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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades vol.15  Rio de Janeiro Apr./June 2017

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Infância maia guatemalteca: vulnerabilidade nutricional e políticas públicas para seu enfrentamento

 

Infancia maya guatemalteca: vulnerabilidad nutricional y políticas públicas para su enfrentamiento

   

 

Cristian David Osorio FigueroaI e Thereza Christina Bahia CoelhoII

I Núcleo de Saúde Coletiva (NUSC), Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Feira de Sanatan/BA, Brasil.

II Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Feira de Sanatan/BA, Brasil.

 

 


RESUMO

A segurança alimentar e nutricional é um direito universal garantido pela legislação guatemalteca. O intuito do presente artigo é descrever a situação de vulnerabilidade nutricional da população infantil da Guatemala, especialmente a maia, e as políticas de segurança alimentar possíveis para resolver a problemática, realizando uma descrição, utilizando as dimensões que englobam esse conceito. São descritos os potenciais desafios que precisam ser considerados, entendendo que se devem fazer valer os direitos do cidadão maia guatemalteco, por meio de políticas públicas abrangentes, a fim de quebrar a cadeia intergeracional da desnutrição e da pobreza.

Palavras-chave: segurança alimentar, saúde dos povos indígenas, políticas públicas, Guatemala.


RESUMEN

Siendo la seguridad alimentaria y nutricional un derecho universal y garantizado por la legislación guatemalteca, este artículo se propone describir la situación de vulnerabilidad nutricional de la población infantil guatemalteca, especialmente maya, y las políticas de seguridad alimentaria que pudiesen implementarse para abordar la problemática, realizando una descripción de acuerdo a las dimensiones que engloba ese concepto. Se describen los potenciales desafíos que precisan ser pensados, comprendiendo que es necesario reivindicar los derechos de la ciudadanía infantil maya guatemalteca, a través de políticas públicas integrales, a modo de romper la cadena intergeneracional de la desnutrición y la pobreza.

Palabras-clave: seguridad alimentaria, salud de poblaciones indígenas, políticas públicas, Guatemala.


 

 

A segurança alimentar é um tema que atravessa a história da humanidade e possui diferentes matizes, desde a predominância da desnutrição até o aumento da obesidade. Tais desequilíbrios nutricionais estão presentes em sociedades em que coexistem a riqueza e a pobreza, nas quais, por um lado, encontramos uma enxurrada de informações sobre os benefícios de um peso equilibrado e acesso a uma gama de alimentos hipercalóricos, enquanto, por outro lado, diversas circunstâncias socioeconômicas e geográficas comprometem a produção e o acesso aos alimentos.

Apesar de ser um problema antigo, somente depois da Segunda Guerra Mundial começou a ser discutido o direito à alimentação, tema que foi ratificado em 1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU). No entanto, a operacionalização desse direito só seria explicitada em 1966, no Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) (ONU, 1948, 1966).

Para determinar obrigações, foi necessária uma nova interpretação da ONU sobre o direito à alimentação, estabelecida no Comentário Geral nº. 12, evidenciando o papel do Estado e as medidas a adotar para garanti-lo (CDESC, 1999). Posteriormente, foi criado o cargo de Relator Especial das Nações Unidas sobre o direito à alimentação e foram aprovadas as Diretrizes Voluntárias, ambas com o intuito de garantir este direito (FAO, 2000, 2005).

Especificamente para as crianças, o direito à alimentação foi instituído na Declaração dos Direitos da Criança, adotada em 1959, e reafirmado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 10 do PIDESC, e nos artigos 23 e 24 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966, 1989). Uma vez ratificados estes acordos, cada um dos países signatários, incluindo a Guatemala, deveriam procurar formular políticas e programas consistentes com a sua realidade.

A Guatemala é o país mais populoso da América Central, conformado por 22 departamentos, cuja população é maioritariamente indígena de ascendência maia, que constituem cerca de 60 por cento do total (Becerrill; López, 2011).  Os maias, por sua vez, são o grupo indígena mais numeroso e diversificado da América. Atualmente, a Guatemala reconhece 22 comunidades linguísticas, distribuídas entre cada um dos departamentos (IWGIA, 2016).

Produto da discriminação étnica na vida nacional da Guatemala, a alta concentração da riqueza e da terra conformou um padrão social altamente excludente da população maia, apesar de ela ser maioria (Sánchez-Midence; Victorino-Ramírez, 2012).  A Guatemala, inclusive, está classificada entre os países mais desiguais do mundo, ocupando a posição número 119. Quando comparados o grupo indígena e não indígena, usando o índice de Theil , calculado em 8.5 para este caso, a desigualdade se apresenta ainda mais perceptível (PNUD, 2016). Tal desigualdade se expressa em uma série de áreas, incluindo o direito à alimentação.

A Guatemala, em teoria, deveria garantir o direito à alimentação, sendo obrigação do Estado de proporcionar o desenvolvimento integral (Guatemala, 1985). Derivado desse mandato constitucional e dos tratados internacionais adotados, em 2005, foi aprovada a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e o Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional, para a formulação e implementação de planos para combater a insegurança alimentar.

O foco deste trabalho é descrever o estado de segurança alimentar da população e as potenciais políticas de segurança alimentar que visem garantir esse direito à população infantil principalmente, considerando que o direito à alimentação é garantido pela legislação guatemalteca.

 

Situação nutricional da infância guatemalteca

Em 2015, o número de crianças menores de cinco anos subnutridas nas regiões em desenvolvimento do mundo diminuiu, quando comparado com os anos 1990. Na América Latina também houve uma redução, embora com diferenças intrarregionais, sendo que a América do Sul foi a única a atingir a meta de menos de 5% das crianças em subnutrição, o que é esperado de outras causas (FAO; IFAD; WFP, 2015).

Quando mostrado o progresso da desnutrição na América Latina, de alguma maneira, se tornam invisíveis casos dramáticos. Por exemplo, segundo a FAO (2015), na Guatemala, 48% das crianças com menos de cinco anos encontram-se em desnutrição crônica e 4,9% em obesidade (FAO, 2015).  Ademais, segundo dados da Encuesta Nacional de Condiciones de Vida (ENCOVI) (Guatemala, 2015), esses números se agravam considerando que 70,2% das crianças de 0-9 anos vivem na pobreza, sendo a população indígena 1,7 vezes mais pobre do que a não indígena. Além disso, os 27,1% da população maia que vive em situação de pobreza extrema aumentou para 39,8% em 2014 (Guatemala, 2015).

Além do mais, as diferenças entre comunidades linguísticas abrangem outros aspectos além da pobreza: as crianças com o espanhol como língua materna têm menor prevalência de desnutrição crônica quando comparados com aqueles cuja língua materna é o maia. Por exemplo, as comunidades linguísticas Chorti (80,7%), Akateco (79,1%) e Ixil (76,9%), localizadas principalmente no oeste do país, são as mais afetadas, apresentando situação de vulnerabilidade, enquanto a cidade de Guatemala, de predominância ladina, possui 26,3% de desnutrição crônica (ODHAG, 2011).

Para Dilley e Boudreau (2001), a vulnerabilidade é a capacidade de responder à possibilidade de algum dano. Por conseguinte, através dos dados mostrados, pode-se ver que a capacidade de enfrentar a insegurança alimentar da população maia da Guatemala é limitada pelas condições socioeconômicas adversas. Logo, isso afeta não só a sua capacidade imediata para a aquisição de alimentos, mas também compromete a sua capacidade futura.

Para Freitas (2003), como produto da subordinação social, a fome está concentrada nos condenados à incerteza de sobreviver desde a mais tenra idade. Nessa perspectiva, a população maia guatemalteca é a mais afetada por ter sido atacada e subordinada historicamente das mais diversas formas, seja indiretamente, pela falta de políticas públicas inclusivas, ou diretamente, como no caso do conflito armado interno.

Portanto, a segurança alimentar e nutricional não corresponde apenas à simples relação de ter ou não comida, mas depende de uma série de fatores que tornam a segurança alimentar e nutricional um fenômeno complexo, multidimensional e contínuo, que pode piorar por causa da sua relação com as condições econômicas (Bezerra et al., 2015; Gubert; Santos, 2009).

Ou seja, para um fenômeno de tal natureza não há receita única como solução. No entanto, tem-se discutido a necessidade de políticas econômicas e sociais como o primeiro passo decisivo para resolvê-lo; além disso, mecanismos de institucionalização que criem uma base sólida para proteger os avanços alcançados e superar futuros obstáculos (FAO, 2015; Kepple, 2014; Valente, 2003).

Para fins operacionais, é possível dividir as políticas públicas de segurança alimentar de acordo com o objetivo que se deseja alcançar: garantir o acesso aos alimentos, sua disponibilidade, a utilização biológica adequada dos mesmos e a estabilidade alimentar. Considerando a vulnerabilidade infantil das comunidades maias em relação à desnutrição e conhecendo o potencial futuro que representam, se exploram as políticas nessas áreas e alguns desafios.

Políticas de acesso à alimentação: reivindicação do maia como cidadão guatemalteco

O papel do Estado deve ser repensado para garantir o acesso aos alimentos, sendo mais ativo no processo de formulação de políticas públicas que respondam a essa finalidade. Como resultado do capitalismo tardio existente, concentrou-se tanto o sistema alimentar que os indivíduos ficaram sem poder de decisão, ou seja, sem a capacidade, a liberdade e a responsabilidade de escolher sua alimentação (Lang, 1999).

Esse poder de decisão, que determina o acesso aos alimentos, depende, em primeiro lugar, do poder de compra da população, que tem como componentes dois aspectos: os rendimentos e a flutuação de preços. Em segundo lugar, depende do conhecimento sobre o alimento, dos incentivos das lojas para a compra e do valor atribuído às coisas, ou seja,da percepção de qual produto na loja realmente vale o preço, e outros fatores, como a aceitabilidade social, raça ou etnia, gostos e preferências (Freedman; Blake; Liese, 2013; Rose et al., 2010).

Como exemplo dessa relação, de acordo com o referencial teórico dos antepassados e a experiência maia, existe uma classificação de alimentos. Esta se baseia na natureza do alimento podendo ser “frio” ou “quente”. Os alimentos quentes são benéficos para o organismo, porque preservam a temperatura corporal (Galindo; Chang, 2014), enquanto os frios não o são. De modo que, na formulação de políticas ou recomendações nutricionais, não devem ser menosprezados esses conhecimentos e práticas que afetam o poder de decisão.

White (2007) adverte que este poder de decisão também é afetado pelo incentivo ao consumo de alimentos devido à estrutura do mercado atual, que tem sido objeto de investigação para subsidiar o redirecionamento de políticas públicas reguladoras, culturalmente aceitas para a defesa do consumidor.

Para garantir a aceitabilidade cultural é importante conhecer os processos, os sentidos atribuídos e os hábitos alimentares das comunidades rurais. Por exemplo, Soares e Coelho (2008) mostram que as famílias, diante da incapacidade de garantir alimentos de qualidade e de seguir as orientações dos serviços de saúde, optam por produtos que possam ser facilmente compartilhados, com maior durabilidade no armário e que produzam sensação de saciedade e um eventual ganho de peso, para esconder da sociedade sua situação, ainda que possuam deficiências alimentares. De tal maneira que, nestas famílias, o correto cuidado nutricional da criança perde-se em detrimento das preocupações da vida diária. Conhecendo esses aspectos, é possível incorporar estes sentidos e significados na reeducação nutricional, por exemplo.

Além disso, a vulnerabilidade ao acesso dos alimentos, no caso da Guatemala, continua inserida em uma lógica de mercado, individualizando por completo a responsabilidade do ato alimentar, sem considerar fatores como o trabalho informal e a pobreza, agravados por um Estado que não privilegia as condições sociais, nem a segurança social. Em reflexo disto, a Guatemala é o penúltimo país na América Latina em gasto social, com apenas 8,1% do PIB (Acosta; Almeida; Pena, 2016). No contexto brasileiro, Silva (2014) atribui esse baixo gasto social à existência de um Estado que deixa nas mãos de parceiros do setor privado e dos que praticam filantropia aquilo que deveria garantir à população.

De modo que, diante da persistência da pobreza e da desigualdade social dentro do campo do acesso à alimentação, devem ser implementadas políticas alimentares que correspondam a um Estado preocupado com a inclusão social, por meio de programas de proteção social não contributiva, direcionado aos mais vulneráveis, enquanto se criam outros mecanismos de sustentabilidade, através da inserção e dignificação da população, garantindo os direitos econômicos, sociais e culturais dos cidadãos guatemaltecos (Martínez; Cecchini, 2011).

Um exemplo de tais intervenções são as políticas de transferência de renda, inseridas no sistema de proteção social. Este programa também é responsável pelas políticas contributivas (seguridade social) e de regulação do mercado de trabalho, com a finalidade de proteger o trabalho digno, as políticas antidiscriminação e a eliminação do trabalho infantil  (Bertranau, 2008; Martínez; Cecchini, 2011). Todas elas incidindo no direito à alimentação, por meio da melhoria da capacidade aquisitiva e, portanto, do acesso aos alimentos.

Atualmente há uma transição do termo “transferências condicionadas de renda” para “transferências de renda com corresponsabilidade”, que concede dinheiro às famílias, sob a condição de cumprir certas obrigações, e responsabiliza o Estado por assegurar condições que garantam a inclusão no mercado de trabalho e o acesso aos serviços básicos, como reconhecimento da desigualdade existente nas estruturas econômicas, laboral e social, para, de forma equitativa, garantir o pleno desenvolvimento dos cidadãos (Bertranau, 2008; Cohen; Franco, 2006).

A primeira experiência de transferências de dinheiro na Guatemala remonta a 2008, durante o governo de Álvaro Colom, através da criação do Conselho de Coesão Social, que também seria responsável pelo programa Restaurante Solidário, como um mecanismo de acesso a alimentos, por um custo acessível, para as pessoas em situação de rua (Guatemala, 2008).

Estes programas deram um primeiro passo na concessão de renda e alimento para os mais pobres. No entanto, foram implementados de forma focalizada, errática, com atrasos e critérios que excluíam departamentos altamente vulneráveis no campo nutricional, sem interligação com outras políticas voltadas para a emancipação de seus beneficiários (PDH, 2009), ao contrário do caso Bolsa Família, que, de acordo com Rego e Pinzani (2014), permitiu reduzir a pobreza e dignificar a população historicamente marginalizada, com a possibilidade de serem autônomos.

Outro programa de acesso aos alimentos com potencial significativo para a comunidade infantil maia é o Programa de Alimentação Escolar. Na Guatemala, o projeto de alimentação escolar começou em 1959, com cooperação internacional. No entanto, só foi incorporado, sem interrupções, a partir de 1985. Embora o programa esteja implementado, são poucos os estudos publicados avaliando o impacto que tem e, em parte, as múltiplas formas adotadas são o que torna impossível saber a eficiência e a eficácia que possui (Alvarado, 2014).

Devido às suas características calóricas deficientes e à sua inconsistência na entrega, principalmente, tem-se constituído como um programa de merenda escolar, longe da proposta ideal: ser um alimento com objetivo de evitar a sensação de fome no momento da aprendizagem, melhorando a concentração e o desempenho escolar. Também tem um valor social, devido ao seu caráter estratégico, ao envolver-se no processo ensino-aprendizagem, adquirindo caráter de prática pedagógica, ao promover a segurança alimentar e nutricional, e reduzindo as privações vividas no lugar (Brasil, 2007; Freitas et al., 2013; Libermann; Bertolini, 2015).  

Experiências positivas de alimentação escolar existem. Por exemplo, o caso brasileiro, que, embora começasse com a participação da comunidade internacional e como um simples lanche (Brasil, 1955), conseguiu evoluir. Assim, foi incluído como um direito constitucional em 1988 e, posteriormente, nas diretrizes e bases da educação nacional. Atualmente, o programa se estende universalmente, inclui um nutricionista como o técnico responsável pelo programa, e utiliza produtos locais da agricultura familiar, dando prioridade aos alimentos orgânicos e agroecológicos. Além disso, restringe alimentos ricos em açúcar, gordura e sal, incentivando a participação da comunidade (Barbosa, 2012).


Políticas de utilização biológica dos alimentos

A utilização biológica dos alimentos refere-se à capacidade do organismo de utilizar os alimentos consumidos para convertê-los em nutrientes posteriormente assimilados. Para que isso aconteça, a qualidade dos alimentos deve permanecer desde a colheita, compra e manipulação, até o consumo, o que assegura que eles sejam inócuos e realmente possuam propriedades nutricionais (FAO, 2006).

Talvez uma das áreas mais desafiadoras e imprescindíveis na implementação de políticas públicas de segurança alimentar seja a de utilização biológica, não pela dificuldade de formulá-las, e sim por causa da sua abrangência. Esta cobertura inclui, sem exaustão, medidas de saneamento ambiental, prestação de serviços públicos de saúde, educação alimentar culturalmente adaptada e uma adequada vigilância sanitária dos alimentos, todas sob a corresponsabilidade do Estado.

Estudos apontam (Jesus et al., 2014; Kavosi et al., 2014; Sobrino et al., 2014) que a ausência de saneamento ambiental, a precária assistência pré-natal, as condições de moradia inadequadas, a morbidade infantil e a ausência de fonte de água potável aumentam o risco de deficiência nutricional em crianças. Contrariamente a essas condições, estudos de coorte (Hoddinott et al., 2013; Horton; Steckel, 2013; Victora et al., 2015) mostram que aqueles com controle de pré-natal, aleitamento materno, acesso a educação e melhores condições socioeconômicas na idade adulta conseguem melhores oportunidades de emprego e salário.

Apesar da importância de tais serviços, no entanto, de acordo com a última Pesquisa Nacional de Condições de Vida (ENCOVI), realizada em 2014, apenas 77,8% da população possui uma fonte melhorada de água para beber , sendo maior o acesso nas áreas urbanas, atingindo 89,0% do total, ao contrário da área rural, onde apenas corresponde a 64,4% das famílias com esse acesso. Por outro lado, 58,3% da população tem condições de saneamento ambiental adequado, sendo que, ao considerar a área de residência, a situação nas zonas rurais é crítica, ao atingir apenas 28,9% das famílias (Guatemala, 2015).

A situação permanece crítica nas áreas rurais, apesar da aprovação da Política Nacional do Setor de Água Potável e Saneamento, em 2012, que teve como objetivo melhorar a infraestrutura existente e ampliar a cobertura nos municípios priorizados, utilizando suas taxas de desnutrição, pobreza e mortalidade infantil. No entanto, não se explicitam os mecanismos para implementar a política, priorizando apenas áreas geográficas, desconsiderando a situação familiar específica. Políticas semelhantes priorizam famílias de baixa renda segundo critérios universais, além da finalidade da utilização da água, seja para consumo ou para produção (Brasil, 2011).

O acesso à saúde na Guatemala enfrenta grandes desafios, desde o baixo financiamento, 7,1% do PIB, que não tem apresentado mudanças na última década, até a infraestrutura praticamente estática, considerando que 90% das despesas de saúde vêm do bolso do usuário (OMS, 2011). Além disso, 70,9% do pessoal de saúde encontra-se concentrado na capital, deixando vulneráveis as regiões mais remotas do país (URL, 2008).

Enquanto isso, as pessoas, em muitas partes do país, encontram sua mobilidade aos serviços de saúde dificultada pelas características geográficas, já que mesmo o atendimento no serviço de saúde gratuito envolve despesas de transporte e medicamentos.  Portanto, preferem buscar uma farmácia que vai dar o atendimento na língua local, respeitando as crenças e cultura, sem medo dos maus tratos e da discriminação encontrada na medicina tradicional (Hautecoeur; Zunzunegui; Vissandjee, 2007).

Por outro lado, a educação alimentar ganhou espaço, especialmente com as guias alimentares como ferramentas. Estas guias focam tanto na deficiência nutricional como na desnutrição e obesidade, com o objetivo de recomendar a quantidade e a qualidade dos padrões alimentares adequados, com base em argumentos científicos de cada faixa etária, para que suas recomendações tenham maior aceitação de acordo com os alimentos típicos de cada grupo. Deve ser dada uma atenção especial às diretrizes para crianças menores de dois anos, atendendo às características ambientais, culturais e educacionais da população (Barbosa; Salles-Costa; Soares, 2006).

A utilização biológica dos alimentos é uma área multidimensional muito importante, mostrando que a segurança alimentar não depende de um único aspecto. Por exemplo, garantir às famílias o poder de compra sem a educação alimentar apropriada e pertinência cultural, em condições insalubres e falta de acesso à educação, não garante melhorar o estado nutricional das famílias e, pior que isso, não garante o rompimento da cadeia intergeracional da desnutrição.

Políticas para garantir a estabilidade alimentar

Este eixo da segurança alimentar garante o acesso e a disponibilidade constante aos alimentos. A falta de estabilidade dos alimentos pode levar a um agravamento do estado nutricional subjacente a eventos causais como, por exemplo, a fome sazonal ou estação da fome, que consiste na deterioração previsível e recorrente da situação alimentar devido à escassez de alimentos pela mudança das estações, por desastres naturais (secas, inundações, terremotos) ou desastres humanos (guerra, refugiados) (FAO, 2006).

No contexto da América Central, é importante desenvolver tais políticas pela localização e pelas características geotectônicas, que tornam os países da região suscetíveis a ameaças naturais como inundações, furacões, secas, terremotos e deslizamentos de terra. Em consequência das mudanças climáticas os desastres hidrometeorológicos têm aumentado (FAO, 2014).

No caso particular da Guatemala, que se encontra localizada em uma região de convergência intertropical e de influência de fenômenos El Niño e La Niña e entre o Oceano Atlântico e o Oceano Pacífico, entre 1998 e 2014, foram registrados um total de oito eventos hidrometeorológicos extremos ligados às mudanças climáticas. As perdas e danos acumulados foram milionários e afetaram, principalmente, os setores de infraestrutura, agricultura e saúde (Guatemala, 2015), provocando constantes crises alimentares.

Para Prado-Córdova (2011), as crises alimentares e a fome são o reflexo da instabilidade alimentar e da falta de prevenção, produto não só do mau clima, mas também de uma estrutura econômica que beneficia os grandes produtores e da falta de sustentabilidade ambiental, por meio do uso indiscriminado de recursos naturais. Tal situação irá resultar no desaparecimento físico de quem padece com as consequências mais agudas da insegurança alimentar e da pobreza extrema. Portanto, as políticas de estabilidade alimentar devem ser acompanhadas de um sistema legal que garanta a inclusão e proteção dos pequenos agricultores dentro do mercado e a sustentabilidade de seus cultivos frente às variações sazonais, ainda que o maior desafio seja o de modificar a atual estrutura institucional que perpetua a exclusão maia e privilegia as grandes corporações.


Considerações finais

O direito à alimentação e a luta contra a fome e a pobreza extrema são tão importantes na atualidade, bem como durante o curso da história. É um desafio para a Guatemala alcançar as metas estabelecidas em acordos internacionais e garantir o direito à alimentação na Constituição da Guatemala, ratificada na Lei de Segurança Alimentar e Nutricional, principalmente para a população infantil maia, cujo estado atual é produto de uma história de políticas e estrutura institucional de exclusão social.

É importante que as ações tomadas em prol da erradicação da fome sejam políticas de Estado e de origem não partidárias, a fim de não retroceder nos possíveis progressos. Durante esse processo, a avaliação constante desempenha um papel importante, com o intuito de avaliar as modificações, alterações ou eficácia dos programas e políticas implementados. E este é um papel que deve ser assumido pela sociedade civil e pelas universidades.

Uma série de políticas públicas podem contribuir para o avanço na luta da segurança alimentar, para o rompimento da cadeia intergeracional da desnutrição e da fome. Tais políticas devem ser formuladas entendendo a multidimensionalidade da segurança alimentar, respeitando a cultura dos povos maias e reivindicando seu lugar na sociedade como cidadãos, através da garantia das condições sociais e de saúde apropriadas, direitos historicamente negados.

 

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Data de recebimento: 11/10/2016
Data de aceite: 02/06/2017


1 O índice de Theil é utilizado para medir a diferença entre os grupos ou estratos.

2 Inclui água canalizada para uma habitação, terreno ou quintal; torneira pública ou tubo vertical; nascente protegida; e recolha de água da chuva (Guatemala, 2015).


I Cristian David Osorio Figueroa, Médico clínico geral pela Universidade de San Carlos de Guatemala (USAC), Guatemala. Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Brasil. Membro do Núcleo de Pesquisa em Saúde Coletiva (NUSC/UEFS), na área de políticas, planejamento e gestão em saúde. E-mail: crisgibb@hotmail.com

II Thereza Christina Bahia Coelho, Médica pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Brasil, mestre em Saúde Comunitária (UFBA), doutora em Saúde Pública (UFBA) com pós-doutorado em Saúde Pública pela University of Essex, Inglaterra, e pela Universidad de Lanús, Argentina. Professora titular da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Brasil, onde coordena o Núcleo de Pesquisa em Saúde Coletiva (NUSC). E-mail: tcuide@yahoo.com.br

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