega que sem Deus o que resta é a morte nua e o desespero. O mais interessante, a meu ver, é a relação de troca entre o Pai e a mulher, por ele remarcada, quando lamenta, referindo-se aos sobrinhos: "Eis que vocês querem a mulher e o velho Pai não vos é suficiente" (Ibid., p. 359). Essa relação parece endossar o que estou apontando como uma oposição entre as convocações do Pai, referidas no texto como a chamada ao dever, à luz da razão, à luta, aos apelos à glória na posteridade, e as incitações da mulher, apelando ao amor, às trevas, ao risco de uma dimensão relativa de realização de desejo, o que traz sempre um ar de finalização, de morte. Aqui, no que tange à mulher, é curioso e fundamental observarmos que a idéia de expansão da vida contenha, não propriamente um apelo à sua conservação, mas um encaminhamento para um campo, onde o risco e, portanto a morte, estão sempre à espreita, sem que, contudo, representem mais fator de recuo. No segundo diálogo entre Orian e Pensée, essa idéia se apresenta claramente. Se Pensée diz que não há nada para ele ver nos olhos dela, ele responde dizendo que vê a morte que o espera sem obras e sem posteridade. E diante do espanto da moça que o interroga sobre isso, ele reitera que foi a morte que o encontro com ela o anunciou, e que foi isso que ele amou nela (Ibid., p. 402-3).

A fascinação e o horror suscitados por Pensée, são pelo visto, a fascinação e o horror pela morte. O temor da morte, repelida pelos grandes feitos, estes que visam a posteridade, desvela sua face de amor pela morte, via o efeito transfigurador que a beleza de Pensée opera, promovendo a ultrapassagem da barreira que impedia que esse amor terrível de ser visto. Aqui chega-se mais perto da verdade dessa força psíquica, a qual Freud no Além do Princípio do Prazer, nomeou de 'pulsão tanática', que encontra expressão em seu feliz amalgamento com as pulsões eróticas. O paradoxo iluminador que vigora nesse embricamento fica evidente no texto de Claudel e em tantas outras tragédias onde a temática do amor aparece ligada à morte. Nesse ponto, me reporto a Nietzsche, na leitura que faz da atração pela morte em O Nascimento da Tragédia. Conforme anunciado na verdade de Sileno (NIETZSCHE, 1992, p. 36), que diz que o melhor para o homem seria não ter nascido, não ser, nada ser, mas, sendo isso impossível, então é preferível logo morrer. Porém, se essa verdade é impossível de ser suportada, os gregos teriam inventado a tragédia para que, pela beleza da música que nela era elemento preponderante, a referência à morte perdesse sua potência depreciativa e ganhasse um poder de celebração, trazendo por conseqüência, o encorajamento.

Orian deve prestar contas ao Papa, e justifica sua transformação declarando que diante da beleza de Pensée, de sua voz soando como música, ele entrou em contato com uma parte dele mesmo o qual não acreditava existir (CLAUDEL, 1990, p. 365). Essa alusão à voz como música, penso, reafirma a fala, como um dos operadores fundamentais da experiência analítica (o outro vem a ser o amor); funciona como veículo de entrada no reino dos horrores, do qual o sujeito escapou fazendo seu sintoma. É uma outra forma eficaz de aproximação desse horror, pelo recurso de transfiguração que a musicalidade da fala propicia. Fica aqui apenas a indicação, dado que essa questão requer um desenvolvimento bem mais amplo, noutra oportunidade.

Ainda a respeito de Orian, ou melhor, à imagem que nos serve para figurar essa encruzilhada armada entre o caminho da proteção do Pai - caminho do bem(2), ou dos bens, se o quisermos - e os descaminhos do desejo. Em princípio, na conversa com o Papa, acima mencionada, Orian cede de seu desejo, acreditando não poder enfrentar os riscos do amor, dizendo que o que Pensée quer dele é a sua alma, e isso ele não pode lhe dar, já que ele mesmo não a possui (CLAUDEL, 1990, p. 377). Neste ponto ele ainda está muito "lúcido", muito "cheio de razões", o que o torna avesso ao amor, que é cego, como está expresso no dito popular. Mais tarde, na confrontação decisiva com a moça, e já de um outro lugar, ele vai acrescentar:

Eu sabia demais que isto que eu te pedia, você era bem incapaz de mo dar, e que isto que se chama amor, é sempre o mesmo - calambour - banal, a mesma taça em seguida vazia, o negócio de algumas noites de hotel, e de novo, a massa humana, a luta atordoante, esta horrorosa festa forasteira que é a vida, da qual desta vez, não há nenhum meio de escapar (Ibid., p. 396-7).

Aqui, embora a contragosto, ele já cedeu "ao" seu desejo e não "do" seu desejo. Não tem mais como escapar. E cedeu, mais precisamente, quando Pensée pergunta se ele sabe o que é uma cega, e de certo modo justificando porquê se casará com seu irmão Orso, escancara a radicalidade de sua inconsistência subjetiva, dizendo não possuir nem mesmo um corpo, dizendo que seu corpo não existe, a menos que alguém o tome, o abrace. Tal fala me remete à questão, da impossível representação da mulher, enunciada por Freud e assim referida por Lacan:

Não há propriamente, diremos nós, uma simbolização do sexo da mulher como tal. Em todo caso, a simbolização não é a mesma, não tem a mesma fonte, não tem o mesmo modo de acesso que a simbolização do sexo do homem. E isso, porque o imaginário fornece apenas uma ausência, ali onde alhures há um símbolo muito prevalente (LACAN, 1985, p. 201).

Isso quer dizer que é no jogo de antinomias que o psiquismo compõe as marcas significantes, e nesta dimensão, o feminino será referido exatamente pela ausência que ele indica. Parece então, que as trevas onde Pensée está instalada, retratam bem a condição enigmática da mulher. Ela é a própria incidência da castração, da falta, no mundo masculino do apelo ao sentido, à representação, ao phallus. É nesta diferença que está sua força. É isso o que a torna irresistível.

Na psicanálise desde Freud, e reiteradamente na obra de Lacan, o phallus tem a função de operador da dissimetria indispensável ao desejo, o que vai indicar uma certa organização da sexualidade do sujeito, que vai lhe permitir acesso ao gozo sexual. Se, na Grécia antiga, o phallus diz respeito a um simulacro do sexo masculino investido de poder, de saber e de fecundidade, celebrado em rituais religiosos, enquanto conceito psicanalítico o phallus indica a emergência do sujeito humano como sujeito de um desejo não referido às forças vitais metafísicas, mas exatamente ao ponto de ligação do sexo com a palavra, ponto que conjuga a inauguração do lógos com o advento do desejo, como se o significante fosse extraído da carne. A esse respeito encontra-se no verbete do Dictionnaire Larousse de la psychanalyse a seguinte definição: "Significante do gozo sexual ele é o ponto onde se articulam as diferenças na relação ao corpo, ao objeto e à linguagem" (LAROUSSE, p. 207).

Dessa forma, não lhe sendo atribuída substância mágica alguma - metafísica ou religiosa - o phallus para a psicanálise tem a função lógica de situar-se no hiato entre homens e mulheres, indicando a possibilidade, em última instância, de uma significação fundamental que secoloca entretanto, sempre velada e alhures. É desta forma que essa mulher, Pensée, de maneira demoníaca, vai contaminar com seu desejo, tanto Orian, quanto seu irmão Orso, através do que oferece como falta e do que sua beleza vela. Situando-se nesse ponto de articulação, no qual opera na fantasia deles como objeto a, conceito lacaniano que indica o o que vem em lugar do objeto perdido na inauguração da função desejante. Pensée aí, embora emitindo um brilho fálico, indicativo da presença velada de uma preciosidade secreta, remete ao mesmo tempo, à condição radical de carência que sua cegueira vem representar.

Quando Orian admite seu amor, embora relutando a plasmá-lo num Je t'aime, ele, mordido pelo desejo, parece confrontar-se com a insuficiência e a traição presentes na relação entre o significante e a dimensão de significação, quando alega que mal acabaria de pronunciá-lo, e isso deixaria de ser verdade. Nesse momento, ele já está bem próximo da partida para uma guerra na qualsabe que vai morrer. É ao encontro desta que ele vai, mas justifica: "Se eu morro, Pensée, é que sem dúvida não tinha nenhum outro meio para mim de penetrar até você" (CLAUDEL, 1990, p. 400).

O que temos nessa trilogia é a revelação da tragédia como tragédia do desejo, na qual a dimensão de sentido, de significação, levada ao seu ponto extremo, revela a falta da qual o desejo, em última instância, provém. A exposição disso na articulação entre amor e desejo, que a última peça vem tematizar, coloca em cena, penso, a incompatibilidade entre a infinitude do desejo e a finitude dos objetos amorosos que em seu caminho atravessam. A vinculação a um objeto eleito na tragédia, só pode ganhar um tom célebre, um lugar, se esse objeto desaparecer em sua efemeridade, o que lhe impõe sua própria desaparição. O que é amado revela situar-se para além do que o objeto comporta, o amor revela-se aí como 'inobjetável'. Por isso, o amor trágico exige a extinção de seu objeto. Caso contrário, teríamos um romance ou um drama, gêneros habitados pela crença na complementariedade amorosa, quer ela se apresente como bem sucedida ou frustrada. A tragédia traz à cena não a frustração, mas a impossibilidade de haver essa complementariedade desde sempre perdida, o que é o pano de fundo da frase bombástica que Lacan não cansa de repetir ao longo de todo o seminário Mais ainda: "A relação sexual é impossível", a qual provoca sempre um efeito de estranheza. O que desejo ressaltar é essa característica de insuficiência, inadaptação, inadequação, na possibilidade de qualquer objeto do mundo natural vir a responder, de forma plena e definitiva ao desejo, a não ser à condição de sua própria dissolução.

As tragédias parecem ser constituídas para encenar o impossível encontro de um suposto campo da necessidade com o campo do desejo. É dessa maneira que paradoxalmente, eu diria que a tragédia toca o impossível, nela ele ganha forma, enredo, desvelando os efeitos da incidência do impossível na trama da vida humana. Parece-me que essa é a dimensão de desmedida, de ultrapassagem que faz com que a tragédia nos remeta sempre a alguma espécie de monstruosidade que entretanto, ao invés de nos deprimir, nos faz sentir mais encorajados, como se o efeito letal da aproximação à verdade encontrasse na tragédia alguma forma de transfiguração. Pensée, situada na articulação entre o amor e o belo, magistralmente apresentado no discurso de Sócrates no Banquete, de Platão, encarna uma potência transfiguradora que possibilita uma incidência menos terrível desse impossível. Mesmo, a morte desse objeto ao qual seu amor estava endereçado, Orian, não é suficiente para extinguir esse amor. Ao contrário, em sua condição desejante o amor se perpetua na relação com algo que ele vislumbra para além, além até mesmo da vida.

Curiosamente nessa terceira peça da trilogia, ainda sobra algum resto de remetimento ao objeto. A renúncia de Pensée não parece tão radical quanto a renúncia de sua avó, Signe, que estende seu não a tudo, até mesmo ao filho que acabara de nascer. Ainda antes de partir, Pensée teve um encontro sem palavras com Orian, como diz o texto, em cuja ocasião ela engravida, o que Orian só vem a saber por uma carta que a mãe dela lhe enviou. Ele recebe-a pouco antes de morrer, como previsto, no campo de batalha. O resultado disso é que, conforme o pedido de Orian na hora de sua morte, as coisas ficarão arranjadas pelo casamento casto de Pensée com Orso, seu irmão, onde a tragédia mostra que a união das almas é paga com o sacrifício dos corpos.

Como mencionei anteriormente, Pensée segue amando, malgrado a perda do objeto de seu amor. Mas desse objeto sobra um resto, o filho que esse amor engendrou, e que mexeu pela primeira vez em seu ventre no momento em que ela aspirou o perfume de uma corbeille de flores que acabara de receber. Flores essas, que como em breve ela saberá por Orso, brotaram da terra que abrigava o coração sepultado de seu amado. Esse fruto "fora da lei" é desejado como aquele que é chamado a ver o sol em seu lugar (Ibid., p. 439). O que, a meu ver, dá um tom menos fatalista a essa última peça da trilogia.

Pensée engendra desejo, idéia sublinhada por Lacan ao indicar que, para se delinear a constituição do desejo num sujeito é preciso tomá-lo em seu encadeamento. Tal constituição, diz o autor, não parte apenas de um ponto, mas de um conjunto, que sugere ser de três tempos decompostos na explosão, ao fim da qual realiza-se a configuração do desejo. "É por essa razão que não há necessidade, para situar a composição do desejo num sujeito, de remontar, numa recorrência perpétua, até o pai Adão. Três gerações bastam" (LACAN, 1992, p. 286). É isso o que ele tenta, não apenas dizer, mas mostrar, pela análise da decomposição da incidência do desejo nesta trilogia de Claudel.

No primeiro tempo, na primeira geração no curso do desejo, é imprescindível a marca, a marca do significante, "que é ilustrado ao extremo, e tragicamente pela imagem de Signe de Coûfontaine" (Ibid.) que, conforme vimos, é o sinal da ultrapassagem de todas as ligações com o sentido e com a fé, e que encontra a dissolução de seu próprio ser. Na segunda geração vêem-se os efeitos da recusa que incidiram sobre o filho, Louis de Coûfontaine, "o objeto enquanto não desejado" (Ibid.), e a configuração da mais absoluta derrisão de todos os valores. Disso resulta, numa terceira geração, a focalização daquilo de que efetivamente se trata, dado que tudo o mais não é senão encobrimento. Da marca do significante, recoberto por essa dimensão radical de recusa, fazendo com que toda condição torne-se "perdição" (Ibid., p. 298), e da apresentação do objeto como não desejado - leiloado no mercado da dívida para com o destino - desemboca o objeto do desejo, "aquela que virá encarnar a luz buscada obscuramente, ... Pensée vai se tornar o objeto encarnado do desejo daquela luz" (Ibid., p. 295).

Lacan ressalta que o desejo pela luz já havia feito sua incidência na trilogia através da personagem Lumir (Claudel sugere que se pronuncie Loum-yir), a qual será referida pelo Papa Pio como "a luz, a cruel luz". Pensée - como vimos, cega - apresentada da maneira mais comovente, não brilha como um objeto pleno, como plenitude, mas essencialmente como parcialidade. Neste ponto, Lacan afirma:

O que quer dizer Claudel com Pensée cega é que basta que a alma, já que é da alma que se trata, feche os olhos ao mundo - e isto é indicado através do diálogo da terceira peça - para poder ser aquilo que falta ao mundo, e o objeto mais desejável do mundo. Pensée, que não pode mais acender a lâmpada, atrai, se posso dizer, aspira para si o ser de Eros que é falta (Ibid., p. 301).

Partindo do pressuposto de que a tragédia é o que coloca em ação, a seu modo, um mito (LACAN, 1992, p.113), pode-se perceber que a reunião da análise de Lacan da trilogia dos Coûfontaine, em seu seminário da Transferência na unidade intitulada O mito do Édipo hoje, é bastante pertinente. Essa trilogia parece mesmo exemplar para a exposição da maneira como as circunstâncias contemporâneas deixam suas marcas na trama da composição mítica do desejo. As diferentes formas de abordagem da lei, que cada época configura, faz sua incidência na própriacomposição da função desejante. O sentido da lei, para Édipo, e a forma como ele encaminha seu desejo, configurado, sobretudo em nossa perspectiva, como desejo de saber, não é igual ao sentido da lei que domina essa trilogia, nem à maneira como nela a explosão do desejo na expressão soberana da libido revela seus elementos estruturais. Ou seja, creio ser possível perceber que o sentido, esgarçado na tragédia antiga que aborda o mito de Édipo, revela diante da explosão do desejo, em face à sua decomposição, elementos que mostram que a trilha percorrida por esse mesmo desejo é completamente diferente daquela que esse mito contemporâneo de Claudel expõe.

 

PARA CONCLUIR, ALGUMAS IMPLICAÇÕES ÉTICAS:

Penso que a arte trágica torna possível demonstrar e de certa forma, permite que experimentemos, a uma certa distância, os limites extremos onde o desejo encontra-se com o termo absoluto de sua realização, o que vai comportar a própria finalização do sujeito. Nesse sentido na trilogia de Claudel, aqui examinada, podemos ver configurada, na primeira peça o logro do sentido, no qual o desejo distende-se na absoluta desmedida, culminando no radical aniquilamento que se encarna na personagem Signe. O que se coloca na segunda peça, portanto no centro da trilogia, parece ser a maneira derrisória com a qual os recursos da cultura, de forma especial no mundo contemporâneo, deixam o sujeito ao desabrigo para lidar com a voracidade das exigências de satisfação libidinal. Aqui localiza-se a inflação da economia libidinal, que, via os efeitos do discurso, toma diferentes expressões econômicas. Na terceira peça da trilogia, apesar de estar assinalada incisivamente a incompatibilidade entre a infinitude do desejo e a efemeridade do objeto, pela operação minuciosa de uma certa abordagem do amor, sobra um resto - um fruto "fora da lei", figurado como o filho de Pensée, por onde o desejo é relançado.

Quando Lacan afirma que a morte do pai é aquilo com que a psicanálise lida (LACAN, 1992, p.112), e ao mesmo tempo, assinala a tragicidade como característica marcante na contemporaneidade, ou seja, num momento em que, mais que a derrisão, configura-se a humilhação do pai, não me parece indicar com isso uma situação necessariamente fatalista e catastrófica para nossos tempos. Temos visto que o temor/amor ao pai na dimensão que for, não garante efetivamente uma organização menos perversa, ou mais satisfatória. Teremos de abrir espaços transfiguradores na cultura, para que a lida com os horrores que rondam a existência, enquanto não garantida por nenhum pai, possam encontrar um lugar de expressão. Creio que é exatamente nesse sentido que a psicanálise faz a sua incidência, e que determinadas manifestações na arte a ela somam-se nesse intuito para ampliar e contribuir, como parece ter acontecido na Grécia antiga através da arte trágica (e das experiências que dela reverberaram através de todos tempos), o que nos coloca em contato com uma forma de expressão, que não recalcaria, nem recusaria, nem rejeitaria os horrores da vida, mas promoveria um contorno, uma organização que nos permitiria abordá-los.

A intervenção do psicanalista no setting clínico, assim como da psicanálise na cultura, não podem deixar de levar em conta essa perspectiva, sob a pena de perder a marca da peculiaridade que delineia sua perspectiva ética. No seminário As Psicoses, Lacan alerta:

Ser psicanalista é simplesmente abrir os olhos para essa evidência de que não há nada mais desbaratado que a realidade humana. Se vocês crêem ter um eu bem adaptado, razoável, que sabe navegar, reconhecer o que tem de ser feito, levar em conta as realidades, não resta senão mandá-los para longe daqui. A Psicanálise, nisso se juntando à experiência comum, mostra-lhes que não há nada mais estúpido que um destino humano, ou seja, que sempre se é passado para trás. Mesmo quando se faz alguma coisa que dá certo, não é justamente o que se queria. ... A análise é perceber isso e levá-lo em conta. ... Dizemos para nós mesmos que as pessoas felizes devem estar em alguma parte. Pois bem, se vocês não tiram isso da cabeça, é que não compreenderam nada da Psicanálise" (Ibid., p. 112).

 

Notas

(1) Coisa, das Ding, termo pinçado por Lacan da obra de Freud o qual se refere ao suposto objeto que complementaria o sujeito, perdido na inauguração da função desejante. Vide: « As vicissitudes da Coisa' de meu livro Nau do Desejo, onde me estendo sobre sua abordagem.

(2) Fico tentada aqui a observar, ainda que com certa liberdade, que não deve ser à toa, que a história do pensamento filosófico tradicional sobre a ética tenha como marco referencial o texto Ética a Nicômaco, onde Nicômaco, não é ninguém mais do que o pai de Aristóteles, autor do texto.

 

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SOPHOCLE: Théatre Complet, Paris, GF-Flamarion, 1964.         [ Links ]

 

 

Recebido em : 5/3/2012
Aprovado em : 14/8/2012