Parto de uma situação relativamente comum, como aquela com que me ocupei há algumas semanas: participei de uma atividade preparatória do Congresso Brasileiro de Psicanálise. Na plateia do pequeno anfiteatro havia aproximadamente duzentos colegas. Nas redondezas desse espaço imagino ter havido mais de cinquenta pessoas, incluindo funcionários de apoio, visitantes do restaurante e seus funcionários etc.
Essa seria uma amostra razoável de 2,7 bilhões de usuários, em seu cotidiano, da rede de Internet no mundo: nós, os presentes, entre os quais há laços de amizade, coleguismo, de trabalho... nos tornamos, sem exceção, e a cada momento de nossos dias, trabalhadores e funcionários, embora não declarados, nem registrados, do grande conglomerado do gigante GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft) e acoplados (Instagram, TikTok, Waze etc.).2 Cada localização nossa, cada visita na rede, no Instagram, Facebook, Google, e a cada postagem, comentário etc., nossas mensagens digitadas ou de imagens, assim como os seus destinatários e suas redes, são rastreadas, decompostas, comparadas. E, com base nelas, nos são propostas (a nós e aos nossos contatos), sequencial e sincronamente, conforme as combinatórias dos algoritmos, algumas séries de novos produtos e serviços, com o timing acertado, que, magicamente, vêm ao encontro de nossas ainda não enunciadas procuras e necessidades.
O colega Pedro Colli B. S. Leite (2022), a quem devemos a introdução e a reflexão acerca do digital em nosso meio (da SBPSP), tem mostrado como as fontes de informação científicas da física, biologia e também dados sociais e políticos entram em jogo nessa combinatória de algoritmos. Por exemplo, a sensibilidade sensorial de uma grávida, recém-fecundada, influencia, sem que ela saiba disso, bioquimicamente, suas escolhas de produtos higiênicos, assim como pertencimentos ideológicos de certa população podem ser rastreados conforme seus elos com suas cadeias de gerações grupais. Nesses casos, como em outros, essas fontes permitem ofertar produtos materiais e ideológicos às redes de ligação desses sujeitos e grupos, conduzindo seus hábitos de consumo nessas duas dimensões, econômica e política.
Yuval Noah Harari (2019), célebre historiador israelense, tem ampliado as consequências do jogo dos algoritmos em todas as instâncias de nossa vida - privada, médica, social, econômica e política -, para o século 21, baseando-se em dados que despontam já na intensa aliança entre a tecnologia da informação (Infotec) e a potencialidade do conhecimento em biotecnologia (Biotec). As conclusões de Leite vêm ao encontro das de Harari, a não ser pela timidez do primeiro, em face da pungência do segundo, que se baseia e se estende sobre um escopo mais vasto de dados de diferentes fontes e áreas para sustentar suas hipóteses. Embora Harari se mostre, por vezes, ingênuo em relação à vida psíquica, em contraste com a penetrante apreensão psicanalítica de Leite, ele sustenta, consonantemente com Leite, que as máquinas algorítmicas são capazes de colher e reconstruir o material da vida psíquica em paralelo com nosso laborioso ofício.
Parece haver um consenso entre Harari e Leite sobre a efetividade da predição com base nesses dados e seu uso, seja para o consumo, seja para a administração de nossa vida em todas suas dimensões citadas por Harari. O último ressalta os imensos benefícios dos algoritmos na atual e futura vida, o que Leite não parece desmentir. No entanto, ambos reconhecem as destrutivas consequências que podem causar para o planeta, a sociedade e sobretudo a alma dos seres humanos.
A vida psíquica, porém, tem como condição a existência do corpo biológico. O que faz Harari se estender sobre os desafios diante das três ameaças de destruição de nosso corpo e nossa espécie, e da vida em geral no planeta: o armamento nuclear, o desmantelamento ecológico e a ditadura da tecnologia digital. Por isso, esses devem ser confrontados, urgentemente, por meios de restrições e regulamentações consensuais entre todas as nações. Quanto à alma humana, tanto Harari como Leite diferenciam o poder da inteligência artificial da experiência humana, da psique, ou seja, da escuta, da representação, dos sentimentos, afetos, identificações etc., todos gerados e referenciados em relação a si e aos outros, e com os outros.
As máquinas são inteligentes, calculam, mas não pensam, não sentem, não convivem. Em outras palavras, situam-se longe da experiência, seja ela consciente, pré-consciente ou inconsciente. Dados não são vivências, não são experiências, embora os meios de busca desses dados possam retraçar as informações das redes mnêmicas, seus substratos biológicos e seus encadeamentos, e a maneira de sua determinação. Predição que instrui sobre as manipulações às quais os referidos indivíduos e grupos podem ser sujeitos pela mídia, comércio, política, medicina etc. Suas preditas inclinações e predisposições pessoais e grupais, cifradas pelos algoritmos, forneceriam os meios de saber intervir em todas as dimensões de sua vida privada e pública, manipulando-as.
A informação de dados e sobre dados se distingue, porém, das vivências das quais são subtraídos como conteúdo. Nisso consiste toda a contribuição do conhecimento adquirido na psicanálise. A representação, como moeda corrente do mundo psíquico, se reporta ao universo sensório, costurando junto a ele afetos, pensar e ação segundo um roteiro e um plano que visa a realização, em última análise, de um cunho alucinatório, seja de um desejo inconsciente, seja em defesa desse desejo, de acordo com os limites impostos pela realidade, como metas a serviço do eu, de sua conservação.
O que denominamos sexual, aquilo que embrenha os nossos afetos, pensamentos e ações, e que resultam na constituição da dimensão cultural enquanto área compartilhada entre sujeitos no amor, sexo, violência, religião, política, literatura, arte, tecnologias de bem e mal-estares etc., é consequência de um desvio originário das necessidades, das exigências vitais, empreendido pela linguagem em meio aos cuidados prestados pelos adultos ao recém-chegado ao mundo. Um desvio tributário do nascimento da pulsão. A pulsão é fonte inexaurível de engendramento indeterminável, uma excitação cujos pontos de chegada são imprevisíveis, dando o ensejo às noções imaginativas que temos da vida enquanto tal. Não obstante, Freud (1915/2010b) alega que as pulsões são guiadas em seus roteiros e destinos pelas finalidades das metas da autoconservação; a satisfação delas. Significa, em termos da segunda tópica, que, ao se desviar, a pulsão é comandada, ao mesmo tempo e secretamente, a voltar, no sentido contrário, aos seus pontos de partida, a um “si”, à morte de si mesma. Eis por que Freud afirma que os destinos da pulsão - inibição de seus fins, o retorno sobre si, a reversão no contrário, as formações reativas, as identificações, o recalcamento, a sublimação etc. - são defesas em relação ao desvio em direção à vida que ela sofre pelo outro, pela cultura. A pulsão, por fim, se submete, então, à morte, ou é, afinal, de morte, porém nossa ênfase seria sobre o intervalo, sobre a vida; ou seja, o potencial pulsional de engendrar indeterminadas formas, objetos e modalidades psíquicas. E, ao mesmo tempo, a morte se inscreve, também, na novidade pulsional constituindo a vida psíquica.
É a imposição da morte sobre a irrupção pulsional que permite inscrever e precipitar - gerar diferenças - as redes mnêmicas, as referências autoeróticas, as identificações, os afetos, e outras aquisições psíquicas. Essa encapsulação ou retenção de potencial de vida pela morte possibilita a história, a memória em constante transformação (Graeber & Wengrow, 2018).3 Eis por que, para fins de ilustração, cada elemento recalcado é assentado sobre uma calda pulsional que o habilita a se associar a outros recalcados, aumentando a rede mnêmica que a subtende ou a retornar à consciência pelas deformações sucessivas em sintomas, ou então a emergir no sujeito como admissão afetiva.
Se supusermos que o refúgio ao comando algorítmico de nossa cultura pós-moderna está prestes a vencer, a nocautear a vida, narcotizando a pulsão e mortificando as benesses da vida em cultura, surge a questão de saber qual o destino desse mal-estar digital (Leite, 2022). Será que a revolução digital é capaz de dar um fim à linguagem que originou o desvio da autoconservação para a pulsão de vida? Apesar de lidarmos com conceitos conhecidos, seria preciso, para tratar dessas questões, esclarecer as espécies teóricas envolvidas no ponto de origem desse desvio originário em vida psíquica.
Nessas definições preliminares devemos integrar concepções ou achados psicanalíticos oriundos de dois estágios na obra de Freud, a primeira e a segunda tópica, ainda que a segunda possa ser sustentada independentemente da primeira. Se o vivente, organismo biológico de um mamífero, é despertado de início por organizações pré-formadas, instintos, para atingir metas fixas, isto é, satisfazer positiva e negativamente a necessidades e precauções (evitar perigos à vida), respectivamente, o choro poderia ser um meio instintivo de sinalização a quem estaria pronto biologicamente a amamentá-lo, aquecê-lo e protegê-lo.
O choro, sim, mas o que diríamos do grito? O grito é dor, agonia, angústia, todas vinculadas diretamente à linguagem que está prestes a efetuar um desvio em meio à satisfação das necessidades, afastando e aliviando os perigos e incômodos dos estímulos internos e externos. Freud, baseando-se nas expressões das emoções (Darwin) do rosto do bebê que grita, supõe, já no “Projeto de uma psicologia” (1895/1995), a vivência de hostilidade. Ou seja, uma contrariedade pelo fato de o bebê ser arrancado, pelos estímulos internos e externos, de uma paz, de um gozo de quietude.
Somente em 1924 Freud será munido de subsídios clínico-teóricos para dar conta dessa trama, estendendo suas elaborações nos livros de 1926 e 1939 (Freud, 1924/2011b; 1926/2014; 1939/2018). Pressupõe-se uma reserva mítica de gozo de quietude, nirvana, um estado acordado consciente, pré-consciente e inconsciente. Arrancado desse estado e espaço de gozo, pelas exigências vitais, pela exposição à dor que causam, essas exigências surgem como ameaças hipocondríacas, desespero oriundo de um despertar do tempo, angústia persecutória, mas que é também agonia depressiva (perda de espaço). Ocorre uma transformação de um estado atemporal que é ao mesmo tempo uma estase econômica parada, em que a agressão das necessidades vitais revela, après-coup, por meio da interrupção do nirvana, uma estrutura pré-pulsional com economia bastante peculiar: duas tendências dinâmicas opostas, de irrupção eferente (vida) e de retração aferente (morte), uma segurando a outra, uma se amalgamando à outra, mas com uma disjunção leve, basal, entre as duas.
Essa disjunção se deve à predominância da retração da pulsão de morte, e com isso ela dota o estado de gozo de quietude, nirvana, de passividade, de receptividade. Esse ponto de partida evoca o estado de não--integração, de amorfia, de Winnicott, como sua potencialidade criativa, dependendo de um ambiente que a verteria seja para a desintegração, seja para a integração. O gozo da quietude, com sua disjunção basal, é uma disposição receptiva aos efeitos da linguagem para a geração da pulsão e seus sucedâneos. Para Freud, a disjunção basal é também a fonte do masoquismo erótico, da ambivalência e da bissexualidade originárias, todas potencializadas pela linguagem para destinos indefinidos previamente, cujas possibilidades de formação são inesgotáveis.4 Por que esse estado e essa economia se dispõem à linguagem, e o que seria a linguagem?
Antes de arriscar responder a essas questões, vale resumir o saldo dessa breve exposição em que o estado de desamparo é consequência da deturpação do estado primordial de gozo de quietude, um existindo em dependência do outro, um tendo o outro como premissa em face das exigências vitais. Volto, agora, ao desafio da questão da linguagem. Ela me parece ancorada na sedução, no convite inconsciente do adulto, de seu recalcado. Seduzir é excitar, despertar, espicaçar, introduzindo, terna e delicadamente, um ruído, um certo desequilíbrio econômico na disposição receptiva do gozo de quietude que se mantém graças a uma disjunção basal de tendências opostas. Esse ruído precisa logo, e apenas em parte, ser contrabalançado por uma contenção, nesse caso, por uma tradução linguageira, não necessariamente em palavras, mas de imagens de movimento.
Nesse caso, a contenção de um ruído significa uma assimilação de forma, uma transformação, em consonância com a excitação e a contenção das duas tendências opostas abrigadas na mônada nirvânica. Se a linguagem é ritmo de voz e de gestos, de corpo e seus fonemas, ela é, ao mesmo tempo, um desencadeamento infinito de significantes com a promessa de se alojar temporária e randomicamente em estações de sentidos e significações. Essa obra de construção de corpo e do tempo, psique, se deve então à sedução embutida na ternura que a linguagem proporciona.
Embora eu admire o modo com o qual Laplanche fez trabalhar Freud, resgatando a sedução originária e sua tradução, prefiro dispensar a sedução e a tradução, juntando-as com Freud e incluindo-as no amor dos pais, como ação psíquica da linguagem que instaura o sujeito: o bebê remete o adulto ao bebê que ele próprio foi outrora aos olhos dos pais, como promessa de gozo infinito e indefinido, sem as aquisições culturais, ou seja, desvestido de sua história ulterior de traumas, impasses, frustrações e decepções. Nesse sentido, o amor, parafraseando Lacan, é dar aquilo que você não tem e que jamais obterá, mas que você transmite, projeta no bebê, cuida, ou seja, auto seduzindo-se pela sua cria e a seduzindo como esperança de que ela seja mais bem-sucedida em lidar com os impedimentos que a aguardam na travessia da vida.
Para tanto, há um cuidar, um investimento como complemento libidinal da autoconservação e, de outro, um investimento que lança o bebê, seduzindo-o para a vida, instaurando, assim, a partição entre a libido do eu nascente e a libido objetal. O amor aqui, como um dar aquilo que não se tem, autofigura a estrutura da linguagem, que é proporcionada ao bebê. A excitação nessa sedução, aliando-se à moção eferente do binômio pré--pulsional, transforma o gozo de quietude em prazer, novidade trazida pela linguagem, em vez do alívio da satisfação das exigências vitais. O nascimento da pulsão leva de uma excitação a outra.
A pulsão, portanto, não se pode satisfazer, a não ser por uma realização alucinatória tomando como substrato as vias das traduções que lhe são propostas. Essas traduções se valem de duas fontes complementares: uma diz respeito às coordenadas herdadas da história que instaurou o ser humano pelo assassinato do pai e que gerou o molde da identificação primária com o pai e suas decorrentes estruturas polarizadas das fantasias de origem (adulto/criança, cena primária e diferença dos sexos, as três aspirando à volta ao gozo da quietude do mítico útero materno). Essa fonte é instintual, herdada. A outra é sua transmissão simbólica viva que constitui o acervo inesgotável à disposição do adulto para a tradução que, na cultura, tem um desenvolvimento próprio: por exemplo, os gêneros, a proibição do incesto, as molas do Édipo e suas variadas espécies de símbolos etc.
Se, de um lado, temos as organizações instintivas da autopreservação com suas molas de satisfação das necessidades e outras, de alertas de dor e de fuga de estímulos, esses se avizinham ou são encobertos de uma reserva de energia parada, de gozo de quietude, provavelmente formada na longa história da espécie humana, que revela, pela incitação do fragor da vida, ser um binômio de disjunção pré-pulsional basal de duas tendências opostas.
No início, a forte mobilização pelas exigências vitais gera desamparo, como defesa desse abalo. Essa incitação, porém, em virtude da conexão do centro motor no cérebro aos veios acústicos do centro da linguagem (Freud, 1891/1987), propicia a receptividade da linguagem no interior da fresta criada pela disjunção do arranjo pré-pulsional. Entre o espernear do corpo da criança e seu grito e o corpo e a voz do adulto, integra-se concomitantemente, no intervalo do aumento da disjunção, uma excitação, pulsão, e sua parcial ligação, modulação em formas, tradução, em imagem de movimento cujo saldo econômico e saldo vivencial seriam o prazer. A liberação da excitação impele a última à realização sob a modalidade de figuração alucinatória, fonte do imaginário, propício a criar imagens e fantasias como condição de representação que é provida, entre as coordenadas instintivas herdadas da história da espécie, como receptáculo vazio ao amor, e a tradução pelo adulto, enquanto portador da voz da cultura.
O ingrediente performativo das fissuras do bebê é, de um lado, o representante psíquico da pulsão aberto à linguagem, à tradução, e, de outro, a contínua excitação. Se o amor do adulto é infiltrado de carências significativas, embrenhadas de paixões (Ferenczi), a abertura à linguagem será comprometida, resultando numa pobre provisão, ou seja, aumentando o desespero do bebê, sendo convocada uma defesa ante a disjunção progressiva, incitada pelas exigências vitais, pela contenção automática, isto é, pela moção retrativa, que desembocaria, então, numa compulsão à repetição entre necessidade desesperançosa e defesa.
Ao tornar explícita a pressuposição do desamparo e da hostilidade primária à vida numa reserva primária de gozo de quietude, Freud delineia assim uma aptidão ao amor, uma receptividade e abertura à linguagem. Não é por acidente que já no caso Elizabeth Freud intuía que a origem dos afetos e da linguagem se encontra numa só fonte, que seria, com apoio de Darwin, a dependência da ação, provisão e interpretação do outro. De outro lado, Melanie Klein, em suas formulações tardias, postulava uma variedade constitucional da aptidão ao amor (capacity for love), ou seja, a tolerância à inveja primária. A reserva de gozo da quietude não é outra coisa senão essa aptidão ao amor.
Era Klein quem, aliás, apostava, mais do que outros, em que o cuidado amoroso e sobretudo o autêntico prazer (enjoyment) da mãe, e depois do analista, são capazes de reverter parte dessa desconfiança, dessa falha amorosa na constituição do bebê. O trabalho efetuado entre essa reserva de gozo de quietude de origem e a linguagem, que tem como efeito a geração da pulsão e da memória, garante uma indefinida e infinita cadeia de espécies psíquicas como repertório do engendramento do sujeito.
Seria preciso retomar um longo caminho para discorrer sobre a evolução desse diálogo entre a reserva primária, o desamparo e a linguagem para mostrar seus liames com a criação do laço social (amor, ciúme e identificação). Assim como sobre o limite que este encontra diante dos ideais da cultura na ameaça que estes fazem para a disjunção do binômio pulsional (como Freud mostra em relação à sublimação), desembocando no mal-estar da cultura, e nas gambiarras que se criam como reação a essas disjunções excessivas que transcendem a capacidade da linguagem em remediá-las. Os excessos das práticas de escoamento no gozo, de um lado, e, de outro, a recorrência - em face da eclosão do pânico, do desamparo e de medos do destino e suas angústias hipocondríacas de origem, desencadeados pela disjunção do binômio pulsional - às religiões laicas e outras, desde as modas e as terapias médicas e psicológicas de correção e até a adesão às propostas políticas fanáticas, todas vislumbrando a salvação diante da insuficiência do laço social em conter o excesso da demanda dos ideais. Ideais que visavam conduzir o grupo humano ante o desconhecido.
O luto exigido pela perda ilusória do poder absoluto deveria abdicar, na cultura, da satisfação libidinal plena junto aos outros, assim como do domínio pleno da natureza e de nossa vulnerabilidade corpórea para encontrar na tensão entre o almejado gozo e o desconhecido o impulso criador da linguagem e do amor que a move. Não obstante, são os ideais insaciáveis que vêm recusando a castração, empenhando-se em projetos megalomaníacos de domínio de tudo para cumprir as metas da autoconservação e, portanto, da pulsão de morte.
A esse respeito interessa-nos o móvel psíquico do ideário digital. O que nos intriga aqui não é a ênfase sobre o potencial exponencial dos lucros acumulados, através desse capitalismo de vigilância, no mercado de produtos e serviços, além de outros, também altamente lucrativos, em favor de grupos políticos, acendendo compensações narcísicos por meio de incitações fanáticas. O que nos questiona são as bases e fundamentos psíquicos dessa embriaguez hipnótica que as redes nos proporcionam, uma espécie de narcotização similar àquela que embrenha as vivências das crianças nos passeios pela Disneylândia e suas maravilhas, em filmes ou em terra.
Eu me refiro à dita navegação que outras línguas designam, de forma mais apropriada, como um surfar, com pouca resistência, se comparada à navegação, e que tudo encontra (informação e produtos) em instantes menores que a duração de um piscar de olho. Freud já se havia questionado em 1921 sobre um ingrediente misterioso na hipnose que se desvia do amor e que busca preservar o sujeito sob o poder absoluto do outro, entregando-se ao sono. Freud (1921/2011c) se refere a uma servidão enamorada, uma versão mais acurada da conhecida noção da servidão voluntária (Étienne de La Boétie, 1577), em que a entrega absoluta ao outro narcotiza a dor, anula e apaga, aparentemente, os traços identitários do sujeito, em favor daqueles que lhe são atribuídos pelo colonizador ou por ideais dominantes, como ocorre em sujeitos submetido aos preconceitos raciais e misóginos.
Trata-se de um entorpecimento, uma espécie de narcotização da pulsão, na qual a estase originária do gozo da quietude resiste, recusa a se entregar ao abalo da dor da vigília e ao esforço de sentir e pensar que ela exige. Um modo que encontramos no entorpecimento sonante do bebê sobre o seio materno. A resistência ao sinal de angústia ou à ameaça depressiva (perda do espaço de quietude) caracteriza a entrega de jovens a se narcotizar, continuamente, com a maconha e a ficarem plugados, compulsivamente, às redes. O modo mais comum, porém, em que obtemos esse gozo hipnótico com o ganho mágico e onipotente, costurado pelas potentes maquinações algorítmicas, constitui, talvez, a camada primária da autopreservação, assim como a paixão, o reverso narcísico da fascinação pelo outro, tende a nos reservar e “garantir” uma habitação segura e perene no outro ante à vida, ambos a serviço da autoconservação.5
Recebo um homem para uma entrevista. Uma pessoa com 55 anos, simpático e agradável. Ele me diz que vem me consultar sobre um assunto que não diz respeito a ele, já que tudo está bem em sua vida. Seu filho, primogênito, de 21 anos, fez uma tentativa de suicídio. Ele não consegue entender o que levaria um garoto como ele a uma tal ação. Sua relação com seu filho é muito boa, salvo a impossibilidade de tirar qualquer explicação para esse ato. Como o filho, ele também foi o único filho homem, tendo duas irmãs mais jovens. Ele percebe também que o filho não tem lá grande interesse pela faculdade nem pela ocupação que ele reserva para seu futuro. Ele logo me diz que o filho se assemelha a ele. Quando jovem pensou numa profissão que julgou ser improdutiva do ponto de vista econômico; escolheu, então, uma faculdade de acordo com as necessidades da empresa que o avô e o pai têm dirigido, tendo como certa sua sucessão natural, dele e de suas irmãs, nessa condução. Ele continua não tendo nenhum entusiasmo e prazer com o que faz, apenas continua fazendo o que for preciso. No casamento sentia sozinho, sua mulher o achava carente demais do amor. Ele acabou se apaixonando pela melhor amiga da esposa, se divorciou e continua namorando essa mulher. Ele me diz que desfruta de pequenos prazeres, os jantares com os filhos, as viagens, a casa de praia, a recepção dos amigos. Seus pais viviam brigando desde cedo, sua mãe sempre foi deprimida e o pai até hoje encontra consolos com mulheres jovens, de classe mais baixa. Ele não interfere, apenas cuida para que as coisas não transbordem dos limites privados. Sinto uma depressão de fundo, mascarada, nele. Ele não sente realmente que ele importa para os outros próximos, nem mesmo os filhos e a namorada, dos quais gosta. Sua namorada o “esquece” frequentemente, não o incluindo em seus programas sociais. Um dia ela comenta uma discussão no grupo de WhatsApp de mulheres dos moradores da praia com cunho manifestamente racista em relação a própria comunidade dele. Me espanta que ele nem reage ao fato de que ela nem sequer protestou. Ele fica quieto. Ele me conta que frequentemente gosta de viajar sozinho no Brasil ou no exterior e só depois combina de encontrar com os filhos ou a namorada, que ele acaba convidando para prosseguir com o passeio. Após alguns meses, ele traz algo novo: conta que desde seus 11 anos e até hoje ele imerge em um devaneio no qual encontra grande prazer e consolo. Nesse devaneio, ele está sozinho no mundo, perambula, se servindo de máquinas para abastecer seu veículo, para se alimentar, para continuar atravessando terras e mares com paisagens naturais e urbanas.
Confesso que, em mais de três décadas de trabalho com pacientes, nunca deparei com semelhante devaneio. O que encontramos, costumeiramente, é o Into the wild, conforme o título de um belo filme, o devaneio de se afastar de todos e se refugiar na floresta ou nas montanhas. Nesse paciente não, é um permanecer no mundo, todo sozinho, planejar roteiros e visitar e desfrutar de tudo. Mas sem ninguém? Nesse devaneio, encontro um refúgio moderno, quase à semelhança da meta neoliberal.6 Imagino que esse devaneio, esse fantasying (Winnicott, 1971/1991), o salvou de uma morte, de uma tentativa de suicídio cuja materialização ele encontrou, pasmado, em seu filho, tão semelhante a ele, e que fica dias enclausurado em seu computador entregue aos jogos e à navegação na rede.
Freud (1925/2011) pensou o devaneio como um divórcio, dissociação do sonho e de seu desejo, e Winnicott o confirmou desenhando-o como um remendo posto sobre a impossível separação do objeto primário e do reconhecimento da castração. Nesse caso, o refúgio a um perambular não é de um flâneur, que se entrega à descoberta da vida nos outros anônimos. Nesse paciente é a onipotência de navegar no mundo sem a resistência de outros, contando com máquinas para ir surfando no mundo.
Prometem-nos que logo teremos suficiente informação da biologia de modo que sensores de tamanho ínfimo, inseridos em nossas células, poderão detectar qualquer irregularidade, seja ela anatômica, fisiológica ou genética, e nos advertir sobre a necessidade de exames e tratamentos adequados por centros algorítmicos de informação. E, se o conhecimento alcançar tudo isso, logo teremos a nosso dispor - pelos conhecimentos das bases biológicas de nossos afetos e pensamento, também através desses sensores - a informação não só de nossa orientação sexual, entre tantos gostos e desejos ocultos, mas também da possibilidade de escolha de amigos, pares perfeitos com quem nos casaríamos, cujos santos cruzariam com os nossos.
Imaginem que, se ainda houver psicanálise, os algoritmos poderiam calcular como as eventuais associações do paciente esbarrariam em rotas de escuta de seus possíveis analistas, de modo que, conforme os seus núcleos traumáticos, isto é, de fuga, o analista deixaria de escutar, pelo menos naquilo que é essencial elaborar no paciente. Cada um poderia então optar pelo analista ótimo. “Tudo seria tão perfeito!”, como dizia um adolescente. Não precisamos nos alongar, aqui, sobre os futuros terapeutas robôs previstos pela inteligência artificial do ChatGPT, cada vez mais sofisticados e baratos, que já estão em vias de preparação. O digital parece nos transportar para uma nova fórmula que Leite cultiva: “Onde era isso há de ser eles”. O digital, segundo ele, cria novas massas cujas condutas assemelham-se àquelas descritas por Gustave Le Bon.
Tal situação, fictícia, que, para os enunciadores do futuro, como Harari, seria bastante provável, nos faz pensar. A ideia dos algoritmos, como também pensa Leite, na medida em que possa farejar algumas trilhas das inscrições mnêmicas que se põem a serviço do eu, as suas metas, permite reforçar várias manipulações comerciais, hábitos e criações de tendências políticas, que, de alguma forma, tamponam, rapidamente, as vias de engendramento pulsional disponíveis à linguagem. Ela os verteria, então, para a autoconservação. Certamente recorrer à narcotização digital, a imersão em sua veia hipnótica e mágica atração, a serviço do capitalismo, pode ir longe, mas será que pode nocautear a linguagem? Não, acredito que não. Por quê? Freud afirma que a pulsão libidinal acaba se submetendo ao roteiro das pulsões de autopreservação, assim como o desvio que ela efetua em relação à moção de retração, de morte, termina no silêncio. Entretanto, enquanto ela emerge, vive, gera diferença, ou, para ficar mais claro, é justamente porque a tendência da pulsão de morte predomina que as diferenças surgem enquanto prazer e linguagem. A linguagem é o encontro dos corpos, dizia Fédida em sua palestra em Campinas. É onde se reabrem as portas da sedução originária sob ternura, quando as penumbras dos conjuntos pulsionais se dispõem à criação e ao inusitado da linguagem. É onde as tramas dos afetos surgem com toda a força, e somente elas dão o verdadeiro sabor à vida no encontro, na arte, na literatura e na ciência. Por isso “onde estava isso, lá o sujeito deve advir”, e não a massa, eles, criada pelo digital, como afirma e teme nosso colega Pedro Leite.