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Revista EPOS

versão On-line ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.1 no.1 Rio de Janeiro jan. 2010

 

Poder e resistência à escola por uma escuta compreensiva e não coercitiva1

 

 

Wedencley Alves

Doutor em Lingüística pela Unicamp. Com esta pesquisa, participa do projeto "Juventudes, Subjetivações e Violências ", financiado pela Faperj

 

 

Meu filho sempre voltava arrasado do Colégio. Só agora depois de um ano e em outra escola, estou conseguindo convencê-lo de que ele não é um incapaz.

Relato de um pai

 

1. Introdução: Questões de base

Caminhando muitas vezes ao par com a oficialidade institucional, já se produziu uma quantidade considerável de diagnósticos sobre as contradições existentes entre os discursos e práticas das instituições brasileiras (justiça, polícia, escola, administração pública etc.) e os sentidos que se compõem às margens destas mesmas instituições. Estes diagnósticos geralmente buscam a identificação dos problemas, para a elaboração de mecanismos com fins "terapêuticos ": normalmente a esperança é depositada sobre o Estado e o que este deve fazer para operar sobre a população de forma que ela se reaproxime ou se enquadre no âmbito da ordem pública (da ordem jurídica, da ordem urbana, da ordem educacional, e da autodisciplina dos corpos).

A escuta dos "sujeitos da desordem ", quando há, dá-se na direção de uma "anamnese " com vistas a um "diagnóstico " e possíveis meios "de cura " dessa inadequação entre sentidos institucionalizados e práticas sociais. Não é muito distinta, portanto, da afirmação de Michel Foucault de que as ciências sociais e humanas se estabelecem sobre o modelo da medicina clínica nascente e num certo imperativo de medicalização da sociedade.

Ainda que mais audíveis/visíveis, as vozes e gestos que reafirmam os sentidos estabilizados pelas instituições policiais e educacionais e que entoam os padrões aceitáveis de disciplina dos corpos (significada como falta de educação, civilidade etc.) devem convivem lado a lado com as pequenas infrações contra a ordem urbana, contra o mercado lícito e mesmo contra a ordem da língua, isto é, a gramática e o bem dizer. Este quadro que nos parece, por vezes, generalizado de ações contra as normas suscita a reação de setores moralistas da sociedade, que atribuem esta permissividade a fatores (de inferioridade) cultural, educacional, regional, econômica e mesmo racial. Suscita também o temor dos demais sujeitos que se sentem ameaçados pela imprevisibilidade dessas práticas discursivas.

O objetivo desta pesquisa foi propor uma "escuta ". Uma escuta dos discursos que vão de encontro aos discursos institucionalizados, mais especificamente para nossos propósitos, os discursos institucionalizados da escola.

Se tomarmos "instituição " como materialidade e dispositivo de estabilização do sentido, é justamente a escuta do que ficou à sombra que nos permitirá compreender o funcionamento daqueles discursos que justamente desestabilizam as instituições, reordenam o urbano em caminhos não previstos, ferem a estética oficial, desafiam a administração dos corpos na cidade. Uma escuta dos sentidos marginais, portanto.

Trabalhamos2 com duas escolas distintas, ambas situadas no Grande Rio. Tomamos dois grupos de alunos, entre 11 e 14 anos, um em uma escola particular e outro em escola pública, grupos que acabaram suscitando questões distintas, mas tanto num quanto noutro caso, nas ocorrências consideradas "desviantes" foi que encontramos a oportunidade de escutar "um outro dizer", "discursos submersos" que punham em risco à reafirmação institucional. Num caso, nos debruçamos, com a assistência de pesquisa da professora Kátia Praça, professora do Estado, sobre três alunos, considerados "problemáticos" em relação à rotina escolar3 : recusa em participação de atividades, erros aparentemente intencionais sobre as atividades propostas pela professora, silêncio renitente, deslocamento em relação ao grupo, e outros indícios de resistência.

Noutro caso, contamos com a observação participante da professora Arielly Figueira, de uma escola particular4, onde nos detemos sobre as queixas, sobre contradiscursos um pouco mais elaborados de resistência à escola.

Para uma análise de discurso, são as redes de paráfrases – sentidos que se repetem – que nos interessam, de forma que poderemos ter muito a dizer sobre as "outras ações contra as normas ". E nesse sentido a escuta daqueles que geralmente são tomados como objetos de análise e não como sujeitos do discurso pareceu-nos reveladora: há proximidades produtivas entre alunos de uma escola e outra, ainda que pertencentes a classes sociais, cidades e realidades urbanas distintas. Tais proximidades, portanto, constituíram regularidades contradiscursivas, que se materializaram em textualidades diversas, como, no caso do CIEP,.através de desenhos e não de textos.

 

2. Compreender outras discursividades

Compreender como as discursividades cotidianas são permeadas por posições ideológico-discursivas, por vezes e potencialmente antagônicas, é compreender, para além da expressão-valise "senso comum ", como o acontecimento discursivo desencadeia identificações subjetivas. É compreender, no entanto, de que forma o discurso funciona para e pelos sujeitos.

O sujeito do discurso apresenta-se como um duplo: sujeito da enunciação, o locutor, e um sujeito universal, aquele que ancora seu dizer nas condições de verdade, previstas no complexo interdiscursivo. Para Paul Henry (1992), esse desdobramento é constitutivo do sujeito do discurso e mostra, entre outras coisas, que, se há alguma capacidade de formulação autônoma de um lado – intradiscursiva –, por outro é sempre remetendo ao complexo interdiscursivo que o sentido se instaura. Pêcheux (1997) interpreta esse desdobramento sob a relação entre pré-construído, "que fornece-impõe a ‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma da universalidade", "o mundo das coisas" e articulação ou efeito-transverso, que representa no interdiscurso aquilo que determina a dominação da forma-sujeito.

O discurso transverso aparece, por exemplo, na inserção de cláusulas de "verdade " na sequência sintagmática. Essa articulação no lugar da autonomia do sujeito – a formulação e/ou intradiscurso – é que o faz identificar-se, por vezes num sentimento de quase coautoria, àquela verdade.

Pêcheux vê a possibilidade de que aquele desdobramento possa assumir diferentes modalidades. Duas das quais ele considera evidente:

1 A primeira modalidade consiste numa superposição (um recobrimento) entre o sujeito da enunciação e o sujeito universal, de modo que a "tomada de posição " do sujeito realiza seu assujeitamento sob a forma do "livremente consentido ": essa superposição caracteriza o discurso do "bom sujeito ", que reflete espontaneamente o Sujeito (em outros termos: o interdiscurso determina a formação discursiva com a qual o sujeito, em seu discurso, se identifica, sendo que o sujeito sofre cegamente essa determinação, isto é, ele realiza seus efeitos "em plena liberdade ").
2 A segunda modalidade caracteriza o discurso do "mau sujeito ", discurso no qual o sujeito da enunciação "se volta " contra o sujeito universal por meio de uma "tomada de posição " que consiste, desta vez, em uma separação (distanciamento, dúvida, questionamento, contestação, revolta...) com respeito ao que o "sujeito universal " lhe  "dá a pensar ": luta contra a evidência ideológica, sobre o terreno dessa evidência, evidências efetuadas pela reação, revertida a seu próprio terreno. (...) Em suma, o sujeito, "o mau sujeito ", "mau espírito ", se contraidentifica com a formação discursiva que lhe é imposta pelo "interdiscurso " como determinação exterior de sua interioridade subjetiva, o que produz as formas filosóficas e políticas do discurso-contra (isto é, contradiscurso). (Idem, 215)

Estas posições antagônicas, vetores de interpretação, dão-se ainda no interior da forma-sujeito, o sujeito do discurso, já que, como afirma Pêcheux, o interdiscurso continua a determinar a identificação ou a contraidentificação do sujeito com uma formação discursiva, na qual a evidência do sentido lhe é fornecida, para que "ele se ligue a ela ou que a rejeite ".

Estas modalidades de identificação subjetiva tanto dizem respeito aos conhecimentos científicos, que encontram tradicionalmente na escola o seu ponto de transmissão, quanto às práticas políticas reconhecidas institucionalmente ou não. Diríamos que a Escola tem um papel duplo a desempenhar, tanto na medida em que ela atua na transmissão/consolidação dos conhecimentos científicos, quanto na fixação de uma realidade política.

Levando-se em conta o que acabamos de ver, pode-se dizer que o aparelho escolar contribui para essa penetração-inculcação de uma maneira específica, que é a de simular a "necessidade-pensada " dos conhecimentos científicos sob a forma de evidências ideológicas de diversas naturezas, numa intrincação tal que a "incompreensão" (a dúvida, a resistência e a revolta) daqueles que sentem a escolarização como uma intrusão, um momento desagradável pelo qual têm que passar etc. (isto é, a grande massa dos explorados do modo de produção capitalista) é um sintoma que traduz ao mesmo tempo a separação objetiva do trabalho manual e do trabalho intelectual nesse modo de produção, e também a resistência espontânea dessa massa a essa penetração-inculcação, o que, no conjunto, caracteriza o que é chamado às vezes de seu ‘mau espírito'. (Idem, 224)

A contraordem que tanto apavora os setores oficiais e dominantes da sociedade pode ser objeto de preocupação e, não discordamos, aponta para uma contínua e progressiva desinstitucionalização da sociedade brasileira. Ela pode, no entanto, ser objeto para outra abordagem teórica, e motivar análises em trabalhos de campo produtivos no sentido de que se deve dar-se à escuta desses discursos, sem os mesmos fins terapêuticos. Mas o que mais nos chama a atenção é que geralmente é o discurso escolar que entra como lugar da verdade sobre as cláusulas de quem enuncia suas preocupações com essa "carência " de institucionalização. Ou seja, se por um lado a teoria propõe comumente medidas terapêuticas; por outro, certos setores da sociedade esperam, atribuindo o fenômeno à má-educação, por medidas corretivas.

 

3. Caminhos

Dar-se à escuta dos discursos e dos sujeitos de discursos significa tentar compreender como aqueles funcionam e como esses se posicionam, sem que necessariamente os sentidos institucionalizados sejam parâmetros, mas apenas o seu outro-constitutivo. Isto é: compreender que, e é essa a nossa hipótese, podemos estar diante do funcionamento de um discurso divergente e não de um fracasso escolar, desvio, falha, falência ou anomia institucional.

A hipótese, aparentemente confirmada, é de que há um funcionamento discursivo paralelo àqueles discursos considerados legítimos pela instituição escolar. E este muitas vezes se estabelece pela recusa, pela autocensura, ou por um corporalidade rebelde. Além disso, esse discurso, embora não esperemos ser tão consistente como um discurso institucionalizado, ou por isso mesmo, encontra meios de vocalização distintos deste. Daí a observância de questões como o humor e a gestualidade dos estudantes. Pois que o que é silenciado na palavra pode voltar em forma de chiste, de lapso, de ato falho, ou de um gesto.

 

Referências bibliográficas

BIRMAN, Joel. Entre cuidado e saber de si, sobre Foucault e a Psicanálise. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.         [ Links ]

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DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano, as artes do fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.         [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002.         [ Links ]

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HENRY, Paul. A ferramenta imperfeita. Campinas, SP: Educamp, 1992.         [ Links ]

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PFEIFFER, Claudia. Cidade e sujeito escolarizado. In: ORLANDI, Eni. (Org.). Cidade atravessada. Os sentidos públicos no espaço urbano.

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SANTANA, Wedencley A. É nóis, já é. Sentidos marginais nas discursividades cotidianas. CD-ROM do Evento Giros da Cidade. Campinas, SP: Labeurb, 2004.         [ Links ]

WANDERLEY, Claudia. O corpo, a cidade: repetição. In: ORLANDI, Eni. (Org.). Cidade atravessada. Os sentidos públicos no espaço urbano.

 

 

1 Relato de pesquisa de pós-doutorado em andamento, produzida para o Instituto de Medicina Social, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, iniciada em 2007, sob a supervisão do professor Joel Birman.
2 A pesquisa só foi possível com a assistência de duas professoras que fizeram a coleta de material in loco: professoras Kátia Praça e Arielly Figueira, ambas do Ensino Fundamental. A decisão de trabalhar com estas professoras veio do fato de que minha presença em sala alteraria completamente a rotina escolar a ser observada. Nossa participação se deu a partir desse material imprescindível e determinante coletado por estas profissionais, cabendo a mim a orientação e as demandas, além da compreensão discursiva. Em um dos casos, o de Arielly Figueira, o material serviu também para a produção de sua monografia de pós-graduação em Língua Portuguesa, realizada na Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro.
3 Pesquisa-ação produzida num CIEP da cidade de Belford Roxo, região metropolitana do Rio de Janeiro.
4 Colégio Equipe, da cidade de Nova Iguaçu, situada na mesma região, que é a Baixada Fluminense.

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