A revista Ide escolheu alguns de nossos pensadores para esta entrevista. Nas perguntas sobre “Legado”, cada entrevistador, em seu tom, atualiza os conceitos e, nesse encontro, surge a criatividade. Perguntas e respostas desta curta entrevista lapidam este número da Ide.
O tema Legado (legatos, do latim) significa: o que é transmitido às gerações que se seguem. A revista Ide é exemplo de algo legado. Esse tema é objeto de interesse da psicanálise desde quando Freud citou Goethe: “aquilo que lhe foi legado, conquiste-o”.
É o que recebemos e de que devemos cuidar devidamente.
Quando procuramos Junqueira, ele nos contou que preparava um seminário intitulado “Bion, modo de usá-lo…”
Esta entrevista está em consonância com nossa linha editorial sobre a Odisseia, lembrando que há 300 anos Alexander Pope traduziu a Ilíada e a Odisseia, do grego para o inglês, o que permitiu trazer para o moderno um legado grego. Junqueira também se dedicou a trazer suas ideias para alunos e colegas.
Marisa Pelella Mélega - Junqueira, como você concebe a criatividade de Bion? Seria científica? A obra Uma memória do futuro é resultado da criatividade artística de Bion?
J - Querida Marisa. Talvez o mais difícil, diante de perguntas carinhosas, seja resistir a não responder a elas, já que embalados pelo sopro da curiosidade autêntica. Mas, neste ponto, o lamento de Blanchot nos visita e nos desperta para o fato de que o segredo das perguntas está escondido em seu caráter rizomático, em seu potencial de desdobrar-se em novas perguntas…
Que tal nos indagar se a criatividade de Bion não nasceu de sua humanidade? Ao fazê-lo, lembrei-me instantaneamente de algumas reflexões que ele ia produzindo em cartas dirigidas a seus filhos:
Eu sei que a vida pode ser muito dura e pode sufocar o crescimento, mas eu sempre senti que vocês precisam experimentar e aprender por si mesmos. A felicidade do presente é, muito, fruto da labuta já vivida, mas a felicidade futura depende da labuta de hoje. Não há virtude na labuta, mas, se vocês puderem encará-la com equanimidade, caso precisem dela, ela se mostrará um esteio inestimável, e nenhuma habilidade ou sorte poderá substituí-la.
A imaginação é de grande valor. Sem ela vocês não enxergarão o próprio caminho, mas ela não pode se tornar um substituto para a vida real. Podemos nos estropiar pela mera rotina em busca de ganha-pão, ou pelas dores geradas pelo esforço de sobrevivência, que nossos talentos permanecerão escondidos, mas, também, é verdade que podemos nos sufocar com a abundância de facilidades.
Sempre ansiaremos encontrar um sol, um ar, uma chuva, uma nuvem, uma comida “naturais”. Se sua imaginação ajudá-la a encontrá-los, sorte sua. Mas será uma desgraça se a crença numa vida “extra-ordinária” se transformar numa muralha entre você e esses anseios.
A depressão e o fracasso são parte da vida quotidiana, mesmo da mais feliz e bem-sucedida - eu diria até especialmente da mais feliz e bem-sucedida. É o preço que se paga pela alegria e pelo sucesso, se eles atravessarem seu caminho. Mas o preço a pagar se tentarmos nos evadir do fracasso e da depressão é dez vezes pior. Para início de conversa, a felicidade e o sucesso são coisas muito boas - em si mesmas -, mas a coisa muda se você busca ser “feliz” e “bem-sucedido” por medo do fracasso e da depressão. Isto estraga o sucesso, porque você sente que ele está escondendo alguma coisa, e então o fracasso e a depressão se transformam em bichos-papões, e você já não acredita que são coisas que o homem comum enfrenta naturalmente todos os dias.
Gostaria que vocês julgassem e tomassem decisões por conta própria, mas não façam isto querendo acertar. Para mim é fácil escrever tudo isto, mas eu não conheço ninguém que consiga fazê-lo com facilidade (tradução livre).
Quanto a Uma memória do futuro, acho que ela é fruto essencialmente dessas reflexões!
Julio Frochtgarten - O escritor Paul Auster teria dito que “A literatura é essencialmente solidão. Escreve-se em solidão, lê-se em solidão e, apesar de tudo, o ato de leitura permite uma comunicação entre dois seres humanos”. Junqueira, além de ter escrito bastante até hoje, desde sempre você também foi um leitor dedicado, para muito além dos textos psicanalíticos. Literatura, desde os clássicos aos contemporâneos, e ensaios sobre as artes plásticas, talvez sejam as áreas em que o seu interesse mais se espraiou. Como você acha que esta experiência pessoal e solitária afetou o seu modo de exercer psicanálise, uma atividade essencialmente exercida em parcerias?
J - Julio, meu caro parceiro de tantos projetos e aventuras. Não por acaso, você encerrou sua pergunta com a palavra “parcerias”, assunto ao qual tenho me dedicado com entusiasmo, seja como profissional, seja como ser humano: por isso, alegra-me poder me dirigir a você como parceiro nesta nova empreitada que nos está sendo gentilmente oferecida pela Ide.
Eu não tomaria as ponderações de Paul Auster por seu valor de face, já que, no fundo, trata-se, a meu ver, de uma descrição fenomenológica da própria profissão. Sinto-me à vontade para encarar o assunto pelo ângulo não do escritor, que não sou, mas sim de uma pessoa que, eventualmente, utiliza a escrita como mais um instrumento para compartilhar com o maior número de pessoas aquilo que a vida, a profissão e as amizades vão nos ensinando.
No entanto, surpreendentemente, há uma enorme concordância entre a sua surpresa de que “apesar de tudo, o ato de leitura permite uma comunicação entre dois seres humanos” e a afirmação de Bion de que o encontro psicanalítico é tão essencialmente solitário, que ele considerou a solidão como um de seus elementos de psicanálise.
Além do mais, a escrita e a imagem entraram em minha vida sem bater na porta, afinal, meu avô Antão de Moraes, um grande jurisconsulto, deixou abertas para mim as portas da sua imensa biblioteca, a qual, além da variedade dos livros de direito, abrigava uma oferta generosa de literatura, filosofia, sociologia, história e arte. Confesso que eu pouco li daquele banquete, seja por me encantar com a riqueza de conhecimentos, com a elegância das encadernações, ou pelo pouco domínio das línguas estrangeiras. Mas o vírus estava inoculado…
Gradualmente, ele foi exercendo seu efeito e me municiando com um sólido acervo de imagens mitológicas, artísticas e científicas, além de um conjunto de construções literárias e filosóficas, que sempre foram de grande utilidade na elaboração de modelos essenciais para a produção daquilo que Bion chamou de language of achievement, na comunicação psicanalítica.
Portanto, acho que a “experiência pessoal e solitária” foi um facho de luz que me trouxe espontaneamente àquela atmosfera que Bion recomendou ser essencial ao exercício da psicanálise:
Não importa como a cooperação, boa ou ruim, aconteça, o analista não deveria perder, ou privar dela seu paciente, aquele senso de isolamento a que pertence a percepção de que as circunstâncias que desembocaram na análise e as consequências que possam surgir no futuro são uma responsabilidade que não pode ser compartilhada com ninguém. … O senso de solidão parece estar relacionado a um sentimento, no objeto investigado, de estar sendo abandonado e, no sujeito investigador, de que ele está se extirpando da fonte ou base da qual depende para existir. (1963, pp. 15-16, tradução livre)
Maria Olympia de Azevedo Ferreira França - O grande legado de Freud: “A verdade antes de tudo”. Os “doutores da lei”, aqueles que atacavam as ideias de Freud, fizeram-lhe a seguinte pergunta: para que serve a psicanálise? Acreditando que o levariam a se justificar ou se prolongar em grandes explicações. Freud simplesmente respondeu: para ser mais feliz. O que seria o feliz para cada paciente? Aceitar suas limitações e usufruir de seus potenciais? Nem sempre, pois alguns podem desejar apenas o Ter. Qual é a atitude ética do analista junto a esses pacientes, insistir no conhecimento profundo de si mesmos ou se perceber incapaz para analisá-los?
J - Cara Maria Olympia. Somos parte de uma geração de psicanalistas que já está encerrando a sua missão de honrar o legado de Freud: você nos lembra a importância que ele atribuía à Verdade. Mas à qual verdade ele estaria se referindo? Há uma verdade na história de Freud que talvez tenha sido fundamental: ele não tinha legado onde se apoiar, afinal, ele foi o primeiro “psicanalista órfão”, condição que lhe custou a provação de ser sujeito-objeto, ficando entregue às limitações de uma autoanálise.
Nesse caso, é preciso perguntar: esse sacrifício seminal teria criado as balizas essenciais para um método investigativo do psiquismo humano, ou não passou de um desejo visionário e prematuro? Aqui, onde está a verdade? A análise pessoal do analista precisa privilegiar a sua verdade como pré-requisito essencial para desvelar a verdade do analisando?
Recentemente, na jornada que realizamos sobre a “cientificidade da psicanálise”, eu sugeri que a força motriz da psicanálise seria ajudar o analisando a reconhecer a riqueza do aprendizado que o sofrimento pode nos oferecer. E, se formos indagados de qual a ferramenta que ela usa para esta ingente missão, diremos que o sofrimento psíquico, ao contrário do físico, tem a capacidade (ou seria a oportunidade?) de se “transferir” de uma personalidade a outra, desde que se esteja participando de um encontro íntimo. Esta seria a ferramenta básica: alguém se comunica conosco expressando seus sentimentos ou suas paixões, e nós acolhemos a comunicação para tentar digeri-la, e devolvê-la ao seu legítimo dono.
Agora, se uma pessoa deixar claro, como já aconteceu com um analisando meu, que o que a deixava feliz era todo dia contar o seu dinheiro, quando ela me comunicou que ia parar a análise porque já tinha “enchido o saco”, eu não titubeei em considerar sua decisão como um direito legítimo.
Carmen Mion - Caro Professor Junqueira, além de psicanalista clínico de grande experiência, formador de inúmeros analistas da SBPSP, você tem sido um pensador autoral da teoria psicanalítica, sem jamais perder de vista a prática clínica, a relação analista/analisando, suas simetrias e assimetrias. Seus textos nos oferecem uma leitura e apreensão criativas e originais das teorias de Bion, em que destaco as ricas “interlocuções” psicanalíticas com autores clássicos e essenciais da poesia e literatura universais. Creio que em seus últimos trabalhos você vem explorando a complexa interseção/relação entre emoção, linguagem e pensamento, estabelecendo um diálogo profundo com as últimas contribuições de Bion.
1. Você poderia desenvolver aqui sua compreensão sobre os elementos e/ou condições psíquicas envolvidos nessa “impossível tarefa” do analista praticante em busca de uma linguagem de êxito, em direção às transformações em “K” e transformações em “O”, frente ao “extenso funcionamento ‘multimídia’ da psique humana”, uma feliz metáfora utilizada por você recentemente?
2. Considerando as transformações sociais e tecnológicas recentes, quais os desafios e possibilidades para um analista praticante nestes tempos de fundamentalismos de toda sorte, em que as pessoas estão sempre procurando “continentes definitórios rígidos para sobreviver”, outra feliz expressão sua; tempos em que, mais do que falta de percepção da realidade, parece haver um entreter-se com uma realidade paralela, como um desdobramento do real, uma espécie de duplo de si mesmo, em que tal como Narciso debruçado sobre sua imagem refletida no lago, no momento da escolha entre si mesmo e seu duplo, dá-se preferência à imagem, e a vida passa a “acontecer” nas imagens das telas?
J - Prezada Carmen. Confesso que fiquei contente com seus elogios iniciais, mas confesso também que não me senti representado com o título de “professor”, algo que nunca reivindiquei, porque, no fundo, o que me agrada mais é compartilhar com os iniciantes, ou mesmo com colegas mais experientes, algumas descobertas (ou, como você generosamente descreveu, “apreensões criativas”), que me facilitaram a compreensão de conceitos mais complexos.
Tomemos como exemplo a questão da “linguagem de êxito”, que Bion tomou emprestado da “language of achievement”, de Keats. Se pensamos na inigualável expressividade poética de Shakespeare (“a essência humana é uma substância friável”), ou nas profundas reflexões de George Steiner (19292020) sobre a poética do pensamento (“Nenhuma linguagem pode rivalizar com as capacidades da música em relação às simultaneidades polissêmicas, ou na geração de significados múltiplos, quando estamos sob pressão de formas intraduzíveis”), temos de admitir que é na poesia que vamos encontrar o manancial da linguagem de êxito (variação da “le mot juste”, de Flaubert).
Veja que belo exemplo, iniciado quando deparei com esta frase de Wallace Stevens, poeta americano: “A identidade é o ponto de fuga da aparência”. A frase me fascinou por aludir à questão dos vértices ou perspectivas, tão cara a Bion. Porém, psicanaliticamente ela nos traz um problema: a identidade do analisando não é frontal, ela é plurifacetada. Onde, então, encontraríamos recursos para apreendê-la?
Encontrei uma solução criativa numa biografia de Picasso, na qual Braque forneceu a melhor explicação para a necessidade do cubismo: “A perspectiva tradicional não me satisfazia, por ser muito mecânica para nos permitir uma possessão plena das coisas. Ela tem origens num único ponto de vista e nunca se afasta dele: é como se alguém passasse a vida desenhando perfis e acreditasse que as pessoas só têm um olho. Portanto, se o artista quiser ‘se apossar plenamente das coisas’, ele precisa ser capaz de representar um objeto através de uma multiplicidade de pontos de vista ao mesmo tempo”.
Além do mais, Braque e Picasso descobriram a vantagem de fragmentar e facetar as formas, já que isto induzia a luz refratada a produzir um brilho generalizado nas superfícies. Se conseguirmos ser “cubistas emocionais”, estaremos mais aptos a enfrentar o extenso funcionamento multimídia da psique humana.
Como não concordar com Steiner quando diz que “A filosofia ou poesia ‘pós-linguísticas’ ou ‘pós-textuais’ estão ancoradas em gêneros híbridos, como a música, a dança, as artes figurativas e abstratas, além da mímica e de vocalizações. Neste ‘happening coletivo’ o significado pode ser dançado através do engenho do homo ludens”.
Quanto aos desafios do mundo atual, a questão da realidade paralela, ou dos simulacros, como prefere Baudrillard, é algo que afeta diretamente a psicanálise, que, como sabemos, depende de um espaço e de um tempo adequados para reflexão. Susan Sontag assinala que a fotografia é muito mais fértil para o espírito do que o cinema, já que a imagem, por ser estática, obriga o observador a “abraçá-la”, quando se sentir tocado. Quem tratou deste assunto com muita competência foi a antropóloga Paula Sibilia, com sua tese O show do Eu, que virou livro e, parece, já chegou à televisão.
Esperemos que o nãotato com as telas não transforme a psicanálise num trompe l’œil tecnológico.
Agradeço-lhe este estímulo para expor algumas de minhas ideias.
Olgária Matos - O declínio da importância do passado como experiência a ser transmitida como elo entre as gerações, a crise antigenealógica da contemporaneidade, na qual se pretende que cada um não deve nada ao passado e que está “inaugurando o tempo”, não se encontrariam no cerne da crise da sociabilidade e das incivilidades sociais e seus processos de dessocialização, como na brutalização dos costumes, da linguagem, dos vínculos, dado que o tempo contemporâneo não permite mais o longo prazo, aquele da formação e consolidação dos vínculos que nos acompanhavam durante nossa vida inteira?
J - Cara Olgária. Compartilho com você a enorme preocupação que a realidade nos impõe quanto ao futuro da humanidade. Foi este o motivo que me levou recentemente a divulgar em livro o imenso universo de sofrimento que nós humanos podemos causar a nossos semelhantes, culminando, em especial, com o testemunho de Wilfred Owen, um soldado inglês que se voluntariou a mártir na Primeira Guerra Mundial, para poder expressar poeticamente sua indignação com a impiedade e a estupidez das guerras.
O gatilho para escrever esse livro foi, aparentemente, a eclosão da Guerra da Ucrânia, mas logo percebi que algo mais profundo tinha atiçado o meu incômodo: o “estranho encontro”, descrito por Owen em seu poema mais famoso, o encontro no Inferno entre dois soldados inimigos, os quais, transposta a cesura da morte, imediatamente se reconheceram como amigos, a ponto de se despedirem com uma confissão trágico-sublime:
Meu amigo: eu sou o inimigo que você matou Eu te reconheci nesta escuridão; foi esta mesma expressão sombria
Que ontem me trespassou enquanto você me apunhalava e matava.
Essa realidade absurda também me trespassou: quando se homenageia o “soldado desconhecido”, no fundo se está homenageando o “jovem inocente” que não sabe por que está matando e, muito menos, por que está morrendo. Devemos nos render à sentença hobbesiana de que “O homem é o lobo do homem”, ou devemos nos insurgir contra essa conclusão apressada e reconhecer que o homem se envenena com a sua possessividade?
Você focaliza o apagamento da memória e a “partenogênese do tempo” como fatores desestruturantes das virtudes humanitárias. Ao escrever sua trilogia Uma memória do futuro, Wilfred Bion se elege como testemunha de que a estruturação de um Self ocorre através de um processo no qual as lembranças do passado e a projeção das sombras do futuro se conjugam no presente atraídas por forças que evocam as “formas apresentativas” de Suzanne Langer: se esses padrinhos essenciais não comparecerem, não há casamento entre passado e futuro.
Essa equação, aliás, está sempre assombrada pelo fantasma da finitude humana, presente em todos os setores de nossas vidas. Lembremos, como exemplo, que até alguns marxistas preconizam um retorno a um passado pré-capitalista como prelúdio a um futuro utópico.
Quanto à partenogênese do tempo, creio ter ocorrido por termos nos rendido à imensa sedução resultante da transformação mirabolante sofrida pela comunicação analógica ao ser destronada pela comunicação digital. Que psiquismo não se entregaria à megalomania, ao notar que aquele homem que algumas décadas atrás só dispunha do Speakers’ Corner, no Hyde Park, para deblaterar diante de duas dúzias de desocupados, agora, sem sair de casa, tem a ilusão de se comunicar instantaneamente com o mundo todo?
Essa abolição da reflexão de longo prazo que você menciona cada vez mais se revela catastrófica, na medida em que o aparente excesso de facilidade acaba terceirizando a originalidade e dissolvendo a responsabilidade numa geleia geral. Fala-se muito na busca desenfreada do “prazer instantâneo”, mas será que antes disso não seríamos vítimas da voracidade pela “posse instantânea”? E será que a madrinha dessa voracidade não é a vaidade volúvel?
Fiquei tão perplexo quando descobri que em 1752 o luso-brasileiro Matias Aires Ramos da Silva de Eça escreveu o surpreendente Reflexões sobre a vaidade dos homens, que acabei escrevendo um livro para divulgá-lo entre nós. As reflexões desse nosso filósofo moralista poderiam ser proféticas, se os desarranjos da contemporaneidade não fossem meras consequências das milenares ambições e vaidades humanas.
A ambição dos homens, por uma parte, e a vaidade, pela outra, têm feito da terra um espetáculo de sangue. A mesma terra, que foi feita para todos, quiseram alguns fazê-la unicamente sua: digam os Alexandres, os Césares e outros mais conquistadores, heróis não por princípio de virtude, ou de justiça, mas por um excesso de fortuna, de ambição e de vaidade.
(Aires, 2011, p. 72)
Estamos no mundo para ser alvo do tempo; e deste todas as mudanças não se dirigem a nós, dirigem-se à nossa vaidade. Os sucessos fazem efeito em nós porque primeiro o fazem na nossa vaidade, de sorte que um homem sem vaidade seria o mesmo que um homem insensível. (Aires, 2011, p. 85)
Quem disse que o amor é cego errou; mais certo é ser cega a vaidade. O emprego do amor é a formosura, e quem nunca a viu como há de amar? O amor vem por natureza, a vaidade por contágio. A vaidade que nos move não é pela substância da virtude, mas pela glória dela. (Aires, 2011, p. 62)
Em suma, de todas as paixões a que mais se esconde é a vaidade, que vai agindo sorrateiramente no espírito do homem: Adão e Eva que o digam!
Espero, com estas reflexões, ter correspondido à profundidade de seu estímulo.
Ide - Seria possível encararmos nosso próprio legado?
Sinceramente, eu não sei. Historicamente, o termo costuma designar uma gama variada de prepostos atuantes em diferentes campos, como o administrativo, o diplomático e até o eclesiástico. Nesta última acepção, há uma curiosa expressão, legatus ad latere, significando literalmente “legado ao lado do papa”, ou seja, seria um representante da sua confiança, com poderes que excedem os de um alter ego, permitindo a ocupação autônoma de um novo espaço pontifício. Em termos bíblicos, o legado refere-se à transmissão de bens intangíveis para outras gerações.
No caso específico da psicanálise, não há como dissociarmos essa expressão de uma configuração formativa, que foi se estabelecendo espontaneamente a partir de Freud, na medida em que os frutos da análise pessoal se configurem como patrimônio essencial para o exercício de uma profissão. No entanto, há aqui um cenário quase paradoxal, pelo fato de que os benefícios da análise pessoal incidem primariamente num analisando, o qual, posteriormente, poderá ou não, compartilhá-los com outro analisando.
O estágio romântico da psicanálise nos apresentou um demiurgo órfão, ou seja, um criador surgido do vácuo: Freud não teve analista, ficando entregue ao terreno pantanoso da autoanálise. Mas, nas primeiras décadas do movimento psicanalítico, a ipa, por ele fundada, conseguiu administrar seu legado no que concerne à formação, gerando uma linhagem de analistas que se dispuseram a seguir o tripé formativo constituído por análise pessoal, seminários teóricos e supervisão. O esforço pessoal exigido acabou, no entanto, gerando uma distorção: a psicanálise foi obtendo um sucesso de crítica e um fracasso de público, além de ganhar a pecha de elitista.
Gradualmente, essa distorção foi criando um organismo mais popularizado, mas menos rigoroso em seus pressupostos, culminando, no estágio atual, numa espécie de bem público passível de ser usado segundo preceitos de conveniência à la carte. Sem dúvida, contribuíram para isso a disseminação da Internet conjugada com as restrições de contato pessoal advindas da pandemia de covid-19.
Hoje, o legado de Freud luta para manter sua essência, sofrendo sérios riscos de se transformar numa psicoterapia digital disponível ao gosto do freguês nas vitrines da Internet. O próprio termo “psicanalista” se banalizou, sendo apropriado, com a maior sem-cerimônia, por qualquer pessoa que maneje, com alguma habilidade, o abecedário freudiano: esta distorção, evidentemente, não é exclusiva de nossa área, ocorre com a mesma intensidade, por exemplo, com a palavra “pastor”.
Ao longo de minha vida profissional, sempre mantive uma intuição de que o psiquismo humano precisaria ser considerado como uma espécie de Gesamtkunstwerk, ou seja, uma “obra de arte total”: no entanto, nunca me arvorei a fazer uma reflexão sistemática sobre qual seria o melhor “plano de carreira” para abordá-la com sucesso. Talvez, por isso, comecei minha jornada de forma bem casual através da medicina, ou, mais especificamente, através da psiquiatria, a qual, naquele momento, encontrava-se saturada do modelo médico curativo.
Demorei um certo tempo para sentir que esse modelo estava bem aquém daquilo que meu desafio exigia. Os anos que passei mergulhado na psiquiatria organicista foram me deixando claro que os diagnósticos eram improvisados, que as atmosferas hospitalares eram insalubres, que a farmacopeia era genérica e que meu vínculo se restringia a sintomas. Em resumo, eu estava me entretendo com a ponta do iceberg, sem conseguir mergulhar na essência da vida subaquática, que Jacques Cousteau, pertinentemente, descreveu como tendo a riqueza de um “sexto continente”.
Atualmente, sinto-me na obrigação de complementar tudo aquilo que já produzi no campo da psicanálise, e, para isso, achei inspiração num conceito desenvolvido pelo escritor Georges Perec (1938-1982) numa obra extremamente original denominada A vida modo de usar, que explora a vida através de recursos performáticos que evocam o legado de Bion concentrado em Uma memória do futuro.
De fato, no seu livro com o título acima, Perec faz um corte longitudinal na vida da população de um prédio de apartamentos em Paris, entrelaçando no período de várias décadas, todos os nascimentos e mortes, os encontros e as separações, as aventuras pelo mundo e as desventuras do cotidiano, as fidelidades e as traições, os gostos e os desgostos… enfim, a vida como ela é.
Depois de tantos artigos, livros, debates, seminários e, claro, uma vida mergulhada na clínica psicanalítica, e ter sido convidado a dar um curso sobre a obra de Bion para a China, senti ter chegado a hora de oferecer um seminário com o título:
“Bion, ‘modo de usar’: como ensiná-lo e como apreendê-lo”.
Aqui, o intuito foi cotejar a minha compreensão da psicanálise, tomando Bion como referência, com aquela de autores renomados ao redor do mundo. Num autor criativo como Perec, encontramos ecos de vários conceitos de Bion. Alguns exemplos:
A vida modo de usar é um grande puzzle dinâmico, em que as peças a serem encaixadas vão sendo “criadas” e “canceladas” segundo as configurações mutantes, algo muito próximo à Grade de Bion.
Seu livro La disparition (O sumiço) foi fruto de uma aposta: que ele conseguisse escrever um livro em francês, sem a vogal E. Usando todas as maquinações possíveis para garantir uma compreensão do texto, ele transformou a não-coisa num objeto fonte de fertilidade (ou, em termos freudianos, o “luto e melancolia” em “luto e arrelia”).
Ao imaginar um pintor que foi contratado para reproduzir todos os quadros de uma coleção particular, Perec nos apresenta uma sucessão telescópica de continentes e conteúdos, mimetizando a representação de uma infinitude assustadora!
Esta é, em resumo, minha “Psicanálise, modo de usar”.