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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.31 Rio de Janeiro set./dez. 2021

 

TEMAS EM DESTAQUE - SEÇÃO TEMÁTICA TEMAS SOBRESALIENTES - SECCIÓN TEMÁTICA

 

As crianças e seus mil dias: articulações entre saúde e educação

 

Children and their thousand days: articulations between health and education

 

Los ninos y sus mil días: articulaciones entre salud y educación

 

 

Antonio José Ledo Alves da CunhaI; Patrícia CorsinoII

IProfessor Titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Brasil. Coordenador do Laboratório Multidisciplinar de Epidemiologia e Saúde - LAMPES, da Faculdade de Medicina da UFRJ. Pesquisador 1-B do CNPq. Cientista de Nosso Estado, FAPERJ. Doutor em Epidemiologia. Mestre em Saúde Pública e em Pediatria. E-mail: acunha@medicina.ufrj.br
IIPedagoga, mestre e doutora em Educação pela Pontifica Universidade Católica - PUC, Rio de Janeiro, Brasil. Pós-doutorado pela Università degli Studi di Pavia, Itália; Professora Associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Brasil. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Infância, Linguagem e Educação - GEPILE. E-mail: corsinopat@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo se propõe a estabelecer um diálogo entre saúde e educação infantil. Toma como ponto de partida questões que dizem respeito aos primeiros mil dias das crianças. A primeira parte trata da origem dos mil dias, apresenta o olhar da saúde sobre esse período, define atenção integral e discute o marco legal da primeira infância, que se propõe a articular políticas intersetoriais. A segunda parte trata da educação como um direito que abarca outros direitos. Discute a qualidade da oferta da Educação Infantil para o desenvolvimento integral das crianças, a não dissociação entre cuidar e educar, traz questões para discutir o desenvolvimento das crianças nos primeiros anos de vida e a docência na Educação Infantil. Na terceira parte conclui com indagações para as políticas voltadas para a primeira infância, com ênfase nos primeiros mil dias, as quais são essenciais para o pleno desenvolvimento das crianças, para o aprimoramento das sociedades e diminuição de desigualdades. Políticas que devem integrar várias áreas do conhecimento, sendo essencial a integração entre a área da saúde e da educação.

Palavras-chave: primeira infância, desenvolvimento infantil, marco legal da primeira infância, atenção à saúde, educação infantil.


ABSTRACT

This article aims to establish a dialogue between Health and Early Childhood Education. It takes as a starting point for dialogue issues concerning the first thousand days of children. The first part deals with the origin of the thousand days, presents the health look on this period, defines comprehensive care and discusses the legal framework of early childhood that aims to articulate intersectoral policies. The second part deals with education as a right that embraces other rights. It discusses the quality of the offer of Early Childhood Education for the integral development of children, the non-dissociation between caring and educating, raises questions to discuss the development of children in the first years of life and teaching in Early Childhood Education. The third part concludes with questions for current policies. Early childhood policies, with emphasis on the first thousand days, are essential for the full development of individuais, for the improvement of societies and for the reduction of inequalities. These policies should integrate several areas of knowledge, being essential in the case of early childhood and in the first thousand days the integration between the area of health and education.

Keywords: early childhood, child development, early childhood legal framework, health care, early childhood education.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo establecer un diálogo entre la Salud y la Educación Infantil. Toma como punto de partida para el diálogo las cuestiones relativas a los primeros mil días de los ninos. La primera parte aborda el origen de los mil días, presenta la mirada de salud en este período, define la atención integral y discute el marco legal de la primera infancia que pretende articular políticas intersectoriales. La segunda parte trata de la educación como un derecho que abarca otros derechos. Se discute la calidad de la oferta para el desarrollo integral de los ninos, la no disociación entre cuidar y educar. La segunda parte trata de la educación como un derecho que abarca otros derechos. Se analiza la calidad de la oferta de Educación Infantil para el desarrollo integral de los ninos, la no disociación entre cuidar y educar, plantea interrogantes para debatir el desarrollo de los ninos en los primeros anos de vida y la docência en Educación Infantil. La tercera parte concluye con preguntas para las políticas actuales. Las políticas de primera infancia, con enfasis en los primeros mil días, son esenciales para el pleno desarrollo de las personas, para la mejora de las sociedades y para la reducción de las desigualdades. Estas políticas deben integrar varias áreas de conocimiento, siendo esencial en el caso de la primera infancia y en los primeros mil días la integración entre el área de salud y educación.

Palabras clave: primera infancia, desarrollo infantil, marco legal de la primera infancia, atención de la salud, educación infantil.


 

 

Iniciando o diálogo

Mas as doenças são mesmo coisas de menino procurando jeito de ficar no mundo. Quando não são as dores de barriga, são as de ouvido, os resfriados ameaçando pneumonia. Se Antônio merecia atenção maior, era por causa do tempo. Enquanto todos pensavam que ele ficaria mais dois meses no escuro da noite da mãe, sem mais nem menos pulou para a vida. E, se assustou a todos, seu susto deve ter sido maior ao encontrar todos assustados. Sua timidez deve ter nascido aí. Afinal de contas, ele não pediu licença e entrou desarrumando tudo.

Bartolomeu Campos de Queirós

As crianças entram na vida sem pedir licença e viram pelo avesso o seu entorno. Não há como não se alterar com elas. Desde lá, no escuro da noite de cada mãe, criam situações e possibilidades, procuram jeitos de estar no mundo. Mexem com o corpo todo de quem as gestam, mexem com emoções, afetos, desejos. Primeiro de dentro e depois de fora, participam da vida por inteiro. O nascer assusta e assombra não só a elas que chegam, mas também os que aqui já estão. E esse susto inicial do encontro com o outro, que, para Antônio, pode ter dado origem à sua timidez, é o que nos constitui vida afora. O susto de Antônio é o de todos nós porque, como afirma Bakhtin (2006, p. 341), “ser significa ser para o outro e, por meio do outro, para si próprio“.

O outro é constituinte do eu num processo alteritário e dialógico. Mesmo antes de nascerem, discursos e cuidados são direcionados às crianças, evidenciando que a inserção no mundo se dá desde a gestação. Estudos de diversos campos têm apontado a importância do período pré-natal e da primeira infância na vida das pessoas. Cada área, por sua vez, aprofunda estudos e apresenta caminhos, na maioria das vezes, de forma isolada. Um dos desafios do campo científico e das políticas públicas tem sido pensar as crianças na sua integralidade física, emocional, afetiva, cognitiva, social. Entendemos que, se, por um lado, as especificidades de cada área disciplinar com suas pesquisas são necessárias para aprofundar conhecimentos, por outro, a articulação entre elas apresenta novas indagações, podendo ampliar perspectivas. Assim, este artigo se propõe a estabelecer um diálogo entre Pediatria e Educação Infantil, tomando como ponto de partida para o diálogo questões que dizem respeito aos primeiros mil dias das crianças. Os mil dias, que englobam a gestão e os dois primeiros anos da criança, considerados pela área da saúde como um período importante para o desenvolvimento físico e mental do ser humano, são discutidos de forma metafórica, abarcando questões para além dessa área e da dimensão cronológica stricto sensu, mas como processo relacional e constitutivo. O texto está organizado em três partes. A primeira parte trata da origem dos mil dias, apresenta o olhar da saúde sobre esse período, define atenção integral e discute o marco legal da primeira infância, que se propõe a articular políticas intersetoriais. A segunda parte trata da educação como um direito que abarca outros direitos, discute a qualidade da oferta da Educação Infantil para o desenvolvimento integral das crianças, a não dissociação entre cuidar e educar, traz questões para discutir o desenvolvimento das crianças nos primeiros anos de vida e a docência na Educação Infantil. Na terceira parte conclui com indagações para as políticas voltadas para a primeira infância, com ênfase nos primeiros mil dias, as quais são fundamentais para o pleno desenvolvimento das crianças, para o aprimoramento das sociedades e diminuição de desigualdades.

 

Os mil dias e a saúde

Em 2008, o The Lancet publicou uma série de artigos sobre desnutrição materno-infantil que identificou a necessidade de focalizar os cuidados no período que vai desde a concepção até o final do segundo ano de vida da criança - os primeiros mil dias -, apontando que uma boa nutrição e crescimento saudável teriam benefícios que durariam por toda a vida (BHUTTA et al., 2008).

Desde a publicação dessa série, o conceito dos primeiros mil dias tem sido adotado por agências e organizações não governamentais internacionais1, utilizado como referência por pesquisadores da área da saúde2 e mencionado em artigos científicos3.

O período dos primeiros mil dias passou a ser considerado importante para intervenções que garantam nutrição e desenvolvimento saudáveis, que trarão benefícios em todo o ciclo de vida. Segundo Cunha, Leite e Almeida (2015), as crianças devem receber alimentação adequada por meio de nutrição pré-natal adequada, aleitamento materno exclusivo nos primeiros seis meses, adição de alimentos complementares adequados e continuação da amamentação até os dois anos. Face à condição de dependência absoluta de cuidados de um adulto, é fundamental que tenham um ambiente propício e acolhedor necessário para desenvolver laços fortes com seus cuidadores, lançando as bases para um desenvolvimento pleno e saudável (CUNHA; LEITE; ALMEIDA, 2015).

Assim, os primeiros mil dias da criança incluem os 270 dias da gestação e os 730 dias até que o bebê complete dois anos e tem sido considerado como de grande importância para a saúde na fase adulta. Nesse período, o ser humano experimenta o maior estirão de crescimento. Além disso, são os anos fundamentais para o desenvolvimento de dois dos mais importantes sistemas do corpo humano: o nervoso e o imunológico. Nesse período também ocorre a formação de bons hábitos alimentares, que aumentarão as chances de a criança se tornar um adulto saudável (PRIMEIROS 1000 DIAS, 2021b).

Portanto, tanto a nutrição adequada, especialmente desde a concepção até os dois anos, quanto a estimulação precoce nos primeiros cinco anos de vida desempenham um papel crítico no processo de formação e desenvolvimento cerebral e contribuem decisivamente para o pleno desenvolvimento da criança (NELSON; HAAN; THOMAS, 2006).

A contagem dos primeiros mil dias começa na gravidez em função de a gestação impac-tar na saúde física e emocional do feto (PRIMEIROS 1000 DIAS, 2021a). A alimentação da mãe durante esse período ajuda a determinar o paladar e o olfato do bebê, uma vez que fatores que os determinam podem passar para o líquido amniótico (VALLE; EUCLYDES, 2007). O desenvolvimento neurológico também é muito intenso na vida intrauterina e infelizmente pode sofrer influências indesejáveis de vários fatores, como o fumo, drogas e medicamentos ingeridos pela mãe (GRANTHAM-MCGREGOR et al., 2007; BLACK et al., 2016). O fumo, por exemplo, por meio de seus componentes, pode levar ao estreitamento do cordão umbilical para evitar a contaminação do feto, porém também pode levar à oferta de menos nutrientes a ele (LEOPÉRCIO; GIGLIOTTI, 2004). Esse é também o período em que o cérebro mais precisa de estímulos, uma vez que 90% das conexões cerebrais são estabelecidas até os seis anos. Em outras palavras, as interações sociais contribuem para impulsionar a atividade cerebral (ZERO TO THREE, 2021).

Em relação ao desenvolvimento neurológico, apesar de o bebê já nascer com o cérebro desenvolvido em relação a aspectos sensoriais, como o tato, a audição e o olfato, é nesse período que o órgão passa por grandes modificações cognitivas. Nos primeiros mil dias, as células cerebrais podem fazer até mil novas conexões a cada segundo, uma velocidade que ocorre somente nesse período da vida. Essas conexões contribuem para o pleno funcionamento do cérebro no futuro e para a aprendizagem das crianças (PRIMEIROS 1000 DIAS, 2021a).

Até mesmo o campo da Macroeconomia tem apontado a importância dos mil dias das crianças, trazendo mais argumentos para a valorização desse período. James Heckman, economista americano, ganhador do prêmio Nobel de economia em 2000, a partir de uma série de estudos, chegou à equação (Equação Heckman) de que a para cada US$ 1 investido na primeira infância se tem US$ 7 de retorno na vida adulta. Em que pesem questões mais pontuais e de ordem local, seus estudos concluem que esse retorno se expressa em função, por exemplo, de menores índices de violência e de evasão escolar, assim como de menos gastos com tratamento de doenças evitáveis (WEINBERG, 2017).

Além disso, esses estudos mostram a correlação entre a nutrição adequada na primeira infância e o melhor desempenho escolar, o que, para o economista, pode impactar positivamente o Produto Interno Bruto (PIB) de um país (WEINBERG, 2017). Portanto, o argumento do investimento nesse período da vida aponta possíveis resultados favoráveis não somente para o próprio indivíduo, seja na infância ou na vida adulta, como também para a sociedade (PRIMEIROS 1000 DIAS, 2021b).

Em relação à nutrição, a alimentação apropriada para os primeiros mil dias inclui uma dieta equilibrada da mãe na gravidez, o aleitamento materno exclusivo nos seis primeiros meses de vida do bebê e, a partir daí, a introdução de alimentos, como água, sucos, chás e papinhas. Estudos4 têm mostrado que o aleitamento materno exclusivo até os seis meses de vida favorece o desempenho intelectual e reduz o risco de vir a desenvolver obesidade e doenças cardiovasculares na vida adulta. É importante ressaltar que os bebês triplicam o peso do nascimento no primeiro ano de vida e, até os dois anos, acontece a formação dos hábitos alimentares que a criança levará pelo resto da vida (PRIMEIROS 1000 DIAS, 2021a).

Em relação ao afeto e cuidados, as evidências indicam que crianças crescem melhor quando são amadas (LUBY, 2020). Carinho, afeto e contato físico são essenciais para estabelecer e fortalecer os vínculos entre pais e filhos e ajudam a aumentar a imunidade do bebê. Experiências vividas na primeira infância afetam a formação do cérebro da criança em áreas relacionadas com a empatia e as emoções (STREET; SMITH, 2003). A parte do cérebro relacionada à memória, aprendizagem e autocontrole, chamada hipocampo, cresce duas vezes mais rápido nas crianças que recebem mais apoio emocional da mãe do que as que não recebem (KONKIEWITZ, 2013). Esse processo começa ainda na gestação, pois o feto já demonstra capacidade de audição desde a sexta semana de gravidez, podendo reconhecer a voz dos pais e captar todas as emoções que as acompanham.

Uma das atividades mais importantes das crianças é o brincar, desde os primeiros dias. Balançar o chocalho para um bebê de um mês, por exemplo, faz com que ele ouça o som e associe ao movimento. Com crianças maiores, brincar é importante para o desenvolvimento integral - cognitivo, afetivo, linguístico -, além de favorecer o exercício da autonomia, possibilitando que elas sejam mais independentes e autoconfiantes (PRIMEIROS 1000 DIAS, 2021a).

Crianças de dois a quatro anos que têm contato com livros, que brincam em parques ou praças nos dois primeiros anos de vida apresentam resultados melhores em testes específicos de memória, inteligência e cognição (PRIMEIROS 1000 DIAS, 2021a). Esses estudos sobre os mil dias evidenciam que não é apenas a genética que determina o potencial de crescimento e desenvolvimento do ser humano, mas a forte presença do outro e a relação com a cultura. Em suma, oferecer condições que favoreçam o desenvolvimento infantil nos primeiros anos de vida tem importância vida afora e gera menos custo do que buscar reverter ou minimizar os problemas em períodos posteriores.

Procuramos neste tópico apresentar o conceito e a importância dos mil dias para o ser humano. A atenção à saúde deve considerar esse conhecimento quando implementada a nível individual ou quando são formuladas políticas de atenção à saúde da criança. A seguir, apresentamos o conceito de atenção integral à saúde da criança, que tem relação indissociável com a implementação de ações relacionadas ao conceito dos mil dias.

 

Atenção integral à saúde da criança

Os fundamentos da atenção à saúde da criança nesse período da vida, ou seja, nos mil dias, não devem ser distintos daqueles voltados para crianças de outras faixas etárias, apesar de ter algumas ações que são específicas desse período. O princípio fundamental vem a ser a atenção integral à saúde da criança. Essa atenção integral, segundo o Ministério da Saúde (MEC), tem como objetivo promover e proteger a saúde da criança e o aleitamento materno, mediante atenção e cuidados integrais e integrados, da gestação aos nove anos de vida, com especial atenção à primeira infância e às populações de maior vulnerabilidade, visando à redução da morbimortalidade e um ambiente facilitador ao desenvolvimento saudável (BRASIL, 2018).

Para que essa atenção à saúde possa ser efetiva é necessário incluir aspectos de promoção à saúde, prevenção de agravos, atenção a doenças e medidas de reabilitação para os que forem acometidos. Em relação à atenção a doenças, devem ser priorizadas as mais comuns, conhecidas como mais prevalentes. Além disso, deve ser garantido que os três níveis de atenção à saúde sejam oferecidos e estejam integrados, a saber: a atenção primária, secundária e terciária, incluindo a atenção especializada a doenças de maior gravidade.

Em relação às ações específicas para os primeiros dois anos de vida, em especial para o primeiro ano, preconiza-se que a criança tenha consultas do que se costuma chamar de puericultura. Nessas consultas, o profissional de saúde monitora o crescimento e o desenvolvimento da criança para buscar formas de garantir que ela se mantenha saudável. Para atenção a doenças, a porta de entrada do sistema se dá pela atenção primária à saúde, que, no Brasil, está inserida na Estratégia Saúde da Família.

A Estratégia Saúde da Família visa à reorganização da atenção básica no país, de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde (SUS), e é tida pelo Ministério da Saúde e gestores estaduais e municipais como estratégia de expansão, qualificação e consolidação da atenção básica por favorecer uma reorientação do processo de trabalho com maior potencial de aprofundar os princípios, diretrizes e fundamentos da atenção básica, de ampliar a resolutividade e impacto na situação de saúde das pessoas e coletividades, além de propiciar uma importante relação custo-efetividade (BRASIL, 2021).

Um ponto importante é o estabelecimento de uma equipe multiprofissional, denominada equipe de Saúde da Família (eSF), composta por, no mínimo: i) médico generalista, ou especialista em Saúde da Família, ou médico de Família e Comunidade; ii) enfermeiro generalista ou especialista em Saúde da Família; iii) auxiliar ou técnico de enfermagem; e iv) agentes comunitários de saúde. Podem ser acrescentados a essa composição os profissionais de saúde bucal: cirurgião-dentista generalista ou especialista em Saúde da Família, auxiliar e/ou técnico em saúde bucal (BRASIL, 2021).

Podemos observar que a legislação referente à saúde das crianças e das famílias tem caminhado em direção a um atendimento integral. Muito já se conquistou em relação ao SUS e ao atendimento em geral. Uma prova disso tem sido o enfrentamento da pandemia de COVID-19. Entretanto, os recursos destinados à saúde nem sempre são suficientes, e a gestão pública de recursos e projetos, muitas vezes, não são eficientes no atendimento da demanda.

 

Marco legal da primeira infância: um avanço no Brasil

Apesar de em várias ocasiões os recursos serem limitados, em especial na área da saúde, em termos de legislação e com relação aos mil dias, o Brasil fez importantes avanços. O país tem uma lei específica que estabelece diretrizes para políticas públicas e garantias de direitos das crianças até seis anos, o denominado marco legal da primeira infância (MLPI), lei no 13.257, promulgada em 8 de março de 2016, que estabelece regras e princípios para proteção integral qualificada de crianças no período que abrange os seis anos completos (BRASIL, 2016).

Uma pergunta que muitas vezes se coloca é: por que deve existir um marco legal da primeira infância? O MLPI vem enfatizar para o Brasil, e para a sociedade em geral, a importância de colocar a primeira infância como política de Estado e ser parte da agenda do poder público, dos governos executivos dos diferentes entes federados. Trata-se de uma lei que pavimenta o caminho entre o que a ciência tem produzido sobre as crianças, do nascimento aos seis anos, e o que deve determinar a formulação e implementação de políticas públicas para a primeira infância.

Algumas linhas que a lei vem reforçar incluem o direito da criança de brincar, de ser cuidada por profissionais qualificados na primeira infância, de ser prioridade nas políticas públicas; o direito a ter a mãe, pai e/ou cuidador em casa nos primeiros meses, com uma licença-maternidade e paternidade justas; o direito a receber cuidados médicos consistentes, especialmente aquelas que estão em condições de vulnerabilidade. Algumas das propostas aprovadas pela lei do MLPI incluem: i) garantirás crianças o direito de brincar; ii) priorizar a qualificação dos profissionais sobre as especificidades da primeira infância; iii) reforçar a importância do atendimento domiciliar, especialmente em condições de vulnerabilidade; iv) ampliar a licença-paternidade para 20 dias nas empresas que aderirem ao programa Empresa Cidadã; v) envolver as crianças de até seis anos na formatação de políticas públicas; vi) instituir direitos e responsabilidades iguais entre mães, pais e responsáveis; vii) prever atenção especial e proteção a mães que optam por entregar seus filhos à adoção e gestantes em privação de liberdade.

O MLPI tem uma proposta de execução intersetorial que significa uma articulação entre saúde, assistência social, educação, entre outras áreas. Um desafio para as políticas públicas já que a lei propõe a elaboração de planos para a primeira infância nos níveis federal, estaduais e municipais. Planos decenais a serem aprovados pelos poderes legislativos de cada ente da federação.

 

Desafios à implantação e ao aprimoramento de ações voltadas para os primeiros mil dias

Faz-se necessário enfatizar que a importância dos mil dias em relação à área da saúde, como apresentada anteriormente, tem suas ações e intervenções voltadas para diversas outras áreas, sendo assim interdisciplinar e intersetorial. Um exemplo, nesse sentido, ocorre na área da educação, objeto deste artigo. Essa compreensão da importância interdisciplinar e intersetorial do tema não é necessariamente assimilada pelos setores e indivíduos responsáveis por ações nessas áreas.

Nesse sentido, o primeiro obstáculo se dá no conhecimento da importância desse período, da necessidade de ações específicas voltadas para essa fase da vida e de seu caráter multidisciplinar e intersetorial, tanto no nível individual, por exemplo, através dos pais, cuidadores e professores, como no nível coletivo, através de entidades e organizações da sociedade civil. Nesse nível estão incluídas instituições formais do executivo, como o Ministério da Saúde, secretarias de saúde, além do terceiro setor. Entretanto, além do executivo, também é importante o envolvimento do legislativo e do judiciário.

O marco legal, comentado anteriormente, foi um avanço na área do legislativo. Porém, o esperado é que os municípios possam elaborar planos de ações para serem implementados nos seus territórios com ações bem definidas, incluindo ações na área da saúde, da assistência e da educação para esse período da vida. Além disso, resta também o desafio fundamental que é a sensibilização da sociedade civil para essa temática. Deve-se considerar que, embora os mil dias sejam prioritários para a vida futura do ser humano, outras doenças e afecções continuam a existir concomitantemente, gerando, assim, uma situação de conflito de prioridades. Isso ocorre em especial quando há poucos recursos a serem alocados para as diversas áreas, em especial para a educação e para a saúde. Portanto, um grande desafio é a integração das áreas da saúde e da educação na implementação de políticas com foco nos mil primeiros dias.

 

Mil dias da criança e a educação

Um poema de Loris Malaguzzi (1999), educador italiano bastante lido e citado no meio educacional, intitulado As cem linguagens da criança, serve de referência para fazermos uma analogia com os mil dias das crianças e suas mil possibilidades de abertura para o mundo e constituição de si. O poema diz que a criança é feita de cem: cem linguagens, cem mãos, cem modos de pensar, de escutar, de descobrir, de brincar, mas a educação e a cultura roubam-lhe 99. A crítica de Malaguzzi (1999) vai justamente na direção de construir uma educação capaz de devolver às crianças suas amplas possibilidades de se expressar, interagir, participar. Nossa aposta nos mil dias das crianças vai na direção das mil oportunidades a serem disponibilizadas a elas para que possam fazer uso das cem linguagens. Entretanto, tendo em vista as profundas desigualdades da sociedade brasileira, essa aposta só se viabiliza com forte investimento em políticas públicas, especialmente as que envolvem gestantes, famílias e crianças.

No que concerne à educação, cabe destacar que a Constituição Federal Brasileira, de 1988, considera a educação um direito de todos e dever do estado e da família a ser efetivado mediante a garantia de Educação Infantil, em creche e pré-escola, às crianças de até cinco anos de idade (BRASIL, 1988). A Educação Infantil é a primeira etapa da Educação Básica e se organiza em creche para crianças de zero a três anos e pré-escola para as de quatro e cinco anos. A Educação Básica obrigatória e gratuita vai dos quatro aos 16 anos de idade. No entanto, para a faixa etária da creche, é direito da criança e dever do Estado atender à demanda por esse serviço. Para isso, o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024 prevê a realização, em regime de colaboração, de levantamento periódico da demanda por creche para a população de até três anos como forma de planejar a oferta e verificar o atendimento da demanda manifesta. Embora esses estudos nem sempre se efetivem, a demanda manifesta nos períodos de matrícula, em diversos municípios, evidencia que o direito à creche ainda não está garantido a todas as crianças, e isso tem consequências para crianças e suas famílias.

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2016 a 2019, a parcela de crianças matriculadas em creches saltou de 30,4% para 35,6%. Apesar dessa ampliação da oferta de vagas na creche, nos próximos anos, muito ainda terá de ser feito para se chegar à meta do PN E de atendimento de 50% das crianças de zero a três anos até o final de 2024. Por sua vez, desmembrando essa média de 35,6% de cobertura de atendimento às regiões brasileiras, observamos uma grande desigualdade regional: Norte - 17,6%; Nordeste - 31,3%; Centro-Oeste - 28,2%; Sudeste - 42,4%; Sul - 43,3%. Desigualdades de acesso que não só se expressam regionalmente, como também em relação à população urbana e rural e às crianças de diferentes estrados sociais.

Em que pese a importância dessa expansão, faz-se necessária a sua continuidade de forma mais igualitária e com qualidade socialmente referenciada. Como aponta Campos (2013, 2020), é o atendimento com qualidade que faz a diferença ao longo da vida das crianças. Embora o conceito de qualidade seja complexo, pois inclui questões contex-tuais e de julgamento de valor, há alguns consensos construídos, como apontados pelo campo da saúde e do MLPI, tais como: formação de professores, planejamento pedagógico, infraestrutura, contexto relacional , entre outros.

Por sua vez, o Ministério da Educação (MEC) também tem produzido documentos que discutem a qualidade na Educação Infantil, dentre eles, destacamos o documento “Indicadores de Qualidade na Educação Infantil“, uma proposta de autoavaliação institucional que apresenta sete dimensões que ajudam a delimitar o tema no campo educacional, quais sejam: i) planejamento institucional - indica que há intencionalidade no que se propõe às crianças; ii) multiplicidade de experiências e linguagens - aponta a importância de ampliação das experiências e expressões das crianças na primeira infância; iii) interações - são entendidas como pontos-chave das propostas pedagógicas, eixo do trabalho com as crianças; iv) promoção da saúde - a Educação Infantil é considerada um lugar de atenção e de cuidados básicos às crianças, que inclui o bem-estar geral delas, alimentação, sono, higiene, entre outros aspectos, e a não separação entre educar e cuidar; v) espaços, materiais e mobiliário - traz a importância da adequação dos ambientes, do que e como se disponibiliza às crianças para um convívio coletivo e vivência de experiências significativas; vi) formação e condições do trabalho dos(as) professores(as) e demais profissionais - aponta a importância de pessoas qualificadas para o atendimento educacional, a presença de professores(as) que pensem uma pedagogia própria para a primeira infância, a valorização desses(as) profissionais e de suas carreiras docentes; vii) cooperação e troca com as famílias - destaca a manutenção e ampliação do diálogo com as famílias como parte da proposta pedagógica de cada instituição (BRASIL, 2009).

Essas sete dimensões da proposta do MEC de autoavaliação institucional impõem a intensificação de investimentos em infraestrutura e na formação de professores e gestores para desenvolverem o trabalho educativo junto às crianças e suas famílias. Investimentos que cabem aos diferentes entes da federação - União, estados e municípios - no exercício do regime de colaboração, e não apenas a cada um dos 5.568 municípios, que têm se mostrado nas estatísticas do IBGE como os elos mais frágeis da federação. Políticas públicas para a infância que façam valer o regime de proteção integral das crianças e jovens postulado pelo Estatuto da Infância e daAdolescência (EGA) (BRASIL, 1990).

Cabe ressaltar que foi a partir da Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, que a Educação Infantil passou a ser a primeira etapa da Educação Básica e que a docência na creche se tornou um tema para estudos e pesquisas do campo educacional (BRASIL, 1996). A inserção do atendimento às crianças de zero a três anos em instituições educativas passou a demandar estudos e discussões sobre as peculiaridades da proposta educacional para e com bebês e crianças pequenas no espaço público, coletivo e democrático da escola. Proposta que, sendo intencional, exige teorização. Por sua vez, a não desassociação entre cuidados e educação para a primeira infância evidencia a necessidade de diálogo entre educação e diferentes áreas do conhecimento. Portanto, a produção de conhecimentos do campo educacional para a especificidade do trabalho pedagógico com bebês é interdisciplinar e plural, é sustentada no diálogo, na atenção e na escuta das crianças e de suas famílias e tem como princípio ético-político a valorização da diversidade, a promoção da inclusão de todos(as) e a diminuição das desigualdades educacionais, que têm se imposto às crianças brasileiras desde a entrada delas nas creches.

 

O que podem as crianças nos seus primeiros mil dias?

Na busca de pensar os mil dias das crianças, focalizaremos a seguir pontos que se articulam e que dizem também respeito à educação das crianças pequenas e que intentam responder a indagação: o que podem as crianças nos seus primeiros mil dias e o que esses dias podem em relação ao desenvolvimento integral delas?

Até mesmo antes do nascimento, o bebê é nomeado, referenciado, faz parte de enunciações, interlocuções e desejos. Pino (2005), que tem como base a teoria histórico-cultural de Vigotski5, afirma que o bebê nasce com um repertório biológico complexo, com um alto grau de organização perceptiva e expressiva, com uma capacidade de reconhecer e responder ao outro, o que o possibilita estabelecer e maximizar um intercâmbio com o outro social. Assevera, ainda, que a aparente condição de inferioridade de prematuridade do bebê humano em termos biológicos constitui um enorme ganho e meio de desenvolvimento, pois possibilita que ele possa ser educado e beneficiar-se da experiência cultural (PINO, 2005). E a experiência cultural chega junto dos cuidados básicos de alimentação, saúde e higiene, do seio da mãe, do colo, dos versos, das canções de ninar, das narrativas e histórias. Para López (2016, p. 15):

Poderiamos dizer que, no princípio, todos nós somos retalhos. Ao nascermos, somos feitos de retalhos: as sensações corporais, as primeiras tentativas de ligar os fatos percebidos a um significado, a voz a um rosto, as representações dos pais sobre o filho que chegou... Toda essa roupagem ainda desmembrada é um conjunto de retalhos que, para ser devidamente costurado, exigirá a construção de uma manta protetora de linguagem, feita de palavras. Retalhos de sentido, retalhos de experiência e uma envoltura narrativa que é gestada na situação dialógica e comunicativa que os acompanhantes da criança começam a tecer. Somos um diálogo. Desde quando somos um diálogo?

Esses retalhos de sentido vão sendo costurados aos poucos e, nesses mil dias iniciais da vida, em cada dia, mil retalhos vão sendo costurados nos diálogos. Assim é que a cultura transforma o dado natural (PINO, 2005), pois a cultura entendida como ação do homem na natureza torna-se também parte do próprio homem num processo de dupla transformação: ao transformar a natureza para criar seu próprio meio, transforma-se. O homem cria aquilo que o constitui, criando a própria condição humana. Condição tecida nas relações, mediada por palavras, gestos e entonações que vêm do outro, que apresenta o mundo à criança e amplia a própria condição dela no mundo.

Como afirma Bakhtin (2006, p. 46), “dos lábios da mãe e de pessoas íntimas a criança recebe todas as definições iniciais de si mesma. Dos lábios delas, nos tons volitivo-emocional de seu amor, a criança ouve e começa a reconhecer o seu nome“. Portanto, o verbal vem acompanhado de acentos apreciativos, de expressões não verbais, de presumidos, de sentimentos, de vida e, dessa forma, a criança toma consciência dela mesma através dos outros, de quem recebe a palavra, a forma e o tom que servirão à formação original da representação de si. O mergulho na linguagem é uma forma de conhecer a si e ao outro, fundamental no início e ao longo da vida. E a experiência cultural da criança se alarga à medida que ela amplia suas interlocuções com o outro e vai desenvolvendo sua percepção semântica do mundo, fato que o convívio social no espaço público da creche tem muito a contribuir. Como Paulo Freire (1997) poeticamente nos elucida, a realidade é sígnica e se dá a ler as crianças desde muito cedo:

A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço [...] o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele mundo especial se dava a mim como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo das minhas primeiras leituras. Os “textos“, as “palavras“ as “letras“ daquele contexto - em cuja percepção me experimentava e, quanto mais o fazia, mais aumentava a capacidade de perceber - se encarnavam numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia aprendendo no meu trato com eles nas minhas relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais (FREIRE, 1993, p. 12).

Assim, retalho por retalho, os sentidos - ver, ouvir, cheirar, tocar, provar - vão ganhando significado, tecido e entretecido nas interlocuções dialógicas.

Para López (2016), as primeiras palavras que os adultos oferecem às crianças já são palavras lúdicas pela entonação, perguntas retóricas, ritmo e vocabulário, diminutivos, repetição de sílabas, que é muito próximo do balbucio do bebê. Por sua vez, comenta a autora, quando o bebê balbucia, podemos deixá-lo na exploração fonética e podemos também acompanhar sua brincadeira, responder imitando seus sons, num jogo de atenção conjunta, um convite para a procura e para o encontro. Jogo que o poema e as canções podem participar.

Outros retalhos desses inícios são as cantigas de ninar presentes nas mais diversas culturas, do oriente ao ocidente, aos povos originários indígenas e africanos do sul. López (2016) considera as cantigas de ninar como banho sonoro, uma mistura de afetividade e entonação poética. Já para Matos (2017, p. 14), o cuidado relativo às canções de embalar se constitui como uma iniciação à vida ética. “[...] um ato dirigido à criança, uma forma máxima de atenção que performa emoções e a auxiliam a se representar inscrita no tempo do mundo circundante a se situar no vasto mundo que virá“.

O mundo circundante, o primeiro mundo, vai ganhando vastidão com as conversas, canções, narrativas orais, memórias, fotografias, filmes, passeios, objetos, brincadeiras, histórias, livros. Retalho por retalho dessas envolturas narrativas vão tecendo as experiências das crianças.

O intenso processo de crescimento do bebê nos primeiros dois anos não se apresenta apenas fisicamente, mas na articulação entre o biológico, o afetivo e o cognitivo, como Paulo Freire (1997, p. 12) narra: naquele primeiro mundo “engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei“. A sequência de ações citadas coloca a fala como o ápice de um processo que, sem dúvida, nos mil dias é uma das grandes conquistas.

Em relação à fala, os estudos de Vigotski (1991) apontam que haveria uma fase pré-linguística do pensamento, uma inteligência prática baseada no uso de instrumentos, que nos seus estudos observou também nos chipanzés, e uma fase pré-intelectual da linguagem, que são balbucios, gestos de alívio emocional, entre outros. Em algum ponto, essas duas linhas convergem e, a partir dessa convergência, o pensamento torna-se verbal e a linguagem racional. Num processo exclusivamente humano, o biológico e o cultural se fundem. O biológico do homem transforma-se em sócio-histórico:

O momento de maior significado no curso de desenvolvimento intelectual, que dá origem às formas puramente humanas de inteligência prática, acontece quando a fala e a atividade prática, então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento, convergem (VIGOTSKI, 1991, p. 27).

Dos gestos de apontar à fala, as crianças vão significando o mundo e atribuindo sentido às suas vivências. A fala egocêntrica infantil que se manifesta como parte de seu esforço ativo, de suas ações com os objetos, aos poucos, de uma simples descrição ou análise da situação, vai ganhando um caráter de planejamento da ação. Além de ser um meio de expressão e liberação de tensão, torna-se um instrumento do pensamento.

É ainda Vigotski (2008) que discute a importância da brincadeira na primeira infância. Para o autor, a brincadeira não é uma mera atividade lúdica ou de entretenimento, mas uma atividade-guia, no sentido de guiar o seu desenvolvimento. No recém-nascido, a atividade-guia é a relação ativa com os adultos e com aqueles que estão ao seu redor. São os adultos que apresentam o mundo às crianças e que possibilitam que elas produzam significados e sentidos. Mas quando as crianças conseguem ter uma certa independência para se deslocar e manipular objetos, a força impulsionadora provém dos objetos. Daí a importância de ter um espaço propício à exploração das crianças e objetos diversos para serem explorados. As brincadeiras também vão sendo acompanhadas de gestos, e estes mudam a ordem das coisas. Pelo gesto, as crianças transformam os objetos, indicando novos significados atribuídos. Por exemplo, um pedaço de madeira embalado nos braços torna-se um “bebê“. Nesse processo intenso de simbolização que vai se dando ao longo dos mil dias, as crianças se iniciam na brincadeira de faz-de-conta, na qual os objetos começam a exercer um papel secundário, pois são transformados por suas ações. Nessa direção, Vigotski (2008, p. 24) aponta que é “na brincadeira a criança aprende a agir em função do que tem em mente e não do que vê“. A brincadeira de faz-de-conta é um campo de liberdade das crianças, que podem ser o que imaginarem. Mas, essa liberdade, segundo o autor, é ilusória, já que é regida por regras sociais. A ação numa situação imaginária “leva a criança a aprender a agir não apenas com base na sua percepção direta do objeto ou na situação que atua diretamente sobre ela, mas com base no significado dessa situação“ (VIGOTSKI, 2008, p. 30). Isso leva a consequências importantes para as crianças: emancipam-se das amarras situacionais.

Voltamos então às cem linguagens e as mil oportunidades. Entendemos que a ação docente na creche se coloca diante da complexa relação na qual aquilo que é da ordem da natureza e da ordem da cultura se fundem e se desdobram em ganhos culturais que se estabelecem no humano e passam a constituí-lo. Acompanhar esse processo e alargar as ações e simbolizações das crianças são importantes práticas educativas na creche as quais exigem dos educadores atenção e inteireza nas relações. Exigem, ainda, pensar em uma pedagogia das relações guiada pela observação, pela escuta e negociação de sentido junto às crianças. A especificidade educacional está, assim, muito ligada à qualidade dos relacionamentos e à confirmação do lugar da criança como sujeito. Uma pedagogia que se funda na participação das crianças e nas relações interpessoais, uma proposta educacional pautada nos pressupostos dialógicos de Paulo Freire (1982, 1996), que, para a creche, ganha novas camadas, conforme apontam Arenari e Corsino (2020, p. 500) ao analisaram pesquisas sobre docência na creche:

[...] a perspectiva relacional na creche se daria de forma sofisticada e sutil de uma docência partilhada não linear sustentada em relações que: i) têm demandas corporais nas quais o cuidado se configura como ética; ii) são atravessadas pelas condições materiais e possibilidades de significação na composição espaço-temporal onde elas acontecem; iii) as ações do outro modificam constantemente as próprias ações numa mútua afetação entre sujeitos; iv) desencadeiam ações que são simultânea e concomitantemente vividas pelos diferentes atores que compõem o contexto educativo; v) provocam respostas constantes às demandas individuais e coletivas, respostas responsáveis, fruto de uma atenção cuidadosa; vi) se desdobram em caminhos dialógicos que compõem elos de coletividade; vii) possam se constituir enquanto experiência, ou seja, relações que alteram o sujeito, ampliam suas referências, seu conhecimento de si, do outro e do mundo; viii) têm os vínculos entre crianças e adultos como elos importantes destas relações.

Entendemos que a construção de uma prática pedagógica ancorada nessa ideia de simplicidade e sofisticações sutis exige um trabalho reflexivo, com observação atenta e cuidadosa das crianças, registros do observado e das práticas vividas e partilha entre professores(as). Tudo isso interpela não apenas as práticas, mas também as políticas, já que são necessárias condições de produção dessa práxis, o que inclui, como já apontamos, investimentos diversos em infraestrutura e na formação inicial e continuada de professores(as) como pontos-chave.

 

A título de considerações finais

Nosso objetivo neste texto foi tentar enfrentar o desafio de articulação entre campos científico diferentes, mas que apresentam convergências para se pensar as crianças na sua integralidade física, emocional, afetiva, cognitiva, social. Trouxemos como ponto de encontro pensar os primeiros mil dias das crianças - da concepção aos dois anos de idade - e toda potência do bebê nesse período de desenvolvimento intenso, cujas pesquisas têm evidenciado uma forte inter-relação entre a dimensão biológica do desenvolvimento e as dimensões relacional, afetiva, cultural. A fragilidade e prematuridade do bebê humano ao nascer é justamente o que lhe impõe uma potência relacional que mobiliza o outro numa afetação mútua. E as respostas dos bebês às ações dos adultos são de corpo inteiro. Assim é que a importância do aleitamento materno, por exemplo, vai para além da nutrição do alimento em si, pois o bebê também se nutre pelos toques, narrativas, canções, calor e afeto. O acompanhamento desses mil dias exige de quem cuida e educa as crianças atenção, observação, escuta e resposta responsável, num processo dialógico que se dá desde a vida intrauterina. Nossa proposta foi pensar os mil dias para além do tempo cronológico, como mil aberturas e possibilidades de as crianças se colocarem no mundo. Pesquisas e estudos de diferentes áreas têm evidenciado a potência humana desde o nascimento. Há muitas conquistas na legislação brasileira no campo da infância: da Constituição Federal, passando pela da saúde, educação, assistência e chegando ao ECA e ao MLPI. Entretanto, a existência legal por si mesma não é suficiente para diminuir as desigualdades que atingem diretamente as crianças desde a gestação. E a população infantil brasileira, especialmente a da primeira infância, está concentrada nos estratos de população de baixa renda e/ou de famílias vulneráveis. Fazer cumprir as leis é uma questão de justiça social, de políticas públicas capazes de executá-las e acompanhá-las na execução. Neste momento de crise política, sanitária e social, conquistas estão o tempo todo em risco. Assim, finalizamos com proposições para políticas e práticas na perspectiva de nenhum direito a menos:

1. Políticas públicas voltadas para a primeira infância, com ênfase nos primeiros mil dias, são essenciais para o pleno desenvolvimento de indivíduos, para o aprimoramento das sociedades e diminuição de desigualdades;

2. Essas políticas devem integrar várias áreas do conhecimento, sendo essencial a integração entre a área da saúde e da educação no caso da primeira infância e nos mil primeiros dias;

3. O Brasil tem uma lei específica vigente voltada para a primeira infância, o MLPI, que define e preconiza o direcionamento dessas políticas. É preciso que cada ente federado elabore, democraticamente, o seu plano para a primeira infância, vote o plano em suas assembléias legislativas, preveja recursos orçamentários e execute o que foi definido, porque a infância não espera e os mil dias passam muito rapidamente;

4. A Educação Infantil é um direito que tem sido negado para grande parte das crianças de zero a três anos. É preciso ampliar a oferta de creches públicas, gratuitas, laicas e de qualidade socialmente referenciada;

5. A política de distribuição de “voucher“ para creche, como tem que sido proposta pelo atual governo, é uma forma de desresponsabilizar o poder público de seu compromisso pela educação das crianças pequenas, privatizar as verbas públicas e agudizar as desigualdades no acesso a um serviço de qualidade. Portanto, é preciso repudiar essa política, pois as pesquisas evidenciam que é a qualidade do que é proposto às crianças que faz a diferença vida afora.

 

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Data de recebimento: 31/08/2021
Data de aprovação: 17/11/2021

 

 

1 Cf. World Health Organization (2013); Thousand Days (2015).
2 Cf. Elmadfa e Meyer (2012).
3 Cf. Woo Baldai et al. (2016).
4 Cf. Primeiros 1000 dias (2021a); Cunha, Leite e Almeida (2015).
5 No corpo do texto o nome do autor seguirá com Vigotski, sendo nas referências de acordo como citado.

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