O cérebro eletrônico comanda
Manda e desmanda
Ele é quem manda
Mas ele não anda
Só eu posso pensar que Deus existe
Só eu
Só eu posso chorar quando estou triste
Só eu
Eu cá com meus botões de carne e osso
Eu falo e ouço
Eu penso e posso
Eu posso decidir se vivo ou morro
GILBERTO GIL, “O cérebro eletrônico”
O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.
GUIMARÃES ROSA, Grande sertão: veredas
Na experiência psicanalítica estamos interessados tanto na translação na direção do que não sabemos para alguma coisa que sabemos ou que podemos comunicar, e também daquilo que sabemos e podemos comunicar para o que não sabemos e não estamos a par.
W. R. BION
Nunca vou me esquecer do momento em que, sem nenhum aviso, me dei conta de algo que, até ali, me parecia tão óbvio que não merecia um pensamento mais profundo de minha parte: o passado era uma memória do que já não mais existia e o futuro apenas um desejo ou fantasia do que poderia acontecer; dessa forma, só o presente existia. A esse pensamento se seguiu um breve alívio, logo substituído pela ideia de que nem mesmo o presente era real – pois, uma vez constatada a sua existência, ele se tornava passado. Sem os fios da memória, a ilusão de um futuro ou a certeza do presente, onde eu poderia me segurar para garantir a continuidade de minha existência?
Entrei em uma espécie de looping. A sensação era de ter perdido o equilíbrio e ter sido lançada fora do tempo, solta no vazio ou no espaço infinito. A angústia que irrompeu dentro de mim guardava relação com outra sensação de muitos anos atrás, quando estava acontecendo um momento inaugural em minha história de vida: casamento e mudança de país. Assistia ao filme 2001: uma odisseia no espaço (Kubrick, 1968) quando vi surgir na tela a imagem de um astronauta – cujo contato com a nave espacial se rompeu – flutuando no espaço infinito, distanciando-se cada vez mais da nave, tornando-se apenas um entre os milhares de pontos da imensidão do universo.
Bem mais tarde, ser analisanda e analista me fez ver a precariedade da mente humana – que, ainda depois, encontrei descrita com propriedade:
A nossa frágil organização mental é pouco mais que um instrumento rudimentar para navegar através dos mistérios infinitos desse caleidoscópio mágico, repleto de simetrias, inundado de luz e sombras, em que, perplexos, nos coube existir e que chamamos de mundo. (Chuster, 2023)
Proposição semelhante aparece em um artigo de Lia Pistiner de Cortiñas: “A humanidade está em um ponto vulnerável, com uma mente prematura, dotada e rudimentar, que ainda não adquiriu a sabedoria necessária para usá-la de um modo que preserve a vida e a evolução” (2007, p. 179).
Aproveito a palavra dotada, usada nessa citação, para lembrar que a mente que nos habita é também dotada de uma enorme potencialidade para a expansão e o desenvolvimento. Tomando-se o vértice da complexidade como método de pensamento para a observação psicanalítica, como propõem Chuster et al. (2014), seria possível pôr em simetria essas duas condições, ou seja, estabelecer uma relação dialógica, em vez de dialética, entre precariedade e potência?
“Na relação dialógica, deve observar-se mais e mais a rede de interações apresentadas, onde cada coisa se reflete em outra e se modifica no momento seguinte” (Chuster, 2023).
Talvez o modelo espectral (Chuster et al., 2014) seja o mais adequado para pensarmos a questão da precariedade e da potência, pois o conceito de tempo, seus saltos e recuos, está envolvido nas ideias que proponho aqui como assunto para uma conversa.
“O tempo é a questão essencial em todos os sistemas complexos e abertos, e naturalmente de todas as transformações ou mudanças catastróficas” (Chuster, 2023).
Deixo essas imagens e ideias soltas no espaço mental do leitor e o convido a visitar comigo uma situação acontecida em uma análise antiga.
A pessoa em análise percebera, em sessões recentes, fatores relevantes de seu distorcido funcionamento mental que paralisavam suas tentativas de conectar-se com os aspectos desenvolvidos de sua mente, travavam suas realizações pessoais e profissionais, e a faziam sentir-se fracassada, se não tinha o sucesso fantasiado, ou uma farsante, quando alcançava um êxito. A partir dessa percepção, considerada por ela como um avanço em seu desenvolvimento, a dupla analítica observou uma mudança psíquica significativa na qualidade de suas emoções, tornando evidente a percepção do uso excessivo de defesas maníacas e onipotentes que, ao se alternarem com os referidos sentimentos de fracasso e farsa, produziam um persistente estado de mal-estar consigo mesma e com a vida.
Devo dizer que essa pessoa, desde muito cedo, frequentara divãs ou poltronas de analistas de orientação teórica diversa. No nosso trabalho, vivíamos sessões muito vitalizadas. O campo analítico era rico em emoções de amplo espectro, que se manifestavam com certa liberdade e intimidade. Eu tinha parceria com uma pessoa de inteligência privilegiada, que demonstrava interesse verdadeiro pela psicanálise e pelo autoconhecimento.
Pois bem, na sessão em questão, essa pessoa começa dizendo, com muita convicção, que está pensando em interromper a análise, que seu desenvolvimento já está de bom tamanho e que não quer mais seguir adiante. Tem muito medo do que pode saber se insistir em continuar se analisando. Intui que grandes perigos estarão à sua frente – a loucura ou a queda em uma depressão profunda, da qual nunca irá se recuperar e que possivelmente a levará ao suicídio.
Conjeturo que ela imaginava que o trabalho analítico ampliaria o conhecimento de si própria de forma tão abrangente que não lhe seria possível suportar. Pondo em imagem sua fantasia de um crescimento exponencial, uso uma cena do filme citado no início deste texto: o osso atirado por um hominídeo em luta com seus semelhantes o faz descobrir que pode usá-lo como arma contra o inimigo. Essa descoberta o torna poderoso na medida em que adquire uma vantagem em relação aos demais. Agora ele sabe. Vitorioso e descolado de sua existência animal, lança o osso para o alto, e o que vemos em seguida é a transformação desse osso em uma nave espacial, carregando astronautas em seu bojo.
Mais tarde eu viria a saber que esse recurso, genialmente utilizado por Stanley Kubrick, corresponderia ao conceito de looping autopoiético – o ato de pensar propicia novos desenvolvimentos, conhecimentos e habilidades, cada vez mais complexos e sofisticados. “A complexidade gera mais complexidade e mais soluções” (Chuster, 2018, p. 28).
Talvez minha analisanda não temesse tanto o terror se tivesse levado em conta a advertência de Bion de que a “psicanálise apenas permite ver uma listra de um tigre e não o tigre inteiro” (1989, p. 122).
A analisanda em questão imaginava que, rapidamente, o maior conhecimento de si mesma produziria o estado de terror que eu própria vivi quando realizei a inexistência do passado, do futuro e até do presente, pondo-me fora do tempo e até duvidando da realidade da minha existência. O meu temor de aniquilação parece corresponder ao seu terror de desagregação ou queda no buraco negro da depressão, pela impossibilidade de ter recursos para enfrentar o novo que o conhecimento analítico lhe propiciava, impondo a necessidade de repensar a realidade do mundo à sua volta e abandonar as defesas que tinha utilizado até o momento para sobreviver.
O leitor pode estar pensando qual será meu interesse em trazer esse aparente paradoxo, com o qual a maioria dos analistas já se defrontou em seu trabalho clínico.
Em minha formação, a expressão ódio à psicanálise, ou ódio à realidade psíquica, ouvida de analistas mais experientes, a meu ver constituía uma contradição em relação ao conceito de função psicanalítica da personalidade. Em Freud, essa função levou à construção dos alicerces e da estrutura do corpo teórico da psicanálise, a partir da análise dos seus sonhos; em Klein e Bion, produziu vivências de muito sofrimento, até que lhes foi possível organizar o que observavam e intuíam em conceitos e teorias, os quais, uma vez publicados, permitiram e ainda permitem importantes acréscimos às teorias existentes e certamente levarão bem mais longe o alcance do significado dos fatos observados no mundo mental.
Cogito que a maioria de nós, analistas, foi levada, por essa função, aos institutos de formação que nos tornaram psicanalistas de pessoas às quais a mesma função segue conduzindo aos nossos consultórios. Hoje penso a questão do ódio à realidade psíquica ou ódio à psicanálise em outros termos: não se trataria de ódio, e sim de terror. A psicanálise nos fascina e nos aterroriza, na medida em que promove continuamente transformações e torna possível a mudança catastrófica.
Postulo que esse terror tem alguma relação com uma afirmação de H. P. Lovecraft, de 1926, citada por Benjamín Labatut no livro A pedra da loucura:
A coisa mais misericordiosa do mundo, acredito eu, é a incapacidade da mente humana de relacionar todos os seus conteúdos. … Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a mares negros de imensidão e não estamos destinados a viajar muito longe. As ciências, cada uma avançando em sua própria direção, pouco nos prejudicam; mas algum dia a soma de todo esse saber dissociado abrirá uma perspectiva tão aterrorizante da realidade e do lugar assombroso que ocupamos nela que ficaremos loucos por conta dessa revelação ou fugiremos da luz para a paz e a segurança de uma nova era das trevas. (2022, p. 9)
Também cogito que essa afirmação se relaciona de alguma forma com a razão de a minha analisanda ter querido interromper o trabalho analítico, que lhe proporcionava uma extensão cada vez maior do conhecimento de si mesma.
O terror do desconhecido, aumentado agora pelo assombroso desempenho do ChatGPT, levou uma centena de personalidades famosas na área da ciência e da comunicação a pedir a interrupção no desenvolvimento dos estudos da inteligência artificial. Esse chatbot, a partir da assimilação de bilhões de conteúdos interconectados, fornece dados estatísticos regulares, que, uma vez repetidos milhões de vezes, capacitam a máquina a fazer previsões e dar sequência a um texto científico, cultural, sociológico e de tudo mais que se possa imaginar. A continuidade dessa ação torna a máquina cada vez mais eficaz, produzindo textos cada vez mais sofisticados e “inteligentes”. Frente ao desempenho dessa ferramenta, a humanidade está sendo levada a novas questões – por exemplo, em que lugar estaremos quando a tecnologia tomar o nosso lugar como criadores e produtores de conhecimento?
Sendo alimentado pelo amplo conteúdo coletado em enciclopédias, dicionários, trabalhos científicos e nas mais diversas fontes, o chatbot fornece respostas complexas e produz textos coerentes sobre o que é solicitado a fazer, mas até o momento nada sabe sobre o assunto do qual está informando, nem mesmo sabe que está fazendo isso. O usuário, por sua vez, mostra-se deslumbrado pela formidável presteza da resposta, o que lhe permite economizar tempo e usá-lo em outra atividade, possibilitando mais eficiência e produtividade. Surge uma circularidade: humanos fornecem dados ao algoritmo, que os relaciona e organiza, gerando um “novo” conteúdo, o qual por sua vez será utilizado na produção de novos produtos, que serão recombinados pelos mecanismos opacos do algoritmo em “outro” conteúdo. Nessa circunstância, o método de ensaio e erro e as ideias transitórias não têm lugar na produção do conhecimento. Retroalimentado pelas teorias que o criou, o espaço propício ao nascimento do novo é tornado estéril, configurando a morte da criatividade. Nesse cenário, poderíamos sim falar em uma nova idade das trevas.
Em uma entrevista recente, Noam Chomsky (2023) disse: “Esse é o ataque mais radical ao pensamento crítico, à inteligência crítica e particularmente à ciência, que eu alguma vez vi”.
Thomas Friedman (2023), articulista do jornal O Estado de S. Paulo, afirma que “acabamos de entrar em um momento prometeico … uma inflexão e um avanço tão acentuado em relação ao que existia antes que nos obriga a mudar não apenas em um aspecto, mas em tudo”.
Em seu livro A nova idade das trevas(2019), James Bridle também alude a Prometeu, relacionando o momento atual com o mito dos dois irmãos. Epimeteu, por ser esquecido, não teve mais qualidades singulares positivas para dotar os humanos como tinha feito com as outras criaturas viventes. Assim despossuída, a humanidade precisaria lutar tenazmente para conseguir ir além da necessidade de sobreviver. Epimeteu é o retrospecto – o deus da exclusão, do apagamento e do excesso de confiança. Para reparar essa falta, Prometeu roubou o fogo e a arte dos deuses, dotando os humanos de vantagens. O poder e o artifício, tekhné, “são assim na humanidade o resultado de uma falha dupla: esquecimento e roubo”, diz Bridle. Esse fato explicaria a tendência dos humanos a encetar guerras e contendas políticas. Mais uma vez, os deuses auxiliam a humanidade através de Hermes, promovendo “as virtudes sociopolíticas do respeito pelos semelhantes e um senso de justiça” entre os homens (p. 153).
Prometeu é a “presciência, mas sem a sabedoria que poderia acompanhá-la … é o furor da descoberta científica e tecnológica, e o desejo pelo surto do futuro” (p. 153). Segundo Bridle, Hermes será o guia da nova idade das trevas. Hermes pensa o momento. Ao ser o revelador da linguagem e da fala, contempla a ambiguidade e a incerteza de tudo que existe.
Para ser mais bem compreendida, considero que devo dar a palavra ao autor:
Uma hermenêutica da tecnologia pode dar conta de seus erros percebidos ao ressaltar que a realidade nunca é tão simples, mas há sempre sentido além do sentido; que as respostas podem ser múltiplas, contestadas e potencialmente infinitas. Quando nossos algoritmos não conseguem convergir para situações ideais; quando, apesar de toda a informação à sua disposição, sistemas inteligentes não conseguem dar conta do mundo; quando a natureza fluida e mutante das identidades pessoais não dá conta de se encaixar nas fileirinhas organizadas dos bancos de dados: são esses os momentos de comunicação hermenêutica. … A complexidade não é uma situação a ser domada, mas uma lição a ser aprendida. (p. 155)
Entendo que James Bridle, atualizando a profecia lovecraftiana de 1926, nos alerta para a necessidade de pensar o mundo atual – por mais ameaçador que ele possa parecer – pelo vértice da complexidade, como forma de nos situarmos, sem recorrer à falsa segurança de volta ao passado – com suas verdades estabelecidas a partir de um saber incontestável, próprio de regimes autoritários – nem consentir em sermos tragados para um futuro no qual o deus tecnológico, com toda a sua desumanização, reina soberano. Em outras palavras, não permitir que o terror ao novo nos leve ao retrocesso, nem que a embriaguez de um futuro onisciente nos faça viver alienados da nossa condição de seres pensantes.
Intuo que é neste momento de transição que a psicanálise corre risco, por caminhar em rota de colisão com a aceleração tecnológica, mas ao mesmo tempo encontra uma grande oportunidade de mostrar sua utilidade. Creio perceber indícios de que ela terá importância fundamental neste momento de transição da era antropocênica para a era tecnológica, na medida em que seu método implica o acolhimento do novo, a tolerância à turbulência que esse novo produz, o uso da capacidade negativa como condição para esperar o surgimento de um significado que evolua para um pensamento. Dessa maneira, será possível não apenas caminhar em sentido contrário a uma regressão psíquica à idade das trevas, mas também permitir que alguma parcela da humanidade se oriente em um mundo tenebroso, guiada pela luz do pensamento, embora devamos estar advertidos de que essa é uma luz bruxuleante, e não uma chama ardente.
O vértice da complexidade aparenta ser o método mais apropriado para o trabalho psicanalítico, especialmente neste momento de transição, no qual a realidade interna parece ter saltado de seu continente, igualando-se à realidade externa. Vivemos, portanto, duplamente em mundos multifacetados, mutáveis, eivados de imprecisões, paradoxos e contradições, nos quais temporalidades diversas se cruzam em uma confusão de linguagens. Qualquer outro método, baseado em certezas, relações de causa e efeito, e enunciados assertivos e acabados, parece inapropriado para o trabalho do psicanalista.
Novamente sou empurrada para a sala de análise e para meus sonhos. Nesses espaços, encontro personagens de tempos antigos, intrometendo-se em questões atuais; personagens exóticos que falam coisas enigmáticas; lugares e pessoas bizarras; animais falantes ou que se transformam em pessoas; e toda sorte de estranhezas, situações fantásticas e outras absurdas.
Com alguma frequência – misturando-se a analisandos adultos com razoável capacidade de pensar sobre si mesmos – irrompem na sala de análise bebês não nascidos e outros que se recusam a nascer, bebês vorazes, bebês inconsoláveis que não param de choramingar, adolescentes revoltados com o establishment opressor com o qual mantêm constante luta, bárbaros com suas machadinhas prontas a ser lançadas na cabeça de alguém.
A memória me traz uma dessas pessoas, que inconformada me perguntou: “O que faço com esses personagens, como fazê-los ir embora de minha vida, como calar esse falatório constante que recrimina meus atos infantis e ao mesmo tempo me leva a agir como uma criança?”. Eu me lembro de ter respondido: “Ora! Converse com eles”.
A percepção da conversa interna realizada pelos diversos personagens no mundo mental foi representada por Bion, em forma literária, na trilogia Uma memória do futuro (1989, 1996a, 1996b). Relaciono essa obra a outra feita em linguagem cinematográfica, Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo (Kwan & Scheinert, 2022).
Não por acaso, ambas tiveram detratores na mesma medida em que foram aclamadas por sua qualidade. A trilogia de Bion, segundo Parthenope Talamo (2011), foi considerada por alguns como uma espécie de “borboleteio literário de um ancião”, e não foram poucos os analistas que abandonaram sua leitura por não conseguir compreendê-la. Por outro lado, ela é vista como fonte de verdadeiros tesouros. Sandler menciona que esses tesouros “explicitam boa parte dos vários fatos da realidade humana e de seus sofrimentos, que podem ser vistos e lidados clinicamente sob o vértice analítico”. Diz ainda que a obra “fornece uma oportunidade de ‘obter-se’ algo de uma ‘não coisa’, ou seja, da eventual frustração advinda de um estado de ‘não compreender’” (2017, p. 67).
Meg Harris Williams conta que filmar essa obra foi “uma ambição, uma aventura jamais concluída” (2013, p. 4), idealizada por um jovem psicanalista e roteirizada por um diretor de cinema. A autora, que fez parte da equipe que iniciou a filmagem, diz que o filme utilizou como “princípio estrutural o conceito de interação do tempo passado e do tempo futuro, por meio da exploração da repetição e da memória”; o cineasta não aderiu aos métodos tradicionais de narrativa, caracterização e apresentação de ponto de vista, mas se concentrou muito mais sobre “o processo de luta entre diferentes direções e dimensões dentro da própria mente, algo que não pode ficar contido num conceito unitário de personalidade” (p. 2).
A autora observa ainda que
o objetivo do filme é o de evocar as interações emocionais envolvidas no processo do pensamento e do “aprender com a experiência”. O método de apresentação é tal que imagens desde a infância se repetem em diferentes formas, entrelaçadas com fantasias moldadas por experiências posteriores, de modo a formar um drama interno. A intenção é manter uma perspectiva dupla, de eventos externos e da realidade interna. (p. 2)
Ouvi de muitas pessoas que abandonaram o cinema no meio de Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo a opinião de que se tratava de um filme “maluco e incompreensível”, e não entendiam como ele levou sete estatuetas do Oscar. Curiosamente, os jovens entenderam muito bem. Os diretores do filme parecem ter encontrado uma forma feliz de representar a simultaneidade dos mundos que atravessam a mente das pessoas. Em uma narrativa não linear e complexa, a personagem principal vive uma intensa angústia causada pelo temor de ter que fechar sua pequena empresa familiar, uma lavanderia, caso não consiga pagar a dívida atrasada com a Receita Federal. Seu sofrimento aumenta com a dificuldade de aceitar que sua única filha tenha uma relação amorosa com outra moça. Esse fato cria um sério problema de relacionamento entre mãe e filha.
Tantos problemas emocionais e práticos levam a personagem a negligenciar a relação com seu marido, que, insatisfeito, propõe um rompimento. Os estados psíquicos convocados por esse acúmulo de angústias são representados na tela como metaversos que se cruzam simultaneamente, criando no espectador o sentimento de confusão pela projeção vertiginosa de cenas de aparente nonsense, atuadas por personagens e situações bizarras, configurando um espaço sensorial caótico.
Nada muito diferente do que vemos e sentimos em uma sessão de análise, quando também somos convocados a viver com o analisando seus estados mentais psicóticos. Lançados em meio ao caos que agora também é nosso, só nos resta esperar, sem expectativa de compreensão, e num ato de fé aguardar que algo surja da “não coisa”.
Tomo como um exercício de livre associação juntar resistência à psicanálise, ChatGPT, Uma memória do futuro e Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo. Parece uma miscelânea. Mas, à medida que as ideias vão chegando, descubro alguma relação entre elas. A primeira é que todas trazem, em diferentes linguagens, um novo que provoca resistência e rejeição.
Suspeito que eu esteja tratando de reunir elementos que – nos aproximando das linguagens contemporâneas e nos fazendo mais atentos ao momento de transição do mundo no qual nos cabe viver – nos tornem mais aptos para pensar em como instrumentar com mais eficácia nosso trabalho, enquanto psicanalistas, em direção ao pensamento.
O avanço da tecnologia, agora com o advento da inteligência artificial, já nos permite uma visão do mundo que começa a existir. Estamos situados na travessia. Bion (1981) nos manda estar atentos à cesura – nem ao antes, nem ao depois. A psicanálise nos confere uma vantagem: já temos algum conhecimento sobre a dinâmica do mundo mental, o que de certa maneira nos torna familiar o indeterminado, os paradoxos, as contradições, a convivência com a atemporalidade e a atuação dos personagens no teatro interno da mente.
Recorro novamente a James Bridle. Convido os leitores a aplicar ao nosso campo de conhecimento, a psicanálise, o que ele diz em relação à tecnologia:
Não vamos e não podemos entender tudo, mas somos capazes de pensar. A capacidade de pensar sem reivindicar, ou mesmo buscar, um entendimento completo é a chave para a sobrevivência na nova idade das trevas porque, como veremos, em geral é impossível entender tudo. A tecnologia é e pode ser guia e auxiliar nesse pensamento, desde que não privilegiemos seu output: os computadores não estão aqui para nos dar respostas, mas são ferramentas para fazer perguntas. … Entender uma tecnologia de maneira profunda e sistemática geralmente nos possibilita reconstruir suas metáforas a serviço de outros modos de pensar. (2019, p. 14)
Concordo com Bridle quanto a não demonizar a tecnologia. Se as ideias que vão se delineando neste texto fazem sentido, posso me basear neste escrito para dar o exemplo de uma parceria bem-sucedida entre a tecnologia e a criatividade humana: a cibernética permitiu encontrar a linguagem cinematográfica adequada – a concepção da simultaneidade dos metaversos que se cruzam – para representar algo semelhante que, no passado, 1983, não foi possível. Meg Harris Williams – atribuiu a não conclusão do filme a razões financeiras, mas penso que talvez, naquele momento, este não tenha sido o único motivo.
Teríamos muitos outros exemplos desse bem-sucedido casamento, mas relatá-los me levaria a estender o texto e desvirtuaria a intenção de que ele contenha apenas pensamentos transitórios, propostos para uma discussão.
Não gostaria de encerrar sem voltar ao que se constitui em essência da nossa atividade, a psicanálise. Mencionei o privilégio que a aproximação ao mundo interno e seu funcionamento nos proporciona. Mas, até mesmo por essa razão, proponho estarmos atentos aos riscos a que estamos expostos, se não cuidarmos da nossa formação e da nossa prática.
Eu me refiro a um duplo risco. Primeiro, pensar que somos guardiões de um saber, assim como os homens-livros do filme Alphaville(1965), de Godard, que se organizaram em uma comunidade, vivendo isolados em Alphaville – uma sociedade distópica, caracterizada pelo ódio à liberdade, à cultura e aos valores éticos. Nessa comunidade, cada membro tornava-se responsável pela preservação das grandes obras literárias da humanidade.
“Como então preservar, não em cativeiro, a espécie ‘psicanalista’ e seu campo de descoberta?”, pergunta Franco Borgogno (2004, p. 122).
Precisamos sim conhecer bem e reconhecer a importância dos criadores das teorias psicanalíticas no ponto em que elas estão, mas não precisamos temer o novo como ameaça às verdades já estabelecidas. Essa questão, aliás, está contemplada em Uma memória do futuro, no diálogo entre Robin e Paul:
ROBIN: O todo da teoria psicanalítica parece estar viciado – como o demonstra a natureza estruturada do próprio sistema – pelo favorecimento apenas daqueles fenômenos que parecem estar de acordo com a lógica clássica, à qual já estamos familiarizados.
PAUL: Timidez é um fato da nossa natureza. Agarramo-nos a qualquer coisa que nos dê a oportunidade de dizer: “Daqui não passo”. Qualquer descoberta é seguida de um fechamento. O que permanece de nossos pensamentos e esforços é devotado a consolidar o sistema para impedir a intrusão de mais um outro pensamento. Qualquer farpa do nosso sistema que porventura pudesse facilitar o alojamento do germe de outra ideia é logo suavizada e polida. (Bion, citado por Sandler, 2017, p. 72)
O risco oposto ao isolamento e cristalização das teorias seria tomarmos a solução dos conflitos ligados às questões pulsantes da nossa sociedade em mutação como objetivo do trabalho analítico.
Nunca é demais lembrar que a psicanálise é uma prática que se dá no âmbito privado, na intimidade do encontro entre duas mentes (Fontes, 2019), visando maior proximidade ao desconhecido que pode evolver no campo emocional criado pela dupla analítica. Esse é nosso laboratório. É numa análise, a mais profunda possível, que vamos nos acercar à verdade de cada um de nós e dos nossos analisandos e ajudá-los a reconstruir novos modos de pensar a realidade. Acredito que poder viver, no consultório, a turbulência emocional convocada pelo terror ao novo, e atravessá-la, é o tipo de experiência que nos permitirá caminhar em meio à “nova idade das trevas”, capacitados para ajudar a iluminar pessoas e instituições em suas diversas atribulações.
Estar em análise permitiu meu resgate do terror e afirmar para mim mesma: “Eu existo, pelo menos neste momento”. Do mesmo modo, estar em análise permitiu que a pessoa lembrada neste texto mantivesse nosso trabalho analítico por muitos anos.
No momento não sabemos como a psicanálise sobreviverá, que ferramentas serão acrescentadas, quais desaparecerão, mas a previsão do futuro não é nossa tarefa. Se a psicanálise aponta para o que ainda não aconteceu, a nossa ação é no presente, na cesura.
“Esperanceio” que a psicanálise, como ferramenta para lidar com a dor humana, sobreviverá.
Novamente dou a palavra, desta vez final, a James Bridle:
Por fim, qualquer estratégia para viver na nova idade das trevas depende da atenção ao aqui e agora, e não às promessas ilusórias de previsão, vigilância, ideologia e representação computacional. O presente sempre está onde vivemos e pensamos, posicionado entre uma história opressora e um futuro incognoscível. … Não somos impotentes, não ficamos sem devir e não somos limitados pelas trevas. Só temos de pensar, e pensar de novo e continuar pensando. (2019, p. 285, grifo meu)

 
 









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