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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.12 no.spe Rio de Janeiro set. 2020

 

ARTE

 

Protesto artístico: Copacabana, praia de memórias!

 

Artistic protest: Copacabana, beach of memories!

 

Protesta artística: Copacabana, playa de los recuerdos!

 

 

Edson Luiz André de Sousa

Psicanalista. Analista membro da APPOA. Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: edsonlasousa@uol.com.br

 

 

Em 1948, Vinicius de Morais estava em Los Angeles onde escreveu um poema evocando Copacabana, esse lugar tão inspirador e emblemático de um Brasil que já tivemos e que agora parece que estamos perdendo, como a areia que escorre por entre os dedos. O poema inicia com estes versos:

Esta é Copacabana, ampla laguna
Curva e horizonte, arco de amor vibrando
Suas flechas de luz contra o infinito.
Copacabana, praia de memórias!
Quantos êxtases, quantas madrugadas
Em teu colo marítimo!

A Copacabana de Vinicius foi palco, no dia 11 de junho, de uma cena que confrontou dois mundos que habitam este país e que merece nossa atenção, para que possamos saber um pouco mais sobre a deriva que vivemos como nação. De um lado, a lógica da arquitetura da destruição e a intolerância mais covarde diante da dor de um semelhante enlutado; de outro, a aposta na vida, na linguagem, na solidariedade.

 

 

Tudo começou com uma manifestação da ONG Rio da Paz que simbolicamente simulou 100 túmulos na praia de Copacabana como homenagem às milhares de mortes no Brasil pela pandemia da Covid-19. A imagem é forte, pois mostra uma cicatriz na beleza daquela paisagem, convidando a uma pausa para reflexão. O luto é uma experiência de pausa, de trabalho psíquico para pensar no que perdemos, como perdemos e como vamos superar essa perda. Nosso país tem perdido muitas vidas. Hoje já são mais de 50 mil vitimas da pandemia, mas também tem perdido espaços de solidariedade, de esperança, de confiança. São milhares de vitimas pelo vírus, mas também uma enormidade de vítimas pela violência, racismo, negligência do Estado justamente com relação aos mais vulneráveis. Um cenário trágico de destruição. Márcio Silva, um taxista, caminhava pela praia de Copacabana e comovido pela imagem que viu à distância, aproxima-se da manifestação pensando no filho Hugo de 25 anos que perdera havia três semanas, vítima da pandemia. Ele relata que, ao ver as cruzes na areia, logo pensou que uma das cruzes representava seu filho. Havia uma discussão em que várias pessoas insultavam os manifestantes, chamando-os de "esquerdistas" como se fosse a pior das palavras. Não se tratava disso. A ONG Rio da Paz já fez muitos protestos endereçados a muitos governos. Um homem ensandecido e muito alterado, subitamente, ao calor dos xingamentos, entra naquele lugar sagrado da memória e, selvagemente, começa a derrubar as cruzes. A cena é assustadora e, como estamos no campo do simbólico, ele literalmente profana essa memória. Ninguém reage.

Márcio resolve entrar em cena e recolocar as cruzes no lugar sendo vaiado por muitos e aplaudido por alguns. Ele diz:

Quando viram meu ato, primeiro começaram a me chamar de esquerdista e outras coisas. Eu disse que era apenas um pai que exige respeito. O próprio cara que estava derrubando parou de derrubar. Não sei nem o que é comunismo, p'ra falar a verdade, eu não estudo isso. Também não chamo ninguém de fascista, porque eu não sei o que é fascismo, eu não estudo isso. Eu nunca li livros sobre isso. Agora, desrespeito eu sei o que é. Intolerância eu sei o que é.

Márcio recoloca as "flechas pretas de luz" no seu lugar, como escreve Vinicius, instaurando dessa forma um novo espaço para o infinito da memória. A destruição ali é da memória, traço sintomático e histórico no Brasil, que esquece rapidamente seus mortos, sacrificando-os duplamente, já que os impede de ter um lugar de memória. São histórias apagadas, desaparecidas! Assim, Márcio restitui o que Vinicius de Morais escreveu no poema "Copacabana, praia de memórias!".

 

 

Márcio reconstrói nossa honra e uma esperança de Brasil. Ele não impede o agressor de derrubar. Enquanto um derruba, ele recoloca. Temos aí, de forma cristalina, o trabalho do ódio de um lado e, do outro, uma tentativa de reparação pelo amor e solidariedade. Márcio diria, em uma entrevista, dias depois:

Pensei: eles podem derrubar cem vezes que eu vou recolocar cem vezes. Agora o ódio é contra a gente, contra nós que somos vítimas. Eu não tenho nada a ver com política, quero apenas respeito à minha dor, à dor de outras vítimas.

Estamos diante de uma manifestação de luto, que, sabemos, precisa ser sempre elaborado coletivamente. É por isso que os rituais são tão importantes neste trabalho psíquico tão doloroso e tão fundamental para a reconstrução de espaços de vida. A violência é cega a estes princípios que nos fazem humanos desde sempre. O desafio que estamos tendo de elaborar tantas mortes, ao sermos privados desses rituais é inominável. A manifestação acabou evocando para Márcio um espaço possível de luto e, por isso, sua indignação diante do desprezo destas pessoas por sua dor:

Será que eles não entendem a minha dor de ter que ir no (sic) hospital, reconhecer o corpo dele, não poder abraçar, não poder cuidar, não poder botar uma roupa nele, ver ele (sic) ser jogado dentro de um saco. Será que não entendem que não pude velar meu filho? Aquele fato me fez perguntar até onde chega à desumanidade de não ter empatia com o outro. Esse pessoal parece que procura inimigos o tempo todo. Todos que não pensam como eles são inimigos. Fiquei muito triste com essas pessoas, porque estou vendo isso em amigos próximos. Parece que perderam a razão, não dá nem para você conversar. Parece que não pensam mais. É puro ódio. Tudo para eles é política, mesmo onde não existe. Por isso, o ato simbólico é mais importante.

 

 

Fiquei muito sensibilizado ao ver a cena e, sobretudo, esta breve entrevista que tive a oportunidade de ler. São palavras que restituem a condição de sagrado da dor do outro, que abrem um espaço de pausa para os que aplaudiram o gesto selvagem possam, quem sabe, perguntar o que ainda resta de humano quando celebram atos de barbárie como este. Lembro nestas horas do trabalho "Aplauso", do artista catalão Antoni Muntadas. Outro detalhe não menos relevante e que deixo anotado aqui, pois diz do tempo que vivemos, é que um estava de máscara e o outro não. Márcio pondera: "Esse grupo também era muito específico, nenhum deles usava máscara. Eu uso máscara não só para me proteger, mas também em respeito ao outro".

Quem leu o texto até aqui colocou junto comigo o pé na areia e aproximou-se da indignação do Márcio, que reconstruiu, para todos nós, um pouco deste país dilacerado. Teremos muitas feridas abertas e algumas cicatrizes pela frente. Teremos que cuidar para que as cicatrizes continuem, por muito tempo, contando estas histórias para as gerações que virão depois de nós. Quem sabe em algum outro tempo, Copacabana possa voltar a ser a praia do êxtase, do encontro, da tolerância, da paz! Diz Márcio:

E se eu fosse um cara violento, se não fosse um cara da paz? Não fiz nada contra eles, só recoloquei as cruzes. Se eu não estivesse bem, em vez de recolocar eu poderia impedir ele (sic) de tirar. Mas é assim que nós temos que agir. Temos que agir diferente. Meu ato foi de amor e solidariedade, se eu fizer um ato de ódio eles estarão me vencendo.

 

 

Márcio reescreve um mapa possível de uma nação que talvez possa novamente sonhar com outros horizontes, menos sombrios; recoloca cruzes em seu lugar, como quem coloca os novos faróis que precisaremos ter para iluminar a travessia que nos espera depois disso tudo.

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