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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.10 no.3 Porto Alegre ser./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.84810 

ARTIGOS

 

Alfabetização escolar e acoplamento tecnológico: práticas de autoria e subjetivação

 

School literacy and technological coupling: authorship and subjectivity practices

 

Alfabetización escolar y acoplamiento tecnológico: prácticas de autoría y subjetividad

 

 

Maria de Fátima de Lima das Chagas; Nize Maria Campos Pellanda

Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Santa Cruz do Sul, RS, Brasil

 

 


RESUMO

Este texto trata de uma experiência vivida com estudantes do 5º ano de uma escola pública localizada no interior do Rio Grande do Norte em uma área de periferia. A experiência teve como objetivo viver práticas de alfabetização com estudantes não-alfabetizados na faixa etária de 10 a 16 anos, considerando suas subjetividades, seus percursos de vida e suas interações com tecnologias digitais. A pesquisa é fundamentada teoricamente nos estudos sobre acoplamentos humanos-tecnologias em seus contextos de vida abordado por Simondon (2007) e na teoria da biologia da cognição de Maturana e Varela (2011), onde conhecer é condição de vida. Na metodologia, a cartografia possibilitou acompanhar os processos vividos nas oficinas e nas rodas de conversas. Como resultados, os estudantes conseguiram produzir com autonomia seu percurso de alfabetização, para isso algumas tecnologias contribuíram para a reinvenção de seus modos de aprender.

Palavras-chave: Autoria; Tecnologias Digitais; Narrativas de si; Aprendizagens.


ABSTRACT

This text deals with an experience lived with students of the 5th year of a public school located in the countryside of Rio Grande do Norte in a peripheral area. The experience aimed to live literacy practices with non-literate students aged 10 to 16 years, considering their subjectivities, their life paths and their interactions with digital technologies. The research is theoretically based on the studies on human-technology couplings in their life contexts addressed by Simondon (2007) and on the theory of biology of cognition by Maturana and Varela (2011), where knowing is a condition of life. In the methodology, cartography made it possible to monitor the processes experienced in the workshops and in the conversation circles. As a result, students were able to autonomously produce their literacy course, for which some technologies contributed to the reinvention of their ways of learning.

Keywords: Authorship; Digital Technologies; Self-narratives; Learning.


RESUMEN

Este texto trata de una experiencia vivida con estudiantes del quinto año de una escuela pública ubicada en el campo de Rio Grande do Norte en un área periférica. La experiencia tenía como objetivo vivir prácticas de alfabetización con estudiantes no alfabetizados de 10 a 16 años, teniendo en cuenta sus subjetividades, sus caminos de vida y sus interacciones con las tecnologías digitales. La investigación se basa teóricamente en los estudios sobre acoplamientos de tecnología humana en sus contextos de vida abordados por Simondon (2007) y en la teoría de la biología de la cognición por Maturana y Varela (2011), donde el conocimiento es una condición de la vida. En la metodología, la cartografía permitió monitorear los procesos experimentados en los talleres y en los círculos de conversación. Como resultado, los estudiantes pudieron producir de manera autónoma su curso de alfabetización, para lo cual algunas tecnologías contribuyeron a la reinvención de sus formas de aprendizaje.

Palabras clave: Autoría; Tecnologías digitales; Auto-narrativas; Aprendizaje.


 

 

Introdução

A história da educação escolar nos mostra que apesar de muitos esforços para torná-la um espaço ou instrumento de humanização, ainda temos em suas práticas um conjunto de atividades que são alheias às necessidades dos estudantes contemporâneos e, por esse motivo, muitas vezes dificulta o acoplamento cognitivo e afetivo com a realidade, causando dificuldades de aprendizagem. "Essas dificuldades trazem sofrimento aos sujeitos envolvidos nos processos educativos porque atingem o âmago do processo de construção do conhecimento entendido aqui como inseparável da ontogenia dos sujeitos" (Pellanda, 2008, p. 1069).

Para estudar a importância do acoplamento dos estudantes com a realidade, incluindo as tecnologias digitais e a relação desse acoplamento com a aprendizagem escolar, desenvolvemos uma pesquisa em uma escola da rede púbica municipal no interior do Rio Grande do Norte - RN. Nosso foco está nos processos educativos e, mais especificamente, na questão da alfabetização escolar e no sentido atribuído a esta aprendizagem específica pelos estudantes. Consideramos, aqui,o sentido em uma perspectiva ampliada, considerando os pressupostos da cognição complexa, ou seja, o envolvimentodo sujeito em todas as suas dimensões no processo de aprender-viver.

Entendemos sentido como aquilo que emerge da ação humana e, portanto, como produção dos seres humanos no bojo de sua ação sobre a realidade. Nessa perspectiva, ele faz parte do processo de conhecimento, estando presente no acoplamento dos seres humanos com o seu meio (Pellanda, 2008, p. 1071).

Envolver o sujeito inteiro, não fragmentado, no processo de aprender significa considerar seu percurso de vida, seus modos subjetivos de aprender, de estar na linguagem, e não separar o aprender do viver. Assim, a educação escolar, especialmente a alfabetização escolar precisa considerar a linguagem como um elemento constituinte do humano, afinal nos constituímos humanos neste movimento de "viver no entrelaçamento do linguajar e do emocionar que chamamos conversar" (Maturana, 1994, p. 242).

Para Maturana, "os seres humanos existem no entrecruzamento de muitas conversações" (Maturana, 1994, p. 242), e, neste entendimento, o aprender é considerando um processo de vida, onde "conhecer é viver e viver é conhecer" (Maturana, 2002, p. 42). Pensar a escola em um contexto complexo onde tudo se relaciona com tudo é um modo de vincular a escola com a vida dos estudantes. Neste caminhar complexo, precisamos abordar o acoplamento tecnológico no contexto das práticas pedagógicas escolares. Isso porque na contemporaneidade as crianças e adolescentes vivem aprendizagens e tecitura de redes na interação com estas ferramentas digitais.

Esse acoplamento do sujeito com o meio, incluindo as tecnologias como devir é entendido por Maturana e Varela (2011) como um mecanismo fundante do viver, e é nomeado pelos autores como um acoplamento estrutural. Para os autores, o acoplamento é "um processo constituinte e recursivo dos seres humanos que funciona de forma integrada para cognição/subjetividade" (Pellanda, 2008, p. 1080). Ora, se a escola for um ambiente que não facilita o acoplamento dos sujeitos com o meio e se não oferecer condições a partir das quais os estudantes possam viver situações de aprendizagem que façam sentido para sua ontogenia, como estes alunos poderão vincular a aprendizagem escolar, enquanto exercício de autoria, aos seus processos de vida no tempo presente?

Neste entendimento, a nossa pesquisa buscou entender como o acoplamento tecnológico poderia contribuir com a alfabetização escolar de estudantes não-alfabetizados do 5º ano do ensino fundamental de uma escola do interior do RN. A experiência aconteceu em rodas de conversas e aulas em forma de oficinas pedagógicas. As narrativas dos estudantes incluindo suas histórias de vida foram dados importantes cartografados para análises dos resultados.

 

Tecitura de um Referencial Teórico

Educação, Aprendizagem e Alfabetização Escolar

[...] a educação envolve sempre uma certa teoria do conhecimento posta em prática. E que esta teoria posta em prática demanda [...] um papel importante do educando. Um papel crítico de quem conhece também e não a atitude passiva de quem apenas recebe o "conhecimento" que se transfere (Freire, 2011, p. 231).

A pedagogia freiriana, o acoplamento tecnológico de Simondon e a biologia da cognição de Maturana e Varela são o pano de fundo destas vivências de alfabetização organizadas com estudantes no contexto da escola campo da pesquisa. Segundo Freire, "a alfabetização e a conscientização são inseparáveis. Todo aprendizado deve estar intimamente associado à tomada de consciência de uma situação real e vivida pelo aluno" (Freire, 2001, p. 59). Para esse fazer, destacamos a importância político-pedagógica do educador, como Freire e Emília Ferreiro afirmam, não há neutralidade na prática pedagógica, e o modo como essa prática acontece faz diferença na aprendizagem da leitura e da escrita. Ferreiro (2000, p. 31) enfatiza que "nenhuma prática pedagógica é neutra. Todas estão apoiadas em certo modo de conceber o processo de aprendizagem e o objeto dessa aprendizagem".

Para Freire (1989, p. 7) "a aprendizagem da leitura e a alfabetização são atos de educação e educação é um ato fundamentalmente político". Sendo necessário que professores e estudantes se posicionem de forma crítica ao vivenciarem a educação, para assim, superarem "posturas ingênuas ou astutas, negando de vez a pretensa neutralidade da educação" (Freire, 1989 p. 7).

Freire traz em toda sua obra a importância de o sujeito - educando e educador - compreender criticamente o seu modo de estar no mundo e partir dessa compreensão sobre quem estar sendo no mundo, nas realidades vividas, seja capaz de reescrever, reinventar o mundo, de agir para transformar seu contexto social.

Na escola, para compreender e transformar seu viver, sua realidade, os estudantes precisam ter espaços para exercícios de autoria, para agir criticamente sem amarras pedagógicas, mordaças ou qualquer outro dispositivo de controle dos corpos. E, para alfabetizar crianças e jovens nesta perspectiva da autonomia, ou seja, para a vida e para conscientização, Freire propõe que é preciso um trabalho político e pedagógico dos educadores de modo que a "descolonização das mentes e dos corações" (Romão & Gadotti, 2012, p. 101) seja um enfrentamento à educação bancária porque "de nada serve educação bancária, onde o aluno memoriza quilos de conteúdo que não tem nenhuma importância para a sua vida" (Freire, 2008, p. 59). Neste sentido, "o educando se torna realmente educando quando e na medida em que conhece, ou vai conhecendo [...], e não na medida em que o educador vai depositando nele a descrição dos objetos, ou dos conteúdos" (Freire, 1992, p.47).

Dessa forma, percebemos que, para organizar práticas de alfabetização no contexto da escola, é importante acreditar que "a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele [...] e este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente" (Freire, 1989, p. 13). Assim como também é preciso ter clareza de que "a alfabetização não é um estado ao qual se chega, mas um processo cujo início é na maioria dos casos anterior a escola e que não termina ao finalizar a escola primária" (Ferreiro, 1999, p. 47).

Pensando assim, acreditamos que para uma aprendizagem significativa da leitura e da escrita é importante que a escola seja capaz de se reconfigurar continuamente. Que se proponha a aprender, observando e discutindo sobre o que se passa com os estudantes e, ainda, caminhar na perspectiva de uma congruência com os mesmos e com o entorno social do qual faz parte. Pois, para se configurar no contexto social contemporâneo como escola não basta inserir os estudantes no espaço físico, mas é necessário que estes alunos sejam acolhidos.

O acolhimento nesta pesquisa tem relação direta com o conceito de aprendizagem na perspectiva da complexidade (Morin, 2001), ou seja, para acolher verdadeiramente um estudante na escola, todas as suas dimensões constitutivas devem ser consideradas, dimensão cognitivas, social, afetiva. Aprendizagem no sentido de conhecer em devir, isto é o processo de aprendizagem como um fenômeno complexo de viver. Assim, surge neste contexto escolar, campo da pesquisa, um grande desafio, o de abrirmos espaços de autoria e subjetivação em sala de aula. O desafio de associar atividades de alfabetização aos contextos de vida (biológico, social e cultural) dos estudantes.

Neste desafio de aproximar atividades escolares com o devir dos estudantes, trazemos o acoplamento tecnológico (Simondon, 2007) como potência na invenção de redes de aprendizagem. Esse acoplamento tecnológico será abordado no sentido de entender a tecnologia como constituinte da história do humano, ou seja, o acoplamento sujeito/máquina constitui o devir dos seres humanos e neste sentido a tecnologia não é algo que está fora dos sujeitos, mas faz parte dos seus modos de aprender, de estar no mundo.

Na escola, o acoplamento tecnológico pode contribuir com a aprendizagem e com a subjetivação dos estudantes quando potencializa a tecitura de redes e inventa outros modos de interagir com o conhecimento.

Acoplamento Tecnológico e Educação Escolar na Tecitura de Redes de Aprendizagem

Desde que se inicia a história da humanidade com a linguagem, a invenção de artefatos técnicos vai modulando as formas de habitar neste mundo. Na contemporaneidade dos jovens, a tecnologia digital não pode ser separada do percurso de viver-conhecer dos estudantes. O que procuramos aqui destacar é que a relação sujeito-tecnologia produz efeitos cognitivos, políticos e sociais. Desse modo, os efeitos das tecnologias não estão nelas próprias, mas na intersecção com o humano, em acoplamento.

Para Maraschin e Axt (2005, p. 44), "o humano só se produz como tal no acoplamento e tal acoplamento se realiza mediante a constituição de dispositivos de ligação, a própria "condição humana" é tributária do acoplamento tecnológico". Assim, os efeitos da integração de diferentes tecnologias na nossa vida estão diretamente relacionados com a forma como interagimos com essas ferramentas, com o modo como construímos nossos projetos pessoais e profissionais.

Na escola, o operar com tecnologias digitais pode fazer emergir diferentes formas de interagir com o conhecimento, isso porque essas ferramentas compõem o fluxo de viver da maioria dos estudantes, e, "os conhecimentos quando pensados como produtos do acoplamento com as tecnologias intelectuais também são definidos como práticas, como atividades, como vida" (Maraschin & Axt, 2005, p. 44). Nesse movimento, o operar da cognição inventiva temos um movimento circular em que mundo e sujeitos experimentam uma relação de coprodução.

Pensando em não separar sujeito-conhecimento-tecnologias, temos na perspectiva do paradigma da complexidade um lugar para pensar a constituição dos sujeitos complexos, aqueles que tecem juntos aprendizagens, afetividades e assim reinventam a si e os contextos. Sujeito complexos são ainda, aqueles que são capazes de pensar para além da lógica binária do "ou" e incorporar o "e", sendo, por isso, capazes de escapar dos fundamentalismos que aprisionam os seres humanos numa teia de poder. Nesse sentido, dizemos que na complexidade há uma conectividade radical que dá sentido a tudo: conhecemos, somos e vivemos conectados. Nesta ótica, não existe realidade pré-dada, mas nos constituímos a medida em que interagimos com os outros seres, humanos ou técnicos. Desse modo, cada ser humano é parte de rede(s) e, produz ao mesmo a si e ao mundo em um percurso de autoria de si e coletiva.

Tecendo esses entendimentos e entrelaçamentos teóricos, sobre escola, tecnologias, autoria e subjetividade, autores como Paulo Freire, Humberto Maturana, Francisco Varela, Gilbert Simondon nos ajudam a fundamentar a importância de refletir o lugar da escola na produção de conhecimento-subjetividade. Essa rede de autores nos convida a pensar junto, a viver a aprendizagem como "um ato criador, que envolve necessariamente, a compreensão crítica da realidade" (Freire, 2011, p. 38-39). Neste caminhar, outras fundamentações teóricas vão compondo o percurso da experiência e nos ajuda a entender o ser-fazer-viver a pesquisa com os estudantes, além de fundamentar teoricamente as emergências empíricas que serão cartografadas.

 

Cartografando a Experiência

Caminhos Produzidos ao Caminhar

No final de 2015, em uma escola pública de Educação Básica onde uma das autoras atua como docente, foi constatado que muitos alunos que cursariam o 5º ano em 2016 não eram alfabetizados, para tentar resolver essa situação, a escola fez um 'nivelamento' e separou os alunos em duas turmas, uma com alunos alfabetizados e outra com alunos não-alfabetizados. O destaque feito na palavra nivelamento foi porque não corresponde ao que acreditamos enquanto educadoras. Acreditamos no espaço escolar que acolhe as diferenças e não nas tentativas de homogeneizar os contextos da educação. Mas, essa foi a realidade vivida e não dá para ocultar o fato nesta escrita.

Em 2016 iniciamos a experiência com a turma dos alunos 'não-alfabetizados'. Para este fazer metodológico, revisitamos as leituras de livros de Paulo Freire, que consideramos um dos maiores educadores deste país, e, neste contexto, a experiência foi cartografada a partir das atividades desenvolvidas em rodas de conversas e oficinas pedagógicas. As autonarrativas (escritas, falas, gestos, imagens), história de vida dos estudantes e demais vivências proporcionadas na pesquisa foram instrumentos potencializadores de emergências cognitivas-subjetivas no processo de aprendizagem da leitura e da escrita.

Para acompanhar os processos vividos pelos estudantes, utilizamos a Cartografia como método desta pesquisa-intervenção, como "um método não para ser aplicado, mas experimentado e assumido como atitude" (Passos, Kastrup & Escóssia, 2009, p. 10-11). Para esta pesquisa Passos e Barros (2009) trazem uma grande contribuição quando apresentam pistas do método cartográfico para organizar e acompanhar o transcurso dos processos vividos/produzidos na experiência.

A cartografia como método de pesquisa-intervenção neste texto, amplia a discussão sobre impossibilidade de separar vida e conhecimento, ser e fazer, pesquisar e intervir. A cartografia nos permite ainda acompanhar processos em fluxo para sinalizar bifurcações e flutuações não engessando a realidade em categorias estanques. Neste entendimento organizamos a experiência de alfabetização com os 26 estudantes, sujeitos da pesquisa.

Oficinando com Estudantes: Autoria em Devir

"A vida é uma experiência indiscutível, mas apenas uma experiência" (Atlan, 2004, p. 18).

A metodologia foi experienciada com os estudantes por uma das autoras, professora da escola, enquanto a outra autora que apresenta um longo percurso como pesquisadora e autora de temas sobre a educação, sofrimento na educação e tecnologias como constituinte do humano, tecia orientações, sugestões e contribuições para as oficinas, rodas de conversas e para o tratamento das emergências da pesquisa. Por esse motivo, em alguns momentos da metodologia utilizaremos a primeira pessoa do plural e em outros momentos para alguns fazeres metodológicos, utilizaremos a primeira pessoa do singular.

A primeira decisão do percurso metodológico foi a de não levar nada pronto para os estudantes, "optamos pelo uso de oficinas como uma intervenção que coloca, em primeiro plano, um fazer compartilhado, que desestabiliza a relação tradicional entre saber e fazer" (Baum & Maraschin, 2016, p. 1055). A oficina aqui é proposta como dispositivo cartográfico que abre espaço no campo da criação/invenção e acompanhamento de percursos, nos conectando assim com o entendimento de que "pesquisar é acompanhar os processos e as modificações dos objetos e sujeitos envolvidos" (Araldi et al., 2012, p. 46).

Na escola, as oficinas consideraram o devir dos estudantes, abrindo espaços para escuta dos percursos dos estudantes, incluindo seus desejos, não-desejos, seus modos de caminhar na aprendizagem da leitura e da escrita, seus ritmos e buscas que desejam no contexto dessa caminhada na pesquisa.

No primeiro encontro, os alunos estanharam porque eu disse que não tinha nada para pronto para aquela experiência. Comecei apenas observando os movimentos dos corpos. Durante 30 minutos, eu apenas olhei. Neste intervalo, os alunos entraram, saíram, brigaram, gritaram, reclamaram, alguns insultaram, e, finalmente alguém perguntou: "a aula não vai começar?"1, então respondi com outro questionamento, o que seria uma aula? Várias respostas foram surgindo, como: "escrever no quadro", "mandar a gente ficar quieto", "explicar o dever de hoje", "ensinar a gente". Ao ouvir indagações do que seria uma aula na perspectiva dos estudantes, fiquei feliz porque percebi a possibilidades de um espaço fértil para o diálogo, e, fiz outros questionamentos: "por que vocês estão aqui? O que buscam na escola?". Neste momento, comecei a escrever no quadro, as respostas que foram surgindo: "eu quero aprender", "ser alguém na vida", "aprender a ler", "estou aqui porque minha mãe obriga". Ao mesmo tampo que algumas falas surgiam aconteciam também risos e outras expressões sonoras para cada fala exposta. Nesse conversar e neste "oficinar que constitui um em-comum no encontro de um fazer-com; um pensar-com" (Palombini et al., 2012, p. 9) as oficinas foram desenhadas, vividas e suas emergências foram cartografadas.

Assim, a partir daquelas falas/expressões, que para mim e para os estudantes, tinham muito sentido, a primeira oficina se constituiu. A primeira Oficinas chamamos de - Escola: que lugar é esse? E aos poucos, em cada encontro fomos inventando juntos a Oficina e a roda de conversas do encontro seguinte.

Oficina 01 - Escola: que lugar é esse?

Ainda na busca de ouvir mais narrativas sobre aquelas pessoas que até então eu só conhecia através dos tantos rótulos e diagnósticos negativos devido ao fato de não saberem ler, comecei a oficina com o questionamento: "Para vocês o que

é a escola?". As vozes começaram - "a escola é um lugar para assistir aulas"; "aprender";"fazer dever no livro"; as respostas foram surgindo no sentido de formação cognitiva, mas, de repente, uma resposta me chamou atenção - um estudante levantou-se e indagou com muita veemência - "a escola é uma prisão para crianças!". Continuou com sua explicação:

Professora, veja só, a escola é separada por celas que são as salas de aulas, a gente fica preso aqui, só pode sair pra merendar e uma vez para beber água. No portão fica um vigia para não deixar que nenhum aluno saia antes do horário. Não temos intervalo, não podemos brincar, temos que ficar calados e quietos, nem no corredor a gente pode correr. Com o que isso parece? (Excerto da fala do estudante K. 2016).

Nas narrativas que estavam sendo apresentadas, fui percebendo que muitos estudantes estavam incorporando rótulos que se ouviam sobre eles próprios naquele contexto escolar. O "não saber ler" parecia definir todo o percurso escolar de cada um, estendendo-se também para vivências fora da escola.

Quando todos falaram, pedi para que me ouvissem um pouco. Me coloquei como parte do grupo, e, expressei que a aprendizagem acontece durante toda a vida e que com a minha idade eu ainda tinha muito o que aprender. Aos poucos fui constituindo uma conversa a partir de cada uma das respostas dadas por eles sobre aula, aprendizagem, escola, e, ao mesmo tempo trazia a minha história escolar.

Para isso, fiz a leitura do texto 'A Escola é' de Paulo Freire. O texto foi apresentado no projetor de multimídia associado a imagens diversas. Como na Figura 01 a seguir

 

 

As discussões sobre o texto foram intensas, o tema sobre a escola trouxe muitas queixas, desabafos e o discurso autoral dos estudantes mostraram também alguns dos seus desejos de aprendizagens. A aluna D falou: "Professora, a escola não está me ajudando a aprender. Estou repetindo o 5º ano várias vezes e não sei ler". Após essa fala outras surgiram, "eu também não sei ler", "eu acho difícil aprender a ler", "eu acho que a minha cabeça não aprende", "eu queria aprender a ler".

Seguindo nas atividades da oficina, fui tentando no diálogo quebrar alguns dos diagnósticos já cristalizados nos alunos. Alguns deles já haviam trazido para si alguns desses diagnósticos/rótulos como próprios de si. Era como se o não-aprender já fosse característica pessoal. Propus, no encontro, a produção de um cartaz intitulado: "A escola deveria ser um lugar para ..." escrevi as respostas dos estudantes em uma lista que incluía: jogar bola; brincar; usar computador; usar celular; usar livros; feira de ciências; viajar; ver filmes; aprender a ler; conversar e dançar. Poder usar computador e celular foi um desejo aclamado por quase toda a turma, talvez porque na escola não há Laboratório de informática e nem tão pouco uma biblioteca para esse fim.

Apresentamos aqui a necessidade de frisar a importância do acoplamento tecnológico no percurso de aprendizagem dos estudantes. Pellanda (2014, p. 114), afirma que "a cognição humana passou a ser considerada como um fenômeno biológico que integra o processo de viver. Humanos e máquinas começaram a ser melhor compreendidos nos seus acoplamentos". Neste entendimento, destacamos que acoplamento dos seres humanos com o seu meio/ambiente pode disparar um processo interno de autoprodução, conhecer/subjetivar-se.

Na oficina, depois de um diálogo rico sobre cada uma das respostas sobre 'o pensar a escola' propus que naquele momento eles pensassem um pouco sobre tudo que gostariam de viver naquela escola, naquele ano. Alguns alunos riram e disseram, "a professora não sabe de nada", "a gente não pode fazer o que quer na escola", "a gente segue regras". Continuei, "então, vamos tentar inventar outros modos de estar na escola". E, para a surpresa dos estudantes, após uma lista formulada na conversa, afirmei que tudo aquilo proposto era possível existir na escola, mas que dependeria do envolvimento de todos ali presentes neste projeto que faríamos. Neste contexto, o silêncio foi total, e, como a estrutura física da escola era limitada, ninguém acreditava na possibilidade de viver tudo aquilo presente na lista.

Aqui, a pedagogia da Esperança de Freire, visitava a minha mente, a esperança, não como espera, mas como ação, como forma de acreditar, de agir, de associar teoria, prática e desejo, porque a "[...] esperança é necessária, mas não é suficiente. Ela, só, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia [...] Enquanto necessidade ontológica a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica" (Freire, 1992, p. 05).

Nesta experiência, apesar dos estudantes serem de classes populares, sem muitos recursos financeiros, percebi que dos 26 alunos, apenas 3 não tinham celular do tipo smartphone, mesmo assim, estes três alunos afirmaram que costumavam usar o celular do pai ou da mãe. Assim, pensei: por que não fazer dessas tecnologias dispositivos de aprendizagem e subjetivação? Simondon (2007) vê a tecnologia como extensão da ação humana, como constituinte da história e do devir das pessoas. Neste sentido, as multimídias presentes nos telefones móveis dos alunos passaram a ser utilizadas nas aulas como potência para a alfabetização, comunicação e subjetivação. Sobre isso, Freire (1996, p. 97) afirma que acredita no "[...]enorme potencial de estímulos e desafios à curiosidade que a tecnologia põe a serviço das crianças e dos adolescentes".

Apesar do potencial das tecnologias digitais para a aprendizagem, sabemos que ainda há em muitas escolas uma certa recusa da inserção destes dispositivos em suas ações pedagógica preferindo ainda manter suas práticas baseadas no discurso do mestre, na escrita no quadro e no uso do livro didática, como acontece há milhares de anos. Sabemos ainda que "uma verdadeira integração da informática [...] supõe, portanto, o abandono de um hábito antropológico mais que milenar" (Lévy, 1993, p. 08) na escola e isso não algo tão simples de se fazer.

Nessa perspectiva que nos apresenta Levy, podemos na contemporaneidade tecer ações com algumas das tecnologias presentes no cotidiano dos estudantes que favoreçam a constituição de redes de aprendizagem, nos quais as potencialidades afetivas, sociais e cognitivas de cada sujeito possam ser potencializadas. Sobre esse desejo dos alunos de inserir tecnologias nas aulas, como celular, computador, dentre outras, lembra a discussão que Michel Serres traz em seu livro Polegarzinha (2013) onde esclarece que os estudantes de hoje, acessam muitas informações ao mesmo tempo, e, "por celular tem acesso a todas as pessoas, por GPS a todos os lugares, pela internet a todo saber" (Serres, 2013, p. 19). Neste livro o autor apresenta vários descompassos presentes na relação professor-aluno neste tempo contemporâneo. Essa diferença histórico-social de gerações no contexto atual escolar traz, em muitas ocasiões, alguns conflitos que versam em dimensões tecnofóbicas (professores) e tecnofílicas (estudantes), dificultando aproximar escola e sociedade contemporânea.

No encerramento do encontro, pedi que todos pensassem em formas de fazer tudo aquilo escrito no cartaz acontecer, porque essa seria a discussão do dia seguinte.

Oficina 02 - Produzindo outros percursos no contexto da escola

Em um exercício de autoria coletiva os estudantes trouxeram ideias para potencializar seu estar/viver a escola. Segundo os estudantes, as aulas/oficinas na escola poderiam ser organizadas em dois momentos, um seria voltado para os desejos subjetivos de aprendizagem e outro para cumprir o currículo oficial proposto pela escola. Para isso, juntos criamos uma proposta pedagógica com atividades diferenciadas, justificadas e assinadas por todos.

Dentre o que foi proposto estavam pedidos e desejos para atividades diversificadas dentro e fora da sala de aula. A liberação do uso do celular também estava na proposta. Perceberam na roda de conversa que para cada desejo de mudança eles precisavam assumir responsabilidades em suas aprendizagens e na manutenção da organização do lugar. Neste sentido, aquela turma que não tinha 'boa reputação' devido a comportamentos violentos, agora começava a pensar em mudanças significativas. Enfim, a proposta foi aceita e o grupo começava a participar com entusiasmo das atividades propostas por eles. Até o fim da experiência, viveram muitas mudanças cognitivas, afetivas e sociais, sem imposições, sem cobranças externas, mas orientados e acompanhados nesta busca de (re)constituição de si na experiência de aprender-viver.

Percebendo o desejo de aprender a ler e a escrever expresso por muitos, finalizamos o encontro com uma conversa sobre a temática. Para isso, fiz um questionamento: "quem sabe ler!" Ninguém respondeu. Então, continuei questionando, "por que ninguém disse que sabe ler?". E afirmei: "Todos vocês sabem ler". Com essa afirmação produzimos na coletividade a próxima oficina sobre escrita e leitura que seguirá acontecendo até o fim dos encontros, como pano de fundo das outras oficinas e rodas de conversas.

Percebi ainda neste encontro que a inserção do projetor multimídia chamou atenção, então, após as discussões, a produção do tema da próxima oficina, perguntei se eles gostariam de aprender um pouco mais a utilizar aquela ferramenta. Pedi que se organizassem em trios e apresentei a cada grupo as principais funções, aproveitei a oportunidade para dizer que se eles desejassem fazer as conexões das tecnologias nos encontros seguintes poderíamos fazer isso. Encerramos e decidimos que os próximos temas envolveriam aprendizagens de leitura e escrita.

Oficina 03 - Como se aprende a ler e a escrever?

A escrita não é um produto escolar, mas sim um objeto cultural, resultado do esforço coletivo da humanidade. Como objeto cultural, a escrita cumpre diversas funções de existência
(Ferreiro, 2000, p. 43).

O início das atividades começou com o trio M-D-J conectando projetor e notebook. E neste momento fiz a mesma pergunta do encontro anterior? Quem sabe ler? Ouvi imediatamente "Professora, não sei se a senhora sabe, mas essa é a turma dos alunos que não sabem ler"(Estudante M12). Sério? Será? Insisti nos questionamentos. Projetei imagens e comecei seguimos conversando.

Na apresentação eletrônica com várias imagens, uma em cada lâmina, fui percebendo a significação que cada um apresentava. Em todas as imagens tinham textos ou letras carregadas de sentidos para os estudantes. Em cada imagem, os estudantes liam e explicavam o que aparecia na projeção. Nesta atividade lembrei imediatamente de Paulo Freire (1989, p. 13) quando afirma sabiamente que "a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele [...] e este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente". Então, exclamei que tudo isso que eles estavam fazendo ali, era leitura, e, que talvez eles tivessem dificuldades em apenas um dos tipos de leitura que compõe a nossa linguagem. Para Ferreiro eTeberosky, "a escrita está diretamente ligada à linguagem" e "representa partes sonoras da fala" (1984, p. 266), acrescentei que o estar vivo era uma forma de estar inserido na leitura, ou seja,enquanto ser vivo fazemos leituras constantemente. Neste movimento em que"conhecer é viver e viver é conhecer" (Maturana, 2002, p. 42) fomos inventando modos de viver/perceber-sena leitura e na escrita. Como na Figura 02:

 

 

No final da Apresentação eletrônica, fiz questionamentos sobre tipos de leitura, níveis de leitura, para isso, a importância do ato de ler de Paulo Freire (1989) e Psicogênese da língua escrita de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1984) me ajudaram a seguir conversando com os estudantes. Esta discussão segue de acordo com Mello (2007, p. 88) quando afirma "não são os métodos que alfabetizam, nem os testes que auxiliam o processo de alfabetização, mas são as crianças que (re)constroem o conhecimento sobre a língua escrita, por meio de hipóteses que formulam". Finalizamos o encontro com uma roda de conversa sobre devir humano, sobre as possibilidades de aprender que nos acompanha, de várias formas, por toda a vida. Como na Figura 03:

 

 

Com atendimentos individualizados, coletivos, relacionando as atividades escolares com a vida dos estudantes e, com a inserção de tecnologias digitais, cada estudante foi produzindo seu percurso de aprendizagem e de alfabetização durante a pesquisa. Afinal "a alfabetização e a conscientização são inseparáveis. Todo aprendizado deve estar intimamente associado à tomada de consciência de uma situação real e vivida pelo aluno" (Freire, 2001, p. 59).

Outras atividades que potencializaram os modos de aprender nas oficinas de alfabetização foram:

1- Produção de um grupo no WhatsApp para comunicação e socialização - para isso dois alunos que não sabiam ler foram escolhidos para serem os administradores do grupo. O critério de escolha foi a idade mais alta.

2- Dia do jogo da leitura - para isso utilizamos váriosjogos pedagógicos conseguidos na secretaria de educação e também vários jogos digitais (softwares) como por exemplo o Soletrando, além de outros escolhidos pelos alunos no transcurso da experiência. Como na escola não havia laboratório de informática, nem computadores à disposição dos alunos, uma vez por semana conseguíamos alguns notebooks emprestados para essa atividade.

3- Dia do livro - Para essa atividade, uma vez por semana os alunos saiam da sala e faziam leituras no pátio da escola, mesmo sem saber ler convencionalmente. No mesmo dia, havia a leitura coletiva de livros eletrônicos (digitalizados). Muitas vezes os livros eram de humor, outras vezes, constituído por imagens, e, todos iam participando das atividades de leitura, com risos, opiniões e críticas.

4- Dia da escrita no cartaz (intitulado - Eu já sei ler!). Neste dia os alunos buscavam escrever as palavras que já sabiam ler, fazendo relação com o seu contexto de vida. Quando um cartaz ficava lotado de palavras, outro era colado ao lado, e assim, as palavras foram surgindo. Após 3 cartazes cheios de palavras, começamos com cartazes de frases.

5- Dia do movimento do corpo - neste dia, com autorização da equipe gestora os estudantes acompanhados da professora iam para o lado de fora da escola, para um terreno que ficava atrás do prédio escolar, um espaço com piso de terra, onde era possível, jogar futebol; usar cordas; bambolês e outros recursos para movimentar o corpo e aprender outros modos de estar na escola. Após esses movimentos os estudantes conversavam e registravam suas sensações que podiam ser em forma de desenho ou de escrita espontânea.

6- Dia da música e da interação com tecnologias - neste dia, duas músicas escolhidas pelos alunos, eram apresentadas em áudio e os alunos tentavam escrever (do jeito que soubessem) o que conseguiam entender, poderia ser com uso de letras, palavras, frases ou textos. Quem não conseguisse escrever poderia desenhar. Neste dia, os estudantes apresentavam aos colegas, em grupos, descobertas da semana na interação com a tecnologias. Ficava disponível na sala, alguns notebooks (trazidos pela professora/pesquisadora), os smartphones dos estudantes e um projetor multimídia.

Todas as atividades foram orientadas e socializadas. Vale destacar que em cada dia de atividade/Oficina havia sempre associação com o currículo proposto pela escola, incluindo atividades com os livros didáticos.

As atividades propostas como Oficinas se repetiam semanalmente mudando temas, objetos de aprendizagem e os alunos corresponsáveis por algumas das atividades. Cada encontro era iniciado e finalizado com uma roda de conversa sobre o tema em relevo. O diálogo era a principal tecnologia de interação, porque "a atitude dialógica é, antes de tudo, uma atitude de amor, humildade e fé nos homens, no seu poder de fazer e de refazer, de criar e de recriar" (Freire, 1989, p. 81). Pelo diálogo, nas rodas de conversas começamos a produzir mais atividades de escrita e de leitura, considerando o modo de cada um viver e interagir com a escrita, com orientações para potencializar os modos de escrever.

Em um breve resumo da metodologia, tivemos durante o período da pesquisa, jogos e brincadeiras que aconteceram nas terças-feiras em um terreno (piso de terra) que ficava atrás da escola; uso do celular não era proibido nas aulas, desde que fossem seguidas algumas regras que também foram construídas na coletividade; tivemos o dia semanal do filme; tínhamos uso de computadores uma vez por semana, com notebooks e projetor multimídia; o dia da leitura fora da sala, onde os estudantes ficavam em uma pequena área coberta na frente da escola, em tapetes de E.V.A. para leitura-deleite. Finalizamos a experiência de pesquisa com uma viagem a outro município, onde os alunos puderam assistir a um filme em uma visita ao cinema em um shopping, dos 26 estudantes, apenas um já havia ido a um cinema antes. E, tivemos ainda uma festa de encerramento, organizada em estilo de boite, pelos alunos envolvidos na pesquisa. Como se pode ver na Figura 04:

Em cada encontro vivido nesta pesquisa, em forma de conversa e/ou oficina fomos produzindo novas tecituras em acoplamentos potentes de aprendizagens em devir.

 

Resultados e Discussões

Em uma pesquisa em fluxo temos a clareza que os resultados vão se mostrando em todo o processo e, não apenas na fase final da investigação. Nesta perspectiva, os resultados aqui cartografados não se encontram num plano conclusivo, pois estaremos sempre procurando inventar outras formas de operar com o conhecimento na escola. O objetivo que traçamos nessa pesquisa-intervenção foi embasado no entendimento de que os próprios estudantes podem se encontrar no percurso de suas experiências, e, reinventar a escola e o seu modo de estar-viver a escola e suas aprendizagens. Não houve, nesta experiência, intenção de levar aos estudantes procedimentos de atuação, mas de abrir espaços para conversações e auto-constituição.

Toda essa discussão enfatiza a importância de renovar e aprofundar a reflexão filosófica como prática de pensamento e de vida. Não podemos nos contentar em repetir o que vem sendo repetido há vários séculos nas escolas, como se nada houvesse mudado (Atlan, 2004, p. 75).

Como explica Atlan (2004), nesta pesquisa, a ideia de refletir e de ressignificar a si e o espaço escolar, contribuiu para que os sujeitos se percebessem autores de seus percursos de aprendizagem, percebendo a escola não como apenas um lugar de ensino, mas como um lugar onde tudo pode existir, onde é possível vincular vida e conhecimento. Um lugar de "esperança, sobretudo" (Freire, 1992, p. 18). Esperança como forma de acreditar no futuro, de pensar que o "futuro não nos faz. Nós é que nos refazemos na luta para fazê-lo" (Freire, 2000, p. 56).

No transcurso da pesquisa, os resultados que chamamos de emergências que foram cartografadas a partir das narrativas (falas, escritas, gestos, imagens e vídeos) nos aponta para exercícios de autoria e subjetivação vividos pelos estudantes em práticas de alfabetização escolar em acoplamento com tecnologias digitais.

Nas narrativas dos estudantes deu para perceber a importância dessa autoria nas vivências oportunizadas pela pesquisa. Destacamos alguns excertos das falas dos sujeitos sobre a experiência vivida.

Sério? Eu nunca imaginei que seria possível mexer em tanta coisa aqui na escola (Excerto da narrativa do aluno C, 2016).

A minha mãe falava que eu tinha algo errado na cabeça porque não aprendia a ler, mas eu aprendi (Excerto da narrativa da aluna M2, 2016).

Toma essa! Eu sei ler! (Excerto da narrativa do aluno K1, 2016).

Professora, você realizou meu sonho de aprender a ler. Eu vou fazer 16 anos e queria votar, mas eu não sabia ler. Eu ficava com vergonha quando pensava em fazer o título (Excerto da narrativa da aluna D, 2016).

Jogar bola? Usar computador? Quem diria! Estou no 5º ano e isso nunca aconteceu aqui na escola (Excerto da narrativa do aluno B, 2016).

Professora se eu começar a ler muito no Facebook e no WhatsApp a minha leitura fica melhor? (Excerto da narrativa da aluna L2, 2016).

Uma coisa boa foi que durante todo o ano, meu pai não recebeu nenhuma reclamação minha. Quando a professora chamou os pais para uma conversa foi para dizer que a gente tava aprendendo a ler. Meu pai já veio pronto pra brigar comigo. Mas depois da reunião me abraçou e deu os parabéns! (Excerto da narrativa da aluna T, 2016).

Eu escolhi coisas pra fazer na escola, sem ficar de castigo por isso! Nossa, eu queria que fosse assim no ano que vem. (Excerto da narrativa do aluno S, 2016).

Ir ao shopping em outra cidade foi massa! Ah! Eu nunca tinha ido a um cinema, e foi muito maneiro! (Excerto da narrativa do aluno C, 2016).

Aprendi a mexer no Datashow. Agora, estou ajudando a conectar o da minha igreja. O pastor ficou admirado! (Excerto da narrativa da aluna V, 2016).

Minha mãe me deu um celular porque eu aprendi a ler e a escrever. Eu estou muito feliz. (Excerto da narrativa do aluno S, 2016).

Eu acho que a minha leitura ainda precisa melhorar, mas eu já sei ler e agora é só treinar. Vou ler os livros que tem lá em casa. (Excerto da narrativa da aluna M3, 2016).

O que eu mais gostei foi aprender a escrever com músicas porque era a gente que escolhia as músicas. Foi muita zoeira! Uh! huh! (Excerto da narrativa do aluno K2, 2016).

Professora, eu vou ser um arquiteto e vou lhe dar uma casa um dia. E vou lembrar que eu só virei arquiteto porque agora eu sei ler. (Excerto da narrativa do alunoJ, 2016).

Nestas emergências percebemos a importância de ressignificar o ambiente escolar vinculando-o cada vez mais aos desejos e contextos histórico-culturais dos estudantes. Nesse entendimento, a produção de saber emerge nos encontros e nesses encontros os sujeitos se reinventam, tecem juntos saberes complexos em um devir histórico. Esta experiência foi uma oportunidade de (re)viver na coletividade a Pedagogia Freiriana da Esperança, do Compromisso e da Autonomia.

Assim, para compreender os resultados/emergências da pesquisa e as mudanças nas coordenações de ações dos estudantes, foram consideradas em todas as vivências, as narrativas de si que foram se constituindo na coletividade, no percurso da experiência. Essas produções cognitivas e subjetivas, no contexto escolar, em exercícios de autoria, contribuíram com a produção de ações e reflexões que potencializaram o desejo de aprender a ler e a escrever dos estudantes.

Podemos considerar como resultados mais significativos, o fato de os 26 estudantes entre 10 e 16 anos, considerados por pessoas da escola, familiares e até por eles mesmos como incapazes de aprender a ler e a escrever, terem reaprendido a aprender modos de ler e de escrever. Outro resultado foi propor na escola um espaço para uma discussão filosófica sobre aprendizagem, isso foi sem dúvida uma ação inovadora.

 

Considerações Não-Finais

A escola, campo empírico desta experiência, é um lugar de limitações estruturais e materiais. A equipe gestora busca organizar o espaço em prol de melhor atender alunos e familiares. Os funcionários são engajados na luta por uma educação pública de qualidade. Mas as coisas não são tão simples. A escola é pequena, as salas de aulas são extremamente pequenas para o número de alunos que recebe, e, sem espaço para intervalo entre as aulas, sem biblioteca, sem laboratório de informática e com apenas alguns recursos pedagógicos limitados, as ações docentes precisam ser bem motivadoras para garantir os direitos de aprendizagem dos alunos. Essas práticas nem sempre são vinculadas às demandas sociais contemporâneas.

Sem essas interações conhecer-viver, a escola deixa de considerar a legitimidade dos sujeitos em seus percursos de convivência social. Como nos esclarece Maturana (1996), a educação enquanto fenômeno de transformação na convivência consiste em um ambiente interativo, onde o estudante não aprende apenas temas cognitivos, mas momentos de vida e de convivência.

Desse modo, ao buscar na pesquisa percepções complexas de como vem sendo o processo de legitimação dos estudantes no ambiente escolar, não podemos deixar de fora os questionamentos sobre quais são os espaços existentes na escola onde os estudantes podem exercer sua autoria, e, nessas reflexões, que se referem a estrutura da escola, não podemos deixar de mencionar as formas como os sujeitos interagem, ou gostariam de interagir com a aprendizagem neste ambiente.

Neste sentido e considerando a importância dos estudos e experiências de Paulo Freire sobre educação, acreditamos que a escola é ou poderá vir-a-ser um lugar de/para liberdade de aprender, conscientização e reflexão sobre as realidades/situações vividas no contexto escolar e nas comunidades, ou seja, a escola pode oportunizar "uma educação que procura desenvolver a tomada de consciência e a atitude crítica, graças à qual o homem escolhe e decide, liberta-o em lugar de submetê-lo, de domesticá-lo, de adaptá-lo" (Freire, 2001, p. 19).

Assim, neste percurso de produção de conhecimentos-subjetividades, os alunos em exercício de autoria interviram em seu espaço e desse modo transformaram, a si, seus percursos e suas realidades. Afinal como nos diz Freire (2001, p. 20), "na medida em que o homem, integrado em seu contexto, reflete sobre este contexto e se compromete, constrói a si mesmo e chega a ser sujeito". E nesta experiência desenhada com base no respeito à liberdade dos estudantes, que não foram rotulados como analfabetos, mas como pessoas com potência para aprender a ler, escrever e o que mais desejar, fez muita diferença no percurso de ações e reflexões vividas em um contexto escolar específico.

E, neste contexto de pesquisa, as tecnologias digitais, junto com uma proposta pedagógica organizada na coletividade contribuiu com a constituição de um espaço onde educadores e estudantes puderam (re)aprender a questionar suas certezas, a inventar outros modos de aprender e de conviver em tempos e espaços diferentes, com aprendizagens síncronas e assíncronas.

 

Referências

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Enviado em: 14/07/18
Aceito em: 27/07/20

 

 

Maria de Fátima de Lima das Chagas é professora e pedagoga, tendo mestrado em Ambiente, Tecnologia e Sociedade (UFERSA). É também especialista em Educação e Tecnologia pela PUC-Rio e atualmente faz doutorado em Educação pela UNISC.
E-mail: fatima2@mx2.unisc.br
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-7979-678X
Nize Maria Campos Pellanda possui doutorado em Educação (UFRGS) com doutorado-sanduiche na M.U. (OHIO-USA) sob a orientação do Dr. Peter McLaren. Atualmente faz Estágio Sênior de pesquisa na Universidade do Minho onde está desenvolvendo uma plataforma digital para sujeitos diagnosticados com TEA (Transtornos do Espectro Autista).
E-mail: nizepe@gmail.com
ORCID: http://lattes.cnpq.br/4655477569177276

 

 

Notas

1 Nos diálogos com os estudantes seus nomes não serão apresentados para resguardar suas identidades. Nos excertos das falas, utilizaremos a primeira letra do nome do estudante.
2 Para os Estudantes com a mesma letra inicial do nome, decidimos acrescentar números sequenciais, ex. M1; M2, etc.

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