No final da década de 1990, um filme estrelado por Meg Ryan e Tom Hanks, chamado Mensagem pra você (You’ve got mail) (Ephron, 1998), narrava a história da dona de uma pequena livraria infantil que estava ameaçada com a chegada de uma grande rede. Revoltada, temendo a falência ou a perda do espírito do seu empreendimento, a protagonista protesta, mas, dado o tamanho do magazine, se vê sem saída. Seu negócio acaba perdendo lugar para essa grande loja que vendia livros, cds e eletrônicos, e ela ainda se apaixona pelo dono da concorrência.
Oferecemos esse filme como uma metáfora para pensar o contexto psicanalítico atual. Cada tempo porta seus desafios, e o filme pode servir como estímulo para pensarmos naqueles que nos cabe enfrentar. Quais riscos corre a psicanálise ao ser engolida por uma indústria midiática voraz, que atrai fãs e seguidores? O narcisismo alimentado algoritmicamente poderia engolir junto o espírito psicanalítico?
Recortes clínicos que se assemelham à ficção
“Você aceita permuta?”, pergunta Jonny5 na entrevista. A analista tenta entender o que ele quer dizer, e o paciente explica que poderia anunciar em suas redes sociais que fazia análise com ela. “Assim, todo mundo sai ganhando, e quem sabe algumas marcas se interessem em incluir produtos nas fotos que eu postar dando check-in na terapia. O que acha, my Doc?”
Jonny é um influencer. Estava sem dinheiro, em crise no relacionamento e buscou análise na tentativa de se sentir melhor. Algum tempo antes, havia perdido um familiar próximo. Ao receber a notícia, iniciou o compartilhamento de seu processo de luto e dos rituais de despedida em lives nas redes sociais, sem considerar qualquer alternativa além de tornar sua dor imediatamente pública. A ideia de vivê-la de forma íntima ou preservar parte dela no âmbito privado não parecia ser uma possibilidade, nem um direito a ser levado em conta.
Sua chegada ao consultório tinha ares de espetáculo: falava alto, caminhava fazendo barulho com os sapatos e sempre usava uma roupa chamativa e cheia de marcas. Entrava de boné e óculos para não ser reconhecido na portaria e, quando chamado na sala de espera, estava fazendo um story: “Gente, agora vou entrar na terapia. Saúde mental é tudo! Vou pedir para my Doc aparecer nos vídeos, para vocês verem como ela é querida”.
Constrangida, a analista pedia que ele resguardasse aquele espaço apenas para os dois. Mas Jonny não entendia o pedido como cuidado. Era como se ela não compreendesse seu mundo, e o convite para a criação de um espaço de intimidade era para ele uma rejeição.
O apelido, “my Doc”, vinha em uma língua que não era a da analista e que lhe provocava a sensação de ser estrangeira em seu próprio território. Tinha a impressão de estar com alguém cuja subjetividade havia sido sugada pela indústria do entretenimento, sem que um vaivém dialético público-privado pudesse manter um investimento na própria interioridade. A impressão era que, mesmo quando desligava a câmera, uma porta estava sempre entreaberta impedindo um contato íntimo, parecendo apontar uma área de alienação impeditiva de pensamento e reflexão. Quem era aquele homem por trás de camadas de marcas e expressões midiáticas, criadas para “lacrar”? Como encontrar alguém em um personagem fabricado para conquistar curtidas e seguidores?
A dificuldade em estabelecer um enquadre que favorecesse a autorreflexão, somado ao mergulho do paciente em uma condição alienante, nos fez lembrar outra situação clínica que naufragou nos mares do fanatismo.
Ana procurou análise aos 18 anos por crises de ansiedade. Nas primeiras entrevistas, mencionou que sofria de vaginismo, mas que o problema já estava resolvido. Nunca mais mencionou esse fato. Ela estava sempre correndo, fazia muitas coisas ao mesmo tempo e todas com excelência. A análise se tornou mais um compromisso de uma agenda lotada, em que não cabia o lazer, ócio ou curiosidade sobre si.
A valorização de uma vida espartana por sua família fortalecia a intransigência de sua rígida estrutura psíquica. Enquanto, na análise, tangenciava aspectos da própria intolerância, sua melhor amiga aderiu a uma seita religiosa, e Ana, assustada, assistiu à ascensão de seu fanatismo, olhando com certa crítica e ao mesmo tempo se sentindo sozinha. Convidada a frequentar o templo, Ana aceitava, dizendo tentar extrair algo bom e ignorar o que considerava fanático. Apesar disso, a sedução religiosa foi bem-sucedida: dominou sua vida, fez questionar sua dedicação ao trabalho – uma vez que, de acordo com os dogmas desse sistema de crenças, sua função principal deveria ser a maternidade. A analista intervinha no sentido de apontar conflitos e ambiguidades, mas sua adesão à doutrina era total, estendendo largas áreas de não-pensamento ao redor do tema. Até nas redes sociais seguia pessoas que os fiéis julgavam exemplares. Uma dessas influencers, mãe de muitos filhos, renunciou à profissão para cuidar da família constituída com o marido médico, também famoso nas redes por um método próprio que mistura medicina e reafirmação de preceitos morais.
Conforme foi aderindo a esse novo sistema de crenças, seu relacionamento com o namorado tornou-se uma discrepância e sua análise também, logo eliminados por falta de espaço para reflexão. Ela se tornou impenetrável, deixando a analista com fantasias de ter sido substituída pelo médico influenciador social.
Em “O futuro de uma ilusão” (1927/2011c), Freud propõe que a criação das religiões responde à necessidade de tornar suportável a condição humana de desamparo. Segundo a doutrina das principais religiões monoteístas, a vida teria um propósito mais elevado que protegeria os seres humanos dos perigos de sua própria natureza. Para adesão a eles, o sujeito abdicaria das contradições e ambiguidades que geram questionamentos. Se, por um lado, as religiões teriam um papel importante na estruturação social do mundo ocidental civilizado conforme o conhecemos, por outro, a adesão total a essas doutrinas teria o potencial de levar a uma proibição do pensar. É nesse ponto, quando a participação em uma crença impossibilita o pensamento autônomo, que situamos a ideia de fanatismo comum a ambas as vinhetas. Qualquer sistema doutrinal, seja ele religioso ou não (político, ideológico, midiático ou mesmo intelectual), pode se tornar sede para o desenvolvimento do fanatismo.
Nem toda crença pode ser considerada fanática, mas sim aquela que impõe uma afiliação cega, e um ataque à capacidade de pensar, tal como na rigidez de Ana e Jonny na construção de blindagens protetivas contra a dúvida. Segundo Aulagnier (1975/1979), a alienação é uma forma de consentir em não saber, mantendo a ilusão de existir alguém que sabe, a quem se possa seguir acriticamente. Tal escudo contra a dúvida e o desamparo é uma máquina de produzir seguidores.
O funcionamento massivo das redes sociais, aliado ao culto ao Eu promovido pelos algoritmos que moldam nosso cotidiano, se assemelha a uma devoção fanática a um ideal. Esse ideal, que não se reduz a um líder ou um sistema religioso formal, manifesta-se também no “Deus espelho”, que escraviza à própria imagem e à busca incessante por fama e reconhecimento, moeda corrente no capitalismo de vigilância.
O que estamos chamando de fanatismo envolve certezas inabordáveis, que resistem à alteridade do contraditório e ao pensamento complexo. Para o escritor Amós Oz (2016), “a semente do fanatismo reside sempre numa autojustificativa sem concessões”; impulsiona a mudar o outro para torná-lo melhor, sem considerar o seu ponto de vista. O fanático “muitas vezes tem uma resposta com uma só sentença para todo o sofrimento humano”. O fanatismo nasce na impossibilidade de escutar o que descentra e pode desamparar.
Como analisar um fanático?
“O fanático é um ponto de exclamação ambulante” (Amós Oz, 2016). Nas situações vividas com Jonny e Ana, ele foi um ponto final para a análise. Cenas distintas, desafios semelhantes. Em ambas as situações, a intimidade se mostrou insustentável, e a analista se viu impotente diante do fanatismo, seja o de quem estava refém da busca desesperada por seguidores ou de quem se tornou um. Como se faz para resgatar uma posição reflexiva de alguém que hipotecou sua capacidade de pensar?
Compliquemos um pouco mais a cena, imaginando que o atingido pela sedução hipnótica seja o psicanalista. O mergulho total em uma lógica, sem poder percebê-la e questioná-la, caracteriza a busca de um estado “aconflitual” próprio da alienação (Aulagnier, 1975/1979). A força alienante, seja de uma religião, ou da cultura do espetáculo, convoca a uma devoção inquestionável.
Nosso momento histórico nos chama a refletir, dentro do campo da psicanálise, sobre o fenômeno de ídolos e seguidores, comum às duas situações apresentadas. A influência, que leva à entrega irrestrita da própria capacidade de pensar, lembra o transe hipnótico que, como uma forte correnteza, afoga o sujeito, impedindo-o de emergir para respirar.
A entrega total a um líder ou a um fenômeno da cultura transformado em ideal impensável nos remete ao funcionamento das massas descrito por Freud (1921/2011b). O autor, apoiado nas ideias de Le Bon, se utiliza dos seguintes adjetivos para definir a massa: “impulsiva, volúvel, excitável, guiada pelo inconsciente, influenciável, crédula, acrítica”.
As mesmas características se aplicam ao funcionamento das redes, exemplo emblemático de formação de massa. Nesse caso, o mundo se divide em influenciadores e influenciados, e mesmo o psicanalista pode cair sob os encantos de se tornar o grande líder a influenciar o maior número de seguidores. O enamoramento pode se dar pelo próprio Eu e sua capacidade de mesmerizar seguidores robotizados, tal qual acontece em uma seita.
Enquanto sujeitos e participantes da cultura, nós, psicanalistas, não estamos imunes nem à sedução e nem à hipnose. O movimento psicanalítico é testemunha dos autores transformados em líderes religiosos, pregadores da palavra a ser seguida e repetida como uma prece. A “era das escolas” nos oferece incontáveis exemplos disso, amplamente analisados por autores como André Green (1974/2017) e Renato Mezan (2014). Se é próprio ao fanático não se reconhecer como tal, cabe ao psicanalista investir em autorreflexão constante sobre os caminhos que toma, questionando-se sobre sua possível dissolução em uma espécie de culto religioso.
Vende-se a psicanálise ou vem de si a psicanálise?
Um fenômeno mais recente, que merece ainda reflexão, é a presença abrangente da psicanálise nas redes sociais. Se, por um lado, elas oferecem um meio de difusão do pensamento psicanalítico, por outro, trazem o risco de transformar psicanalistas em influenciadores e a psicanálise em um produto rápido de venda e consumo.
Uma psicanálise que se propõe menos enrijecida, em diálogo com o mundo, pode tornar-se presa de um sintoma social da cultura do narcisismo, mordendo a isca da sedução midiática. Quando pacientes se fotografam ao lado de analistas, ou quando analistas publicam desenhos de pacientes ou repostam mensagens privadas de agradecimento, usando-as como espelhos narcísicos em busca de curtidas, o que isso revela sobre nosso movimento atual? Estaríamos diante de uma caricatura de algo que, de maneira mais sutil, incide extensamente em nossa prática?
A internet, como uma “terra de ninguém”, tem sido ocupada freneticamente pela necessidade imperiosa de exibir aos seguidores a própria qualidade profissional nos mais diversos campos. O jogo dos algoritmos promove à celebridade aquele que se dispõe a jogar segundo suas regras. No entanto, o trabalho psicanalítico é um território demarcado por um compromisso ético com o sofrimento, a intimidade e a subjetivação humana, que corre o risco de ser atropelado nesse cenário. Tal como uma versão contemporânea da Corrida ao Oeste, a pressa em fincar estacas nas férteis terras virtuais da visibilidade pode fazer com que nós, psicanalistas, percamos capacidade de crítica reflexiva. Quando, por exemplo, o desenho de uma criança feito em uma sessão de análise é exposto, violando seu sigilo, e comportamentos semelhantes são normalizados em nome da criação de conteúdo, a devoção narcísica pode se sobrepor à necessária entrega do analista ao submundo da loucura, que exige confiança e recolhimento.
Nesses momentos, não estaríamos entregando “o espírito da livraria” cuidadosamente construído à voracidade de uma grande rede? Essa grande rede é o que Shoshana Zuboff (2021) denomina “capitalismo de vigilância” – um sistema impulsionado pelas Big Techs para que permaneçamos cada vez mais conectados, oferecendo nossos dados em troca de reconhecimento. É pela porta do fanatismo do Eu que nos tornamos alvos desse domínio.
Quando Freud (1915/2010) escreveu “Observações sobre o amor de transferência”, conseguiu não se deixar capturar pelo olhar apaixonado das histéricas e percebeu que o encanto não se devia à pessoa do analista, mas à repetição de vivências infantis projetadas naquela relação. Uma lucidez difícil de manter quando somos constantemente observados, comentados e celebrados. A gratificação gerada por esse sistema, além de ativar nossos circuitos dopaminérgicos, segundo dizem os neurocientistas, ativa também nosso circuito narcísico, e, a isso, ninguém está imune. Somos humanos, demasiado humanos, e as redes sociais alimentam a ilusão de sermos o tempo todo admirados por nossos belos olhos, almejado retorno à devoção narcísica inicial.
O espelho virtual remete a algo muito valioso, aquele primeiro olhar que delineia nossa existência e de onde vem o amor. Espelho por meio do qual buscamos reviver as primeiras trocas significativas com o mundo e que nos traz uma sensação de asseguramento almejada a vida inteira. Ainda que ilusória, as curtidas reafirmariam que existimos para alguém, e, no limite, essa busca incessante e desesperada resultaria numa espécie de fanatismo do Eu.
O movimento psicanalítico, nascido da íntima implicação de Freud com a cultura – como atestado em diversos momentos de sua obra (1908/2011a; 1921/2011b; 1927/2011c; 1930/2011d, entre outros) –, conheceu, em fases posteriores, um certo retraimento de seu interesse quase exclusivamente ao universo do consultório. Esse relativo fechamento gerou críticas legítimas, que podem ser acompanhadas em textos de diversos autores (Broide & Broide, 2016; Danto, 2019). De um isolamento histórico, muitas vezes desimplicado dos territórios que ultrapassam os limites da sala de análise, a psicanálise parece hoje pendular para o extremo oposto: uma tendência à hiperexposição. Por um lado, isso representa uma abertura – o desejo de se posicionar, de dialogar com movimentos socioculturais e com uma variedade de dispositivos interdisciplinares contemporâneos. Por outro, levanta questões: até que ponto essa presença crescente em espaços diversos não extrapola os contornos do que é, de fato, próprio ao campo de contribuição psicanalítica? Esse limite, sabemos, não tem bordas preestabelecidas, de modo que a manutenção da pergunta é o mais próximo que podemos estar da imunidade à intransigência fanática.
De um campo historicamente elitizado e pouco plural, acessível apenas àqueles que podiam arcar com os custos das formações disponíveis, a psicanálise e seus processos formativos vêm, felizmente, se tornando mais democráticos. Esse avanço importante não deve ser confundido com a pressa ansiosa de ocupar espaços nas terras virtuais e de se autodenominar psicanalista de forma precipitada. O laborioso processo de forjar em si um psicanalista pode ser ilusoriamente encoberto pelo ritmo acelerado do crescimento viral nas redes.
O intenso fluxo de opiniões e conteúdos compartilhados nas plataformas digitais também nos impõe um desafio ético: o de não sufocar os analisandos com o excesso de presença do analista. A transferência – que requer um manejo delicado para que não se converta em adesão cega – corre o risco de ser, ainda que de forma inconsciente, instrumentalizada pela tentação de alimentar o capital narcísico e financeiro do analista. Como bem ensinou Aulagnier (1975/1979), a fome de se alienar se realiza no encontro com a vontade de alienar.
As instituições psicanalíticas oferecem dispositivos, embora falíveis, para descentralizar as transferências e pôr em questão a adesão acrítica a autores postos no lugar de líderes totêmicos. Ainda assim, não estamos imunes ao surgimento de figuras carismáticas rodeadas por seus fiéis seguidores, assim como testemunhamos na era das escolas.
Se as mídias sociais democratizaram o acesso e difusão da psicanálise, elas também podem transformar o psicanalista em uma instituição em si mesmo. Quando falamos em “instituição em si mesmo”, referimo-nos tanto ao culto à própria imagem, característico da sociedade do espetáculo e da cultura do narcisismo (Debord, 1967/1997; Lasch, 1979/1983), quanto à rentabilidade que isso pode gerar, não apenas em termos narcísicos, mas também financeiros.
Byung-Chul Han (2015) se refere ao “empresário de si mesmo”, enquanto Bauman (2008) aborda a transformação dos sujeitos em mercadoria. Nesse cenário, em que marketing e finanças podem prevalecer, a ética da psicanálise corre o risco de naufragar. Vende-se um psicanalista ou vem de si um psicanalista? O desejo de ser psicanalista é sustentado pelo saber conquistado laboriosamente na abordagem do próprio sofrimento em análise, ou é moldado fora de um divã, em um plano de carreira sobretudo em busca de dinheiro ou fama?
E nós, psicanalistas?
Adotando uma postura moralista, poderíamos nos julgar imunes a esses riscos, considerando-os incidentes apenas em grupos menos bem formados ou em pessoas especialmente vaidosas, como se esquemática e simplificadamente pudéssemos discriminar o joio do trigo. Visto dessa maneira, a crítica deste trabalho teria seu valor reduzido.
Hoje, muitos de nós fazemos uso pessoal ou profissional das redes sociais. Ao observar a dinâmica de funcionamento dessas mídias, não é difícil perceber que os conteúdos são compartilhados, em grande medida, em busca da validação. A rede social não apenas informa, faz também as vezes de uma plateia que vê, contempla, celebra um fragmento do tempo recortado e editado. Como uma mãe que aplaude o filho em seus passos, os seguidores reafirmam nosso narcisismo. O espelho virtual promete, assim, algo muito valioso, a miragem daquele primeiro olhar que delineia nossa existência e valor: reflexo que nos traz sensações buscadas a vida inteira.
Nós, psicanalistas, como todo sujeito, partilhamos dessa necessidade de espelhamento. Portanto, não estamos imunes a nos tornar presas dessa voracidade narcísica e nos afogar no reflexo luminoso das águas do fanatismo do Eu.
Quando é possível reconhecer aspectos do fanatismo em nós, podemos vislumbrar alguma saída. Aprendemos com Amós Oz (2016), que foi capaz de reconhecer em si um fanático, que “o fanatismo está em quase toda parte, e suas formas mais tranquilas, mais civilizadas estão presentes ao nosso redor e dentro de nós mesmos”.