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Desidades

versión On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.7  Rio de Janeiro jun. 2015

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Crianças, jovens e suas famílias nas esquadrias da epidemia do HIV/AIDS

 

Niños, jóvenes y sus familias en el marco de la epidemia del VIH/SIDA

 

 

 

Elizabete Franco CruzI

IUniversidade de São Paulo, Escola de Artes, Ciências e Humanidades

 

 


RESUMO

Este artigo problematiza a questão de crianças e jovens vivendo com HIV/AIDS. O texto aponta o impacto negativo que o estigma e a discriminação em relação a AIDS trazem para vida das crianças e jovens e a necessidade de enfrentamento desta dimensão. Debate a institucionalização e desinstitucionalização a partir de uma perspectiva teórica baseada em Foucault, nos estudos culturais e pós-estruturalismo, sinalizando a necessidade de repensarmos os regimes de verdade que sustentam conceitos de infância, juventude, família, instituição e AIDS para, consequentemente, mudar as práticas neste campo.

Palavras-chave: AIDS, infância, juventude, casas de apoio, família.


RESUMEN

Este artículo plantea el tema de niños y jóvenes que viven con VIH/SIDA. El texto señala el impacto negativo del estigma y la discriminación respecto del SIDA en la vida de los niños y jóvenes y la necesidad de enfrentarse a esa dimensión. Debate la institucionalización y desinstitucionalización a partir de una perspectiva teórica basada en Foucault, los estudios culturales y el postestructuralismo, señalando la necesidad de repensar los regímenes de verdad que sostienen conceptos de infancia, juventud, familia, institución y SIDA para, consecuentemente, cambiar las prácticas en este campo.

Palabras-clave: SIDA, infancia, juventud, casas de apoyo, familia.


 

 

Neste texto, tenho como objetivo problematizar algumas questões que formam um conjunto de fios temáticos: AIDS, infâncias, juventudes, casas de apoio, famílias. Assuntos que interagem como fios que se entrelaçam quando vivemos os desafios de uma epidemia como a AIDS.

Retomo algumas ideias sobre AIDS, infância e juventude1, que já apresentei noutras oportunidades (Cruz, 2005; Cruz, 2007) e que são relevantes para a compreensão do debate que aqui desenvolvo. Posteriormente, apresento comentários sobre alguns dos resultados de uma pesquisa que realizei sobre institucionalização e desinstitucionalização de crianças e jovens com AIDS2.

A AIDS confere um enquadre específico para os temas que aqui menciono. Contudo, cabe lembrar que tais temas também têm suas esquadrias, ou seja, falamos de um entrelaçamento de temas, que são conceitos produzidos, inventados nos emaranhados de ‘saberes e relações de poder’, produzindo aquilo que podemos pensar como a ‘verdade’ do que sabemos e conhecemos.

Foucault (2004) utiliza o conceito de “regimes de verdade” para mostrar que a verdade não é algo dado, que existe por si só e está ali para ser revelada. Para o autor, a verdade é algo produzido a partir de relações de saber e poder.

Ao abordar as temáticas deste texto, deixo o convite para (re)pensar os conceitos que usamos, os referenciais que nos sustentam quando decidimos abordá-las no âmbito teórico-prático. Especialmente, o convite para não naturalizar o que sabemos e vemos, mas sim para nos colocarmos sempre sob rasura. Pensar em nossos saberes como provisórios desestabiliza um lugar de saber-poder, que, às vezes, nos sustenta. Por outro lado, pode nos ajudar a construir as respostas que buscamos e que nem sempre encontramos quando nos agarramos às certezas que já temos.

Neste sentido, fundamental para quem trabalha nesta área é se perguntar: quais as minhas concepções de AIDS, infância, juventude, família, instituição? Como sei o que sei? Possivelmente, tais respostas passarão por experiências pessoais e familiares, experiências profissionais e/ou por um repertório teórico fundamentado em algumas áreas de conhecimento, como a psicologia, pediatria, medicina, pedagogia, direito etc.

Nos diferentes saberes, teorias são construídas para explicar quem são crianças, adolescentes, jovens e famílias. A ‘verdade’ sobre pessoas e fenômenos é produzida, socializada, reverberada, chancelada.

No caso das crianças, por exemplo, a maioria dos profissionais tenderá a descrever estágios de desenvolvimento (corporal, cognitivo, afetivo, social). Não se trata de dizer que tais estágios não existem, mas sim de localizar qual a condição de produção da existência deste discurso sobre a criança e como ele impacta nossas concepções e ações. Teorias pressupõem a universalização. Todas as crianças passarão pelos estágios de desenvolvimento 1, 2, 3 e poderão ser explicadas pelas teorias x, y ou z. Será? Como tais teorias foram produzidas? Em que tempo histórico, com que relações de saber-poder? Este debate também se estende à discussão sobre adolescência, juventude, velhice. Por que a fixidez de categorias que definem quem se é, o que se pode (ou não) ser em cada faixa etária?

O pensamento foucaultiano, aliado aos estudos culturais e ao pós-estruturalismo, nos ajuda a colocar aquilo que tomamos como verdade no lugar de discursos produzidos sobre aquilo que examinamos, e a perceber que as teorias não somente descrevem sujeitos, mas também os produzem – e os governam.

Esta perspectiva contribui ainda para que percebamos que nós próprios fazemos parte deste processo discursivo e que naquilo que pensamos e fazemos há as marcas das discursividades que nos habitam. Cabe dizer que não há um “dentro e fora” da teia discursiva: todos estamos dentro.

Neste sentido, crianças e jovens vivendo com AIDS existem e são produzidos a partir de um conjunto de discursos e dispositivos que os produzem.

No contexto da AIDS, produzem-se, então, regimes de verdade pautados na produção de pesquisas, livros, ONGs, políticas públicas, matérias de jornais, casas de apoio, jogos, métodos de prevenção etc. Esse sujeito, “o portador”, passa a ser subjetivado por todo um conjunto de saberes – do cotidiano das pessoas vivendo com AIDS, faz parte um sofisticado vocabulário médico-científico (CD4, carga viral, genotipagem, adesão), jurídico (representação junto ao Ministério Público contra o Estado para obtenção de medicamentos, licença compulsória, patentes), social (vulnerabilidade), político (direitos humanos, ativismo etc.). Nas tessituras desse conjunto de saberes, estabelecem-se relações de poder e resistência. Por exemplo, enquanto médicos, psicólogos, governantes, pesquisadores descrevem “as pessoas portadoras de HIV/AIDS”, elas se organizam para dizer “eu portador”. O(a) portador(a) é, assim, ‘um outro’ descrito por soronegativos e um ‘eu’ descrito por soropositivos (Cruz, 2005, p.84-85).

A observação desta dimensão é que nos permite ficar sob rasura, tomar como provisório, não universal e não fixo, aquilo que podemos fazer e pensar e, mais que isto, é esta percepção que pode nos ajudar a buscar linhas de fuga, resistências diante daquilo que queremos transformar.  

 

AIDS, infâncias e juventudes

A AIDS é uma epidemia com mais de 30 anos, que afeta milhões de pessoas em todo o mundo, trazendo muitas dores, perdas, aprendizados e desafios para as políticas públicas e para a sociedade, especialmente em setores como saúde, educação, seguridade social ou trabalho.

A infecção pelo vírus HIV, mais do que se reduzir apenas à dimensão da presença de um vírus em um organismo, configurou-se como uma complexa relação de elementos socioculturais, principalmente ligados à sexualidade e relações de gênero. Além disso, fatores como raça/etnia, geração ou classe são preponderantes para os desenhos da epidemia e suas leituras.

Muito já foi dito sobre a AIDS, desde a fragilidade das concepções que a alocaram em grupos de risco, ou que atribuem a infecção a comportamentos de risco, até chegarmos no momento atual, no qual, para entender a epidemia, o quadro da vulnerabilidade e dos direitos humanos pode oferecer subsídios. Neste texto, recorto o olhar para a dimensão da infância e juventude afetada pela epidemia da AIDS.

O primeiro caso de AIDS em crianças no Brasil foi identificado na década de 1980. Naquele tempo, várias famílias (pai/mãe/avós) enfrentavam dificuldades para cuidar das crianças e a perspectiva é que elas morreriam. A resposta oferecida pela sociedade civil (e apoiada pelas políticas públicas) foi a criação de casas de apoio, que abrigassem as crianças até sua morte. O advento da terapia antirretroviral, denominada popularmente de “coquetel”, transformou esta realidade porque adultos, jovens e crianças – que antes tinham a morte como sina – começaram a sobreviver (e viver).

Esse contexto foi bem recebido pelas instituições que abrigavam crianças, mas trouxe a questão que, nas décadas de 1990 e 2000, tocava muitos dos envolvidos com esta pauta: as crianças cresceram, e agora? O que fazer, como fazer, tanto no âmbito da sexualidade, como na construção de perspectivas de vida fora dos abrigos? (Abadia-Barrero, 2002; Cruz, 2005).

Casas de apoio aparecem como resposta social a partir daquilo que se identifica como a necessidade das crianças. Contudo, quem define essas necessidades? A partir de que elementos?

A resposta comunitária foi muito corajosa, mas a alternativa apresentada não estava descolada das concepções de infância e do que historicamente foi concebido como atendimento adequado para a infância pobre e doente. A resposta comunitária estava ancorada em três fios: atendimento da infância pobre em instituições, conceito de família e lugar social da diferença (Cruz, 2005).

Isto quer dizer que pensar instituições de apoio para crianças e jovens com AIDS está associado a concepções de que existe uma família ideal e que ela é pautada em um modelo nuclear (pai, mãe, filhos), saudável, com condições econômicas e sociais também idealizadas e consideradas adequadas para a educação de crianças. A família real, com suas pluralidades e fragilidades, na medida em que não atende a este ideal, é desvalorizada e desqualificada. No caso da AIDS, agrega-se o fato de que tanto crianças e jovens como famílias carregam o estigma e discriminação associados ao HIV/AIDS.

Hoje o preconceito é acirrado, mas quando surgiram as primeiras casas de apoio – no final da década de 1980, início da década de 1990 –, o preconceito em relação aos portadores de HIV/AIDS era ainda maior. E a AIDS configurava-se como uma ameaça de morte; neste sentido, os portadores do HIV eram vistos como “diferentes”. E o que fazer com aqueles que são diferentes? A criação de um lugar específico para quem tem AIDS, ao mesmo tempo em que se configurou como apoio, também revelou o modo que a sociedade tem para lidar com a diferença (criando espaços específicos e por vezes isolados)3.

A infância que se produziu nos discursos deste período é aquela que não seria (em decorrência da morte) e a juventude é a que viria a ser (porque ao jovem caberia o futuro). Por isso, naquele momento da epidemia (e ainda hoje), há dificuldade para lidar com o jovem no tempo presente, com as exigências de vida, liberdade e desejo que os jovens, como qualquer pessoa, podem trazer (Cruz, 2005).

Há uma dinamicidade na epidemia da AIDS, e o que acontecia nas décadas de 1980 e 1990 não é exatamente o mesmo que acontece nesta década. Felizmente, menos crianças nascem com HIV e, portanto, temos um número menor de jovens que são portadores do HIV/AIDS através da transmissão vertical. Entretanto, ainda temos crianças e jovens em abrigos e, infelizmente, a AIDS aumenta entre jovens, especialmente entre jovens gays.

França Junior, Doring e Stella (2006) desenham um quadro da epidemia que permanece atual.

[...] A resposta brasileira, até o momento, é limitada à assistência médica para crianças e adolescentes portadores do HIV/AIDS, ao combate à transmissão vertical do HIV e ao financiamento da instalação e manutenção de casas de apoio (abrigos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente) para infectados afetados, órfãos ou não. Essas medidas são insuficientes para garantir um ambiente de apoio para órfãos, crianças e adolescentes infectados ou afetados pelo HIV/AIDS (França Junior, Doring, Stella, 2006, p. 23).

Vale agregar que, na atualidade, temos muitos jovens infectados pelo HIV através de transmissão sexual e/ou uso de drogas e que há fragilidade no âmbito das políticas públicas voltadas para o apoio da juventude com HIV/AIDS. No contexto da assistência, muitos profissionais de equipe interdisciplinar buscam contemplar a dimensão biopsicossocial, contudo, a visão que ainda prevalece no campo da atenção é predominantemente biomédica, o que restringe o olhar para uma perspectiva de saúde integral.

Institucionalização e desinstitucionalização

Realizei uma pesquisa na qual busquei cartografar histórias de vida, conhecer o percurso que levou crianças e jovens à institucionalização e desinstitucionalização4. Observei que, no decorrer da epidemia da AIDS, dificuldades familiares, concepções de família e infância das instituições envolvidas, falecimento dos pais, abandono e adoecimento são fatores que levaram crianças e jovens à institucionalização.

A desinstitucionalização esteve ligada à adoção das crianças ou jovens, à busca que algumas instituições fizeram por membros da família, ao oferecimento de suporte à família que pretendia ficar com a criança e à chegada dos jovens à maioridade (este fator foi preponderante para que a questão da desinstitucionalização ganhasse destaque).

Relato a seguir duas histórias que foram cartografadas ao longo da pesquisa. Uma a partir dos prontuários de uma casa de apoio5, e outra a partir de entrevistas com profissionais de casas de apoio, com a criança e com sua mãe.

Danilo e Geraldo6

Os irmãos Danilo (2 anos e 4 meses) e Geraldo (19 dias) foram abrigados em 2006, em decorrência da seguinte história: N., mãe dos garotos, é uma mulher que vive com HIV/AIDS. Ela deixou sua amiga A. levar o filho bebê ao banco e a mesma não voltou com o bebê por quatro dias. Preocupada, N. foi à delegacia da mulher registrar o boletim de ocorrência.
A amiga A. retornou com o bebê no mesmo dia e a delegacia chamou o conselho tutelar, que abrigou as crianças e destituiu a mãe do direito à guarda (ou seja, ela foi buscar ajuda porque o bebê desapareceu e perdeu o direito de ficar com os dois filhos).
No prontuário da instituição, observamos relatos do conselho tutelar tal como seguem abaixo.

[...] A Sra. A. foi para a praia levando a criança. A. diz que não teve a intenção de ficar com a criança, pois voltaria no mesmo dia, mas aconteceu alguns problemas e não foi possível retornar. A. também relata que a genitora, antes do nascimento do filho tinha a intenção de doar a criança. A genitora não nega esta intenção, mas diz que depois do nascimento do filho descartou a possibilidade.

A avó materna (sra. Xx) estava acompanhando a filha e os netos. Segundo a avó a genitora cuida bem dos filhos. Questionamos-a quanto a possibilidade de estar levando N. e os filhos para sua casa, mas a mesma diz que trabalha fora, mora com a sogra e que não tem condições. Conversando com a genitora a mesma nos informou que é Soro Positivo (HIV +) e que o bebê já está tomando coquetel (AZT), pois pode também ser Soro Positivo.

[...] este conselho tutelar... vem mui respeitosa recambiar os infantes [...]

[...] A delegada nos informou que a genitora N. emprestou seu filho para a amiga [...]

[...] O bebê até o exato momento não tem Certidão de Nascimento e a família reside [...] sendo que a genitora nos forneceu dois números o número 133 no Conselho Tutelar e 183, na Delegacia da Mulher.

O conselho tutelar conduziu a família para nossa sede onde abrigamos o recém nascido e D. para proteção das crianças devido a passar das 17 horas [...] (anotações extraídas dos prontuários)

Alguns juízes temem a chamada adoção à brasileira (na qual os pais adotivos registram a criança como se fossem os pais biológicos). Pela ausência de registro da criança e pelo fato de a amiga ter dito que a mãe pensou em doar o bebê, o conselho tutelar e a delegacia podem ter suspeitado desta história. Uma das entrevistadas é advogada e explica a lógica da Justiça.

[...] a juíza barra por entender que trata-se de uma tentativa de adoção à brasileira e enganação da genitora, que é pessoa humilde e com poucos esclarecimentos. Logo, na dúvida, coloca a criança a salvo no Abrigo-CCI e investiga melhor com o acompanhamento da instituição [...] (trecho da entrevista com advogada).

Podemos entender a preocupação da Justiça, mas é preciso notar que uma pessoa procurou a delegacia para recuperar seu filho desaparecido e, como resultado, obteve a perda da guarda de seus filhos. Apesar dos “erros” cometidos pela mãe, tais como informar dois números de moradia e depois de 20 dias não ter registrado o bebê, haveria motivo suficiente para retirar a guarda das crianças? Será que, em casos como este, o abrigamento era realmente necessário? O conselho tutelar não poderia apoiar por um período as crianças e a mãe, certificando-se que a mesma iria registrar a criança?

Destaco o lugar de “objeto” da criança nesta discursividade: “recambiar, emprestar”. E o lugar da mãe não é explicitado na fala, mas está implícito no contexto: ou ela é “incompetente” ou “tem má-fé”. E a amiga, de algum modo, é preservada: “demorou porque teve alguns problemas...”

A ambivalência afetiva (querer e não querer o bebê) é uma dimensão psicológica que pode ser observada no decorrer da gestação. Será que este sentimento não poderia estar presente em uma mulher pobre e soropositiva? Não se trata de tutela, piedade ou condescendência, mas sim de entender a subjetividade humana com uma postura menos moralizadora. Não sei ao certo como surge a palavra “emprestar”, mas assim foi registrada na delegacia. Se a mãe não quisesse o bebê, teria ido à sua busca? Se a busca por si só não garante o interesse, ela declara que mudou de ideia, a avó diz que ela (a mãe) cuida das crianças e, ainda assim, perde a guarda dos dois filhos.

Lendo o prontuário, percebo que a instituição teve um papel importante na recuperação da guarda e na “pequena”7 permanência no abrigo. A instituição valorizou as visitas da mãe, recomendou que a mesma recebesse apoio social e sinalizou a volta para a família. Acompanhei essa instituição há alguns anos e penso que isso pôde acontecer porque a instituição tem revisitado sua perspectiva sobre família, repensado seu papel.

Podemos construir muitas narrativas sobre os mesmos fatos. Podemos olhar para esta mãe pelas suas “faltas”: deixar a criança com amiga, ter HIV, ser pobre, não ter registrado o bebê, ter pensado em dar o bebê para alguém, ou pela lente das suas possibilidades e dificuldades: ela se mobilizou para encontrar o bebê, ficou preocupada, está com HIV, tem dificuldades financeiras, duas crianças pequenas para cuidar, dar o bebê poderia ser um modo de garantir que a criança receba cuidados etc. Narrativas diferentes também podem ser construídas sobre os abrigos, as delegacias e os conselhos tutelares, mas fica a pergunta: neste caso, como foram concebidas as crianças e suas necessidades? Como foram concebidas a família e as instituições? Que formação pessoas e instituições precisam ter para realizar trabalhos deste escopo?

Na resposta a estas questões, temos muitas dimensões e muitas possíveis respostas. Convido a pensarmos em alguns pontos. A terminologia utilizada mostra que a criança foi concebida como objeto e sua necessidade compreendida a partir de uma perspectiva moralizadora em relação à mãe. Talvez, ao invés da institucionalização, fosse possível um trabalho com a mãe e a avó para fortalecer as condições de cuidado das crianças no âmbito da família. O abrigo ajudou na desinstitucionalização justamente porque trabalhou com as potencialidades da família.

A formação profissional que penso como ideal deve estimular não somente a formação escolar/acadêmica como também a formação continuada mesmo para profissionais que têm nível superior. Nesta formação, é preciso incluir leituras e discussões de textos atualizados, problematizadores dos conceitos chaves envolvidos no trabalho. É relevante também pensar um processo de supervisão e/ou de discussão de “casos” e construção de projetos de trabalho. Vale lembrar que é importante incluir a dimensão afetiva, pois vínculos são criados, existem múltiplos sentimentos que emergem no cuidado com as crianças, os jovens, as famílias e com situações que envolvem vulnerabilidades, desamparo, fragilidades de alternativas. Em síntese, a formação precisa ser continuada e contemplar dimensões teóricas, práticas, éticas, políticas, afetivas.

 

Letícia

M. descobriu que era soropositiva com 22 anos. Quando seu marido adoeceu trabalhava como empregada doméstica e, a pedido de sua patroa, realizou o exame. A confirmação do diagnóstico positivo para o HIV fez com que fosse demitida.

Nesse mesmo período, descobriu que Letícia, sua filha, também estava infectada pelo HIV. Ficou muito triste, porque havia realizado o pré-natal corretamente, mas, no terceiro trimestre, não solicitaram a realização do exame para investigar presença do HIV.

No bairro em que residia, por intermédio de um pedido de ajuda que sua mãe fez para a Igreja, muitas pessoas souberam da sua soropositividade. As pessoas do bairro e do prédio em que morava fizeram um abaixo-assinado, pedindo que mudasse dali. Ela não encontrava quem cuidasse da criança para que ela pudesse trabalhar.

Sem alternativas, buscou a instituição para cuidar de Letícia – que ali permanecia na semana, recebendo visitas no fim de semana. Para M., a instituição tem o sentido de escola que ajudou a cuidar de sua filha, que lá permaneceu por volta de três anos. No diário de campo, fiz o seguinte relato sobre a visita domiciliar.

Recebem a pesquisadora com carinho, convidam para o almoço. Quando o tema da AIDS surge, Letícia corre para fechar as janelas. Mãe e filha pedem que nos dirijamos ao fundo da casa, que tem chão de concreto. Fechamos as portas. Aí sim, elas podem falar à vontade sobre a AIDS. (relato de visita domiciliar - diário de campo)

Quando da realização da entrevista e visita domiciliar, ambas moravam com uma companheira da mãe em uma “ocupação” em região pobre da cidade de São Paulo. A mãe cuidava do próprio tratamento e do tratamento da filha. Entretanto, a filha não queria tomar remédios. A mãe, ainda que tenha realizado corretamente o pré-natal, sentia-se culpada. Aos 11 anos, Letícia não via muitas perspectivas. Não tinha coragem de contar para nenhum amigo(a) que tem HIV. Quando indagada sobre a AIDS, chorava intensamente: “É muito ruim ter isso”.

Neste caso, a institucionalização ofereceu oportunidade para que a mãe se reestruturasse e pudesse receber de volta sua filha, vivendo em uma família. O retorno aconteceu porque a instituição fez o movimento de retomar o processo de convivência familiar da criança. Juntas estão felizes. O desafio ainda é continuar a viver com medo, fechando as janelas para a sociedade preconceituosa.

Este caso, que se mostrou uma possibilidade de desinstitucionalização/suporte familiar, infelizmente é exemplar no sentido de promover a reflexão sobre os profundos sentidos das falhas no sistema de saúde. A mãe relata que fez o pré-natal, mas não pediram o exame para identificação do HIV no terceiro trimestre da gestação. E a menina nasceu após 1996, ano em que o protocolo da profilaxia para transmissão vertical já estava disponível no país.

Na atualidade, ainda nascem crianças com HIV no Brasil e, considerando que existe a possibilidade de prevenção, este fato é bastante grave. Excelente que tenhamos diminuído os índices da transmissão vertical, mas o caso de Letícia mostra o quão difícil pode ser para uma criança viver com HIV. É preciso – e possível – que nenhuma criança nasça com AIDS.

Poderia ainda citar muitas outras histórias e trajetórias. Estas duas histórias encontraram caminhos para desinstitucionalização e, considerando os relatos e processos, fica visível que as instituições tiveram um papel importante na desinstitucionalização, e só puderam agir assim porque apresentaram abertura para repensar concepções de infância e família e da própria instituição.

Entretanto, trajetórias assim coexistem com vidas que têm outros percursos. Instituições que, mesmo sem querer ou perceber, fazem julgamento moral da família (que, pela pobreza ou pelo modo como estabelece vínculos, é considerada inadequada para cuidar), famílias que efetivamente não têm condições de cuidar, crianças cujas referências familiares não são encontradas, famílias que acreditam que a instituição cuida melhor.

 

Abrir portas e janelas

Os processos de institucionalização, desinstitucionalização e relações familiares vividos por crianças e jovens com HIV/AIDS encontram similitude com os processos experienciados por qualquer criança que, por algum motivo, tenha sido institucionalizada (violência, abandono etc.). Entretanto, a infecção pelo HIV/AIDS agrega um elemento substancial em termos de tratamento, perspectivas de vida e possibilidades de adoção, principalmente pela questão do estigma e discriminação. Não é a mesma coisa ser uma criança que mora no abrigo e ser uma criança que mora no abrigo e tem AIDS, especialmente considerando o preconceito que existe em relação às pessoas que tem HIV/AIDS.

Observei ainda que a instituição tem múltiplos sentidos para os diferentes sujeitos envolvidos no processo, podendo se configurar como substituta da família, colégio, espaço de apoio e cuidado, local de restrições, local de possibilidades. O que se percebe é que é preciso tomar cuidado com definições consensuais – por exemplo, que a instituição é benéfica, “mal menor”, e espaço de garantia de direitos humanos. Ou, por outro lado, colocar a família como vilã, ou como incompetente para cuidar da criança ou jovem, ou como local idealizado e porto seguro. É preciso observar que a institucionalização é algo complexo, com vários matizes. Pontos de destaque desta reflexão são a reprodução de um modelo assistencialista para o cuidado de crianças pobres e doentes e as concepções de família capturadas pelo modelo de família nuclear – que conferem um lugar idealizado para a maternidade e, consequentemente, implicam forte culpabilização das mulheres que enfrentam desafios nos processos de cuidado com os/as filhos/as.

O balanço que consigo fazer é que há uma delicadeza na tessitura destes saberes e vários afetos, responsabilidades e incertezas envolvidos. E o mais importante: existem vidas e histórias de vida em jogo nos processos de decisão. Por isso, ao invés de formulações de prescrições universais e fixas (a instituição é melhor, a família é melhor), o que precisamos fazer é desenvolver a capacidade de ouvir, observar, perceber os movimentos e fluidez dos vínculos e, junto com as pessoas envolvidas (inclusive as crianças e jovens), construir os caminhos para que a história da criança e dos jovens seja escrita com sua participação e ancorada no arcabouço do cuidado, proteção e da garantia de direitos. Mais do que isto, podemos voltar ao início do que argumentei neste texto e pensar se somos capazes de interpelar e desconstruir nossas verdades e ainda lidar com a alteridade e com os diferentes sentidos e produções discursivas, inclusive a respeito de o que é cuidado, proteção e garantia de direitos.

É preciso observar que, nesta teia, as relações são também relações de poder e que existe governamento e regulação da população8 (Foucault, 2003). Cabe ainda estarmos atentos para os elementos que nos põem a rodar, numa maquinaria nem sempre visível, para fazermos muitas vezes mais do mesmo, pensando que fazemos “o novo” ou “o melhor”.

Fecho este texto com a vivência que me tocou profundamente, a imagem da menina negra, angustiada, pulando rapidamente para fechar a janela e o choro de tristeza por viver com HIV. Esta imagem, se por um lado reflete o mundo interno da casa, reflete também o que está para fora dali. Janelas e portas fechadas falam muito mais de todos nós que habitamos este mundo do que daqueles que nomeamos como outros e sentem que precisam fechar as janelas para se proteger desse mundo. O caminho para a transformação desta imagem/realidade passa necessariamente pela construção das possibilidades de resistir e transformar o fascismo cotidiano que se apresenta traduzido como estigma e discriminação. Tal construção tem como trilha a desconstrução da fixidez das identidades e da colocação do “outro”, da diferença, como anormalidade ou problema. Na concepção foucaultiana de poder, a resistência tem um papel importante. Precisamos resistir e persistir no enfrentamento do preconceito, na busca de um mundo capaz de abrir janelas e portas. E quem sabe até possamos chegar à questão de por que, afinal, inventamos as paredes?


Referências

ABADIA-BARRERO, C. E. Crianças vivendo com HIV e casas de apoio em São Paulo: cultura, experiências e contexto domiciliar. Interface Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 6, n. 11, p. 55-70, ago. 2002.         [ Links ]

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CRUZ, E. Espelhos d’AIDS: infâncias e adolescências nas tessituras da AIDS. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.

______. Infâncias, adolescências e AIDS. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 46, p. 363-84, dez. 2007.         [ Links ]

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______. Por uma vida não fascista. Organização Coletivo Sabotagem. Edição Virtual, 2004b.

FRANÇA JUNIOR, I.; DORING, M.; STELLA, I. M. Crianças órfãs e vulneráveis pelo HIV no Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40 (Supl.), p. 23-30, abr. 2006.         [ Links ]

 

Data de recebimento: 18/04/2015
Data de aceitação: 20/05/2015
 

 

1 Em trabalhos anteriores, usei o termo adolescente (ver Cruz, 2005). Há uma discussão teórica a este respeito, mas no escopo deste artigo não adentrarei neste debate. Quando falo dos jovens que viveram em instituições, estou falando de pessoas até 18 anos (adolescentes) e quando digo que, na atualidade, a epidemia aumenta entre os jovens, me refiro a pessoas até 29 anos.

2 ‘Direitos Humanos e a (des)institucionalização de crianças e jovens vivendo com HIV AIDS em São Paulo’, realizada no período de 2009 a 2011, com apoio da FAPESP.

3 Este debate é explorado com mais detalhes em Cruz (2005).

4 A pesquisa é um estudo qualitativo realizado no período de 2009 a 2011. Os procedimentos metodológicos envolveram: a) 15 entrevistas (crianças, jovens, adultos); b) análise de 22 prontuários; c) três visitas domiciliares. A maioria dos trabalhos acadêmicos nesta área aborda a institucionalização e me interessa pensar também elementos que contribuíram para a desinstitucionalização de crianças e jovens, tomando como referência duas casas de apoio de São Paulo.

5 A pesquisa foi realizada em duas casas de apoio em São Paulo. Fiz um estudo mais detalhado dos prontuários disponíveis numa delas, localizada num município adjacente à cidade de São Paulo. Atende crianças e jovens infectados pelo HIV ou familiares de pessoas com HIV/AIDS. Algumas crianças faleceram, outras foram adotadas e outras permaneceram na instituição até os 18 anos (tempo de permanência de mais de dez anos). Isto levou a instituição a pensar alguns projetos de profissionalização e apoio para estudos. Entretanto, também é desafiadora a construção de horizontes após longo período de institucionalização e fragilidade de vínculos familiares. Na época da pesquisa, a instituição atendia em média 25 crianças e jovens.

6 Os nomes são fictícios.

7 “Pequena” diante de institucionalizações que demoram 13 ou 14 anos. Entretanto, fica a reflexão: o que significa para uma mãe que está buscando os filhos ser separada das crianças por mais de 70 dias?

8 Governamento, população, relações de poder, produção do sujeito, fascismo, são ideias que podem ser encontradas em várias obras de Foucault, como, por exemplo, Foucault 2002, 2003, 2004a e 2004b. Sobre governamento da infância, ver Bujes, 2003.

I Psicóloga, Mestre em Psicologia Social, Doutora em Educação. Professora do Curso de Obstetrícia e do Mestrado em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, Brasil. E-mail: betefranco@usp.br

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