A jornada de psicossomática psicanalítica Da Excitação à Pulsão, promovida pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, resultou em um livro. Excelente destino para os trabalhos apresentados naquela ocasião. A publicação reúne ainda outros artigos de conhecedores desse tema, que tem despertado crescente interesse na clínica contemporânea.
Os textos referem-se aos estudos desenvolvidos pela Escola de Psicossomática de Paris. Além da revisão dos grandes conceitos da psicossomática psicanalítica, os relatos clínicos ilustram as modificações técnicas que esses atendimentos exigem, a fim de compreender um funcionamento mental em que as excitações que não podem tramitar pelo psiquismo têm no corpo e nos comportamentos a sua via de descarga.
No primeiro capítulo, Diana Tabacof apresenta um texto abrangente e profundo, no qual aborda o que ela denominou clínica da excitação. Inicialmente, mostra como trabalha um psicossomaticista, cujo enfoque está no entendimento da organização psicossomática, orientando sua compreensão para como se dá a distribuição da libido no eu do paciente, os respectivos objetos internos e externos aos quais a libido está ligada, e ainda onde foram rompidas as trajetórias pulsionais pela ação da destrutividade. Essa perspectiva determina como o analista deve intervir para que a patologia somática não seja o objeto preferencial dos interesses do paciente, despertando o seu mundo psíquico através de uma escuta sensível, que capture as manifestações nos gestos, nas expressões sensório-motrizes e nos afetos que vão se apresentar no setting. O caso clínico de Jane referenda essas considerações.
Ainda nesse texto é descrito, em minúcia, como a excitação se transforma em pulsão, incluindo nesse trajeto a importância fundamental do objeto. Esse trabalho de pulsionalização construído desde os primórdios do desenvolvimento psíquico é o que permite a ascensão ao corpo erótico. As falhas da função materna nesse processo de interação, de encontros e desencontros, vão repercutir na maneira de processar os destinos pulsionais, especialmente o duplo retorno pulsional que instala a reflexividade psíquica. Portanto, a transformação da excitação à pulsão tem, segundo a autora, uma origem exógena, pois ainda que enraizada no soma, a fonte de excitação da pulsão se torna psiquicamente ativa através da intervenção do objeto externo. O relato clínico de Cora refere-se a um processo de psiquização, em que as dores e sintomas do soma começam a se inscrever psiquicamente e passam a constituir o seu corpo pulsional.
Claude Smadja, um dos grandes expoentes da segunda geração da Escola de Paris, com sua admirável clareza e didática, num texto inédito em português, discorre sobre o salto misterioso do neural ao mental, uma questão enigmática, que envolve pesquisas em diferentes áreas. Nesse estudo, destaca aspectos da biologia, da neurobiologia e da psicanálise, estabelecendo aproximações e diferenças entre esses campos, com base em pesquisas de investigadores do tema. Sob o ponto de vista da biologia, o processo vivo está baseado na combinação de elementos, que vão se tornando cada vez mais elaborados e complexos. Essa concepção é designada de íntegron. Esse modelo integracionista baseia-se na ideia de que, durante a evolução da nossa espécie, modos de organização culturais se integraram a um conjunto de íntegrons orgânicos.
No âmbito da neurobiologia, com seus grandes avanços nas últimas décadas, o conceito de plasticidade cerebral, que diz respeito à capacidade de adaptação do cérebro às mudanças pelo aumento de conexões simpáticas, é uma fator de evolução do Homo sapiens. Outro conceito da neurobiologia é a teoria de seleção de grupos neurais, desenvolvida por Gerald Edelman, em que se apresenta uma hierarquia de mapas cerebrais que vão se tornando mais complexos.
No campo da psicanálise, Smadja traça um vasto percurso sobre o conceito de pulsão e salienta: “Para Freud, está claro que a pulsão é o fator da evolução do neural ao mental no ser humano” (p. 57). Mas ressalta a importância da linguagem como peça-chave para a passagem do neural ao mental, destacando o papel determinante da linguagem no desenvolvimento da pulsão e das representações-palavras na vida anímica.
Cândida Sé Holovko, organizadora do livro junto com Eliana Rache, no texto “Gritos do corpo no silêncio da voz: da dor somática à constituição de uma história”, apresenta um caso clínico no qual se pode observar como, através de um trabalho delicado de tecitura psíquica, se processa a transformação do padecimento do soma em vivência psíquica. Seu texto explicita a importância do investimento libidinal do analista diante de situações que remetem a traumatismos precoces e aos consequentes danos à constituição do narcisismo primário. Enfatiza a noção de histerização do sintoma somático, quando as excitações tornam-se energia psíquica e ampliam o campo do sistema representação-afeto. Nesse processo de subjetivação, em que se percebe a presença sensível da analista, o corpo que sofre pôde então tornar-se um corpo vivido como fonte de prazer.
Eliana Rache aborda uma das questões intrigantes em relação aos desfechos patológicos. Em “Uma enigmática solução: somatose ou psicose”, reflete sobre o atendimento de uma criança, considerando a organização psíquica nos seus primórdios. Ressalta o papel imprescindível da função materna e, por extensão, da dupla parental para que ocorra a libidinização do sono, uma das primeiras passagens do somático ao psíquico. Este é o “prelúdio da vida fantasmática”, de acordo com as ideias de Michel Fain e Denise Braunschweig, que descrevem a censura da amante como condição para que o bebê integre seus próprios autoerotismos. Eliana Rache transita com clareza sobre a censura da amante, conceito importante e caro ao corpo teórico da psicossomática.
“Luto, melancolia e somatização” é mais um primoroso artigo de Claude Smadja, onde se evidencia o rigor teórico desse autor. O trabalho do luto e o da melancolia foram vistos por Freud como uma reação à perda do objeto. Os psicossomaticistas consideram uma terceira possibilidade frente à perda: a somatização. Quando há um evento traumático desorganizador, após um silêncio psíquico, poderá ocorrer a manifestação de uma doença somática. Nesse sentido, a somatização é uma solução patológica comparada à melancolia. Enquanto no luto há consciência do que se perdeu e do valor da perda, na melancolia se sabe quem se perdeu, mas não o que se perdeu nesse alguém. Freud atribui esse fator ao processo de regressão que atinge o eu.
Em relação à doença somática, o autor apresenta um quadro descrito como depressão essencial, no qual há um desinvestimento libidinal tanto narcísico quanto objetal, sem manifestações psíquicas. Nesse caso, não ocorre perda de interesse no mundo externo, nem está presente o afeto doloroso, como no luto e na melancolia. Trata-se de uma sintomatologia negativa de ordem psíquica.
Smadja chama esse processo, que subjaz ao aparecimento da doença, de trabalho de somatização, que é produto de uma atividade inconsciente das pulsões de destruição no eu. Diferente da melancolia, em que se cria um novo objeto interno, quando o eu se identifica com o objeto perdido, na somatização o corpo é o sucedâneo do objeto psíquico.
O belo e poético texto de Rubens Marcelo Volich resgata, das conferências introdutórias de Freud, o caráter misto das neuroses, ponto de confluência entre as neuroses atuais e as psiconeuroses. Ao destacar o caráter inovador da Escola de Psicossomática de Paris, enfatiza a importância do ato terapêutico diante de pacientes com um funcionamento mental mais desorganizado, em que acontecem descargas somáticas e atuações comportamentais que revelam uma precariedade do universo representacional. Considera que as dimensões do ato terapêutico, especialmente com esses pacientes, envolvem nomear as manifestações aquém da palavra, subverter funções que estão regidas pelo biológico para haver ascensão ao corpo erógeno, e organizar, através da continência e da reanimação libidinal decorrente do processo transferencial, a economia psicossomática. Esse trabalho propiciaria interrupção dos movimentos regressivos e desorganizadores e abriria o caminho para a elaboração da dor.
Em “A função do objeto na regulação da economia psicossomática”, Diana Tabacof reitera a importância do objeto na constituição e no funcionamento psíquico, inserindo nesse contexto a qualidade da angústia. A condição de desamparo intrínseca ao nascimento gera uma necessidade vital do outro semelhante, responsável pela ação específica. A partir de então, ocorre a internalização dos objetos, que por sua vez têm seus próprios objetos, instalando o circuito pulsional erótico. Dessa interação surge um movimento evolutivo organizador. Quando os objetos não cumprem essa função, tornam-se fontes de destrutividade e do pulsional mortífero, acarretando perdas de qualidades psíquicas, com repercussões traumáticas e desorganizadoras.
Diante desses quadros, a função materna do analista, noção-chave da teoria e clínica em psicossomática, que está centrada nas funções de para-excitação e de agente da transformação pulsional, torna-se fundamental para possibilitar novos investimentos e a reorganização libidinal. Um caso clínico demonstra essas articulações teóricas.
O texto de Margaret Waddington Binder deixa entrever, desde o início do relato clínico, a sua presença empática e afetiva no atendimento de Rosa, nome escolhido para a paciente com a qual desenvolve a “arte da conversação”. A construção do vínculo de confiança, alicerçado em Eros, proporciona uma reorganização do funcionamento psíquico da paciente, que tinha na sua doença um ganho narcísico. Compreende essa condição a partir do paradoxo da somatização, conceito desenvolvido por Claude Smadja. Nessa longa e fértil psicoterapia, é resgatada uma vitalidade até então soterrada por dores e separações não elaboradas. A idade avançada de Rosa mostra a expansão do espectro de pacientes que podem se beneficiar de um atendimento psicanalítico.
Gley P. Costa nomeia o seu interessante percurso por autores da psicossomática de “Ouvir o silêncio”. Estuda os postulados de quatro analistas e também aponta as suas próprias articulações teórico-técnicas para abordar casos difíceis, que exigem sensibilidade clínica e adaptações da técnica para que se possa perscrutar aspectos inaudíveis do funcionamento mental. O autor apresenta um raro texto de Karen Horney de 1952, salientando o pioneirismo dessa autora ao descrever uma clínica de pacientes destituídos de consciência de seus estados emocionais.
Sobre Joyce McDougall, parte da noção de matriz do psicossoma para explanar as ideias dessa autora, que compreende a existência de conflitos arcaicos não representados subjacentes ao adoecimento do corpo. Insere como ilustração o caso de Georgette, descrito por McDougall em Teatros do corpo.
A respeito de David Maldavsky, autor cuja obra Gley P. Costa é profundo conhecedor, menciona como uma de suas principais contribuições as chamadas patologias do desvalimento, que abarcam uma clínica de amplo espectro de manifestações psíquicas, entre as quais se inserem as doenças psicossomáticas. A noção de libido intrassomática, etapa do desenvolvimento anterior à etapa oral, criada por Maldavsky, é considerada o ponto de fixação predominante das patologias psicossomáticas.
Dos estudiosos da atualidade e representante da teoria da Escola de Psicossomática de Paris, cita Diana Tabacof e a sua proposição acerca do desenvolvimento do aparelho psíquico, através da transformação das excitações em formações psíquicas, intermediadas pelo objeto. O atendimento de Luc no Instituto de Psicossomática Pierre Marty referenda a noção de função materna do analista para que ocorra a transformação de sofrimento somático em sofrimento psíquico.
O autor finaliza o texto ressaltando as semelhanças e diferenças entre as proposições desses autores, e reitera sua ideia de que é imprescindível ao paciente sentir-se registrado afetivamente para haver o resgate de sua subjetividade.
No trabalho a “Ação do masoquismo mortífero: somatização em um caso clínico”, Eliana Rache discorre sobre a força da desintrincação pulsional, expressa no corpo. Sustenta suas formulações nas ideias de Benno Rosenberg sobre o jogo pulsional e, especialmente, sobre a solução masoquista.
No seu relato, nota-se uma refinada capacidade de perceber as sutilezas de um funcionamento mental em que o protetor masoquismo erógeno não cumpre sua função de guardião da vida, quando agrega libido à pulsão de morte. Um masoquismo mortífero passa então a reger os investimentos, que são dirigidos para o sofrimento e o desprazer. A aposta da autora é na reintrincação pulsional, que poderá acontecer no processo terapêutico.
A parte final do livro é dedicada à memória de Gérard Szwec, renomado psicanalista da segunda geração da Escola de Paris, que junto com Claude Smadja concebeu o conceito de procedimentos autocalmantes.
Cândida Sé Holovko presta uma bela homenagem ao descrever a riqueza das ideias e do trabalho de Szwec. Destaca suas pesquisas com crianças e adolescentes, o desenvolvimento do conceito de procedimentos autocalmantes, e a maneira como o autor dirigiu seu interesse para situações extremas de defesa contra o desespero e o pavor oriundos de traumatismos irrepresentáveis.
“Como nascem as fantasias?” é o relato do tocante caso clínico de um menino de 3 anos atendido por Anne Maupas. A forma criativa e sensível de conduzir essa terapia conjunta mãe-criança permitiu que o mundo psíquico de Luc ganhasse espaço, dando outro destino para as excitações que se expressavam através de comportamentos descritos como autocalmantes.
O último capítulo é um texto fundamental de Gérard Szwec, traduzido e publicado pela primeira vez em português: “Procedimentos autocalmantes mediante a busca repetitiva da excitação (Os galerianos voluntários)”. Os procedimentos autocalmantes são formas de conter as excitações e visam restabelecer a calma por meio de comportamentos que utilizam especialmente a sensório-motricidade. Tais procedimentos decorrem de traumatismos precoces que impediram a constituição psíquica de defesas contra o desamparo.
Nesse artigo, no qual é descrito o famoso caso Rocky, pode-se compreender de forma clara e detalhada como foi construído e desenvolvido esse conceito, considerado hoje um dos grandes pilares teóricos da Escola de Psicossomática de Paris.
Com seus textos consistentes, este livro é de grande relevância para aprofundar o conhecimento de um campo teórico-clínico que nos instrumentaliza para os desafios da clínica atual.