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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál vol.58 no.4 São Paulo  2024  Epub 10-Mar-2025

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v58n4.15 

Resenhas

Ensaios psicanalíticos

Maria Luiza Salomão1 

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

1Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Franca

Ensaios psicanalíticos. Telles, Sérgio. Editora: Blucher, 2024. 280p.


O gênero literário ensaio foi o mais usado na escrita de Freud, com a única exceção da extensa revisão bibliográfica presente em A interpretação dos sonhos.

O ensaio contém informações, citações, reflexões pessoais com poesia e arte, conferindo um estilo. Sem exigências formais como na literatura científica, em termos de apresentação ou dissertação. O autor tem liberdade para pensar, expandir fronteiras de compreensão e estabelecer correlações pessoais sobre temas e seus argumentos.

A palavra ensaio, do latim exagium, implica a ação de pensar, experimentar, tentar (Moisés, 2012): um tipo de gênero que escapa a todas as tentativas de definição.

Nos ensaios de Sérgio Telles, há um degustar de áreas e temas, personagens de livros clássicos, e reflexões que constroem interfaces entre campos fronteiriços, como a psicanálise e áreas afins no conhecimento da alma.

Ao ler seus Ensaios psicanalíticos, foi se delineando o homem Telles e sua trajetória psicanalítica, com riqueza de associações, pensamentos clínicos, em estilo impecável – claro, preciso, norteador, de quem sabe e pe(n)sa o que sabe.

São muitos os temas que ele desenvolve, com sua verve psicanalítica. Já comprei alguns livros citados e analisados por Telles, que não me eram familiares. Um prazer de descobertas.

Como me considero pluralista no campo psicanalítico, a curiosidade me leva a autores que expandem minha sensibilidade para a complexidade da condição humana. Quase um dever de ofício desde Freud, com sua coragem de não estagnar em seus próprios conceitos, permitindo-se seguir o seu inconsciente e o dos seus pacientes, criando perspectivas originais e mutantes de compreensão, à luz da clínica.

A experiência do autor com terapia de família o faz pensar em questões que se espraiam, necessariamente, nas mentalidades dos grupos sociais, nas crenças que povoam a contemporaneidade, mas que coexistem na história da humanidade. Situa o negacionismo presente na política, com P minúsculo, sombras que obnubilam o arduamente conquistado pela ciência e pela psicanálise.

Trata com desenvoltura de temas como o racismo e as questões relacionadas aos gêneros, lembrando como é difícil abordar o hoje, o agora. Com certa distância temporal, nos aprofundamos sobre o passado, mas é complexo e difícil falar do que ainda estamos vivendo, diante de nossos olhos.

No ensaio 1, analisa um livro do Nobel de Literatura de 2019, Peter Handke, A segunda espada: uma história de maio, que trata da vingança. Faz interessantes observações acerca dos vínculos familiares, dos sentimentos intensos que nascem na família. Desliza para o estudo a respeito da ideologia do consumo – ideologia que preconiza o “novo” como bem supremo, algo valorizado em si mesmo, com desconsideração pelo “velho”, que passa a ser visto como algo a ser descartado, eliminado e trocado. Uma das consequências disso é que a cultura, que se acumula e enriquece no correr dos tempos, passa a ser desvalorizada e descartável, pois não é algo “novo”, e sim desprezivelmente “velho”, argumenta Telles. Questão cultural profundamente ligada à clínica psicanalítica.

Telles me lembrou de Eduardo Galeano, que numa entrevista ouviu um jornalista dizer que ele tinha um olho no microscópio e o outro no telescópio. Preservar a tradição para que haja inovação. Lembro-me de Winnicott, para quem nada se cria de novo se não se enraíza na tradição. A arte continuamente nos mostra essa continuidade/ruptura necessária para que haja expansão e questionamentos.

Em quase todos os ensaios, Telles percorre a obra de Freud, detendo-se em um ou outro texto, correlacionando com outros autores, complementando, opondo, aprofundando.

Usando instrumentos psicanalíticos, revisita Proust no ensaio 2 e o aproxima de Freud, mostrando como “o passado permanentemente invade o presente” (p. 20), nesse “tempo suspenso” que vivemos na sala de análise, em que fantasmas passeiam no espaço/tempo vivido pela dupla analítica.

No ensaio 3, considera o negacionismo, tema do mal-estar da sociedade contemporânea, que assombra quem está acordado para os acontecimentos, nacionais e globais. Arendt, Laplanche e André Green são revisitados. Telles tem a rara habilidade de, ao refletir o pensamento complexo desses autores, aproximá-los dos fenômenos que observamos. Ele faz trabalhar seus conceitos, tornando-os vivos e iluminadores.

Lembro que os ensaios se dirigem aos psicanalistas e ao público leigo, em trabalho imprescindível de divulgação psicanalítica na imprensa.

No ensaio 4, apresenta a família “como o espaço no qual o sujeito se constitui complexo jogo de identificações com os pais ou figuras adultas que exerçam a função materna (cuidadora) e a função paterna” (p. 39), que media a ligação com o mundo externo e o estabelecimento da lei. Situa o conceito de cripta de Abraham e Torok, relacionado com os tabus familiares, remetendo-o ao fenômeno transgeracional. Com a ajuda de outros autores, como Derrida e Rubin, e de um estudo de Tisseron a respeito do desenhista belga Hergé (autor de Tintim), revê o romance familiar, a fantasia inconsciente estudada por Freud que povoa o mundo infantil. Questiona a atuação, que pode existir caso se adotem – sem uma criteriosa investigação psicanalítica – procedimentos como a transição de gênero. Muitas vezes, o que parece uma solução para um problema complexo e inacessível ao entendimento pode se tornar um problema ainda mais complexo, se não se contemplar e compreender o que está na base dele.

No livro de Telles acompanhamos igualmente resenhas, como a do livro (que também apreciei muito) A mente do analista, de Luís Claudio Figueiredo, destacando o que este denominou escuta polifônica, em que o analista desenvolve sua escuta aberto a diferentes escolas de psicanálise.

No ensaio 6, Telles se refere ao que se diz à boca pequena, entre psicanalistas, os chamados casos difíceis. Retoma Freud nos seus casos clínicos, situando o que seria, para o autor, a função da análise e os seus limites. Ao falar dos pacientes borderline, visita o livro Ilusões e desilusões do trabalho psicanalítico, de André Green. O que, afinal, define o caso como difícil é a contratransferência do analista, diz Telles. Menciona outro autor, Braatoy, para destacar a disponibilidade do analista, fundamental para situar quem define um caso difícil. Há algum caso fácil, porventura, para algum psicanalista?

No ensaio 7, um tema ricamente analisado, com observações de Roudinesco e Derrida sobre uma melancolia geopolítica (Derrida) e revolucionária (Roudinesco). Telles reflete sobre modelos políticos inviáveis usados pela esquerda brasileira, modelos anacrônicos, que não se renovam nas lutas contra a injustiça social. Um luto social. Segue discutindo a ideologia do patriarcado no ensaio 8, considerando fatores que podem estar presentes no que chama de masculinidade tóxica, possíveis caricaturizações e distorções sobre os efeitos prejudiciais da ausência de aprofundamento sobre diferenças entre homens e mulheres, em termos de estruturas de poder.

No ensaio 9, Telles pensa a ética em psicanálise, com base em Freud, Lacan e Klein. Situa a tarefa ética no trabalho psicanalítico como aquela que favorece, possibilita, que o paciente alcance sua verdade psíquica, se reencontre com seu desejo, sua história, que atravessa gerações antes dele.

Chegamos ao ensaio 10, uma análise literária do célebre conto de Henry James “O desenho do tapete”, uma correlação entre literatura e psicanálise, apoiando-se em Derrida e Barthes. Fala do misterioso processo de criação e da possibilidade de a obra ser interpretada diferentemente do que pretendia o autor. Ofícios difíceis – o do escritor e o do psicanalista. O escritor a criar um leitor, o psicanalista a criar seu paciente (e vice-versa).

Quase na metade do livro, no ensaio 11, um tema instigante para nossos dias, o matricídio. Telles estuda o mito de Orestes utilizando a obra On matricide: myth, psychoanalysis and the law of the mother, de Amber Jacobs. No ensaio 12, fala do uso político da mentira, onipresente nas mídias sociais e nos noticiários, lembrando que esse uso sempre existiu nas relações entre os homens e nas relações de poder, em toda a história da humanidade.

No ensaio 13, somos surpreendidos com “Sofridas reflexões”, título do ensaio, em que considera a tortura e seu uso pelo Estado, e pondera também sobre o torturador, usando pressupostos psicanalíticos. Inclui um relato autobiográfico, a experiência sofrida do homem Telles, em corajosa reflexão sobre sua vivência nos anos turbulentos da ditadura militar. Uma reflexão que me tocou e imagino que tocará os leitores.

Para quem aprecia a verve de Derrida, o ensaio 14 será de grande interesse: “Derrida, uma vida extraordinária”. Alguns conceitos são destacados, sendo um dos mais conhecidos, a desconstrução, aproximado dos conceitos da psicanálise. Derrida como leitor de Freud e também como alguém que contribuiu – e contribui – para uma divulgação de valor para nossos tempos obscuros.

No ensaio 15, uma análise da importância da internet e seu uso. São apresentados autores como Alain Finkielkraut e Paul Soriano. Há uma visão crítica quanto ao que a internet favorece, indicando-se situações em que ela pode pôr em risco os valores culturais a serem preservados. No entanto, o avanço tecnológico que a internet aporta é inelutável, e segundo Soriano ela tem alcance antropológico, ao afetar toda a nossa vida “real”. Uma discussão fundamental sobre o que é virtual e o que é real.

No ensaio 16, uma contribuição à análise do texto freudiano “Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna”, de 1908. A sexualidade contemporânea apresenta questões outras que não as que Freud pensou. Telles reflete sobre o feminismo e a mudança feita pela Organização Mundial da Saúde ao retirar a homossexualidade da lista de doenças mentais, em 1973. Também considera o fato de, em 1991 (tão recente!), a Associação Psicanalítica Americana ter passado a aceitar, formalmente, candidatos homossexuais para se tornarem psicanalistas. Discorre acerca da abertura da psicanálise às mudanças culturais, mas questiona: a psicanálise se coloca atualmente, como já se posicionou em outras ocasiões, contra pressões políticas? Entre muitos autores e ideias, questiona a pouca reflexão, no vértice psicanalítico, a respeito da pornografia. E, acima de tudo, “o crescente movimento de uma religiosidade fundamentalista, com reflexos na moral sexual, que em alguns países se tornam questões de vida e morte” (p. 212).

No ensaio 17, continua esse questionamento crítico abordando a relação da psicanálise com a ideologia – a de consumo, em específico. Considera a função da publicidade em estimular o objeto de desejo, através de promessas enganadoras, mentirosas, falsas, de beleza, felicidade, sucesso sexual, afetivo, profissional, demonstrando que a publicidade está no campo oposto à psicanálise.

No ensaio 18, contempla Laplanche e seu brilhante livro Teoria da sedução generalizada e outros ensaios, e as implicações de uma visão da pulsão “como força decorrente de significantes parentais, que passam a ser os objetos-fonte da própria pulsão” (p. 231). Telles focaliza o desejo parental para pensar numa nova postura do analista ao receber em análise uma criança – na importância de avaliar a necessidade de uma terapia dos pais ou uma terapia familiar.

No ensaio 19, Telles me instigou a procurar artigos publicados por Boynton sobre Masud Khan, discípulo e analisando de Winnicott. Põe no título do ensaio dois nomes de autores, Godley e Boynton. Boynton publicou um artigo chamado “The return of the repressed: the strange case of Masud Khan”. O autor escreveu esse artigo depois de ter lido um texto de Wynne Godley, que fez análise com Khan. Boynton entrevistou outros célebres analistas analisados por Masud Khan. O central nesse ensaio é o posicionamento teórico/clínico de Telles sobre o início da vida de um bebê, segundo teorias de Winnicott e de Bion. De acordo com Telles, a grande “virada” – mostrando a importância dos pais reais como constitutivos do psiquismo do bebê.

No ensaio 20, Telles reflete sobre abusos sexuais infantis, relacionan-do-os com a teoria de sedução. Apresenta um interessante relato sobre a experiência do Mosteiro da Ressurreição, em Cuernavaca, México, em 1963, onde 60 religiosos se submeteram a uma terapia de grupo, conduzida por um casal de psicanalistas, um homem e uma mulher, da Associação Psicanalítica Internacional. Em dois anos, o abade e 40 religiosos abandonaram o hábito. Aproxima essa experiência de atitudes religiosas que podem existir dentro das próprias instituições psicanalíticas, ao elegerem deuses e dogmas. Bollas (1992/1998), um autor em que me aprofundei nos meus estudos, fala de um “genocídio intelectual” que muitas vezes é perpetrado dentro das instituições psicanalíticas. Telles associa as questões institucionais com a discussão sobre a capacidade ou a incapacidade de determinados pais exercerem as funções paterna e materna, e diz que é preciso atentar “para o complexo jogo entre realidade interna e externa, entre fantasia e acontecimento fático” (p. 251).

Fechando o conjunto dos 21 ensaios que constituem o livro, um tema princeps na psicanálise freudiana: Telles analisa as três tragédias de Sófocles em torno do mito de Édipo – Édipo rei, Édipo em Colono e Antígona. Novamente convoca Laplanche e sua teoria de sedução generalizada para considerar aspectos da sexualidade dos pais e de seus inconscientes, a fim de repensar a interpretação de Freud em relação ao chamado complexo edípico. Menciona o estudo de Assoun a respeito dos casos clínicos de Freud, em que a figura da mãe quase não aparece. Contrapõe Steiner a Lacan. Telles está interessado em refletir sobre a psicanálise e a terapia de família, com mudanças delicadas, contemporâneas, na organização familiar. Reflete sobre Werner Kemper, o qual, tendo um passado nazista, permaneceu na instituição psicanalítica (Rio de Janeiro). Cita a historiadora e psicanalista Roudinesco, com importante verbete sobre o caso.

Concordando ou não com Telles, o seu livro abre, corajosamente, um leque de questões complexas e urgentes, que convocam a comunidade psicanalítica e os leitores, nestes tempos desafiadores, em meio a fundamentalismos espúrios e versões levianas, superficiais, sobre a nossa condição humana.

Referências

Bollas, C. (1998). O genocídio intelectual. In C. Bollas, Sendo um personagem (S. M. A. Carvalho, Trad., pp. 165-167). Revinter. (Trabalho original publicado em 1992) [ Links ]

Moisés, M. (2012). A criação literária: poesia eprosa. Cultrix. [ Links ]

Maria Luiza Salomão sm-salomao@uol.com.br

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