Introdução
A experiência de desilusão é frequente na vida dos psicanalistas, tanto quanto na vida de qualquer ser humano. Surge do conflito entre expectativas otimistas – próprias do elemento narcísico de cada indivíduo – e insucessos que inevitavelmente acontecem no percurso profissional. As características da natureza humana jogam um papel decisivo na maneira como os fatos serão mais ou menos digeridos e elaborados pela mente do analista.
Pretendo discutir o assunto com base em situações por mim vividas, examinando impactos no contato com colegas, instituições e, especialmente, pacientes, gerando diversas impressões emocionais, que demandaram um trabalho de processamento. Dividirei o artigo em tópicos relativos a vivências difíceis que marcaram meu percurso. Difíceis porque indicavam certas limitações para o mister psicanalítico. Aproveitarei dados já apresentados em artigos anteriores, baseados em histórias clínicas publicadas entre 2010 e 2016.
A tônica recairá na constatação de que a análise é mesmo interminável, como Freud já apontava em 1937. Por mais que os analistas se dediquem a ciclos de reanálise – e isso é realmente recomendável –, ainda assim traços característicos de cada personalidade haverão de se infiltrar no seu trabalho.
Inveja
O sentimento de inveja me espicaçou em vários momentos. No início da carreira, depois de terminar a residência médica de psiquiatria, me dediquei a uma primeira formação em psicodrama e comecei a trabalhar em consultório, juntamente com dois colegas que me acompanhavam desde a faculdade. Eles logo tiveram sucesso, preenchendo os horários de sua agenda e obtendo ganhos financeiros expressivos, de modo a não precisar mais de nenhum emprego para se sustentar. Eu, pelo contrário, tive que trabalhar em ambulatórios e hospitais psiquiátricos durante oito anos. Lembro de sentimentos angustiantes em tardes cinzentas e chuvosas dentro da acanhada sala de consultas de um nosocômio. Eu permanecia, durante algumas horas, como o único médico do hospital, encarregado de receber as internações, que chegavam em ambulâncias lotadas de novos pacientes. Ainda mais, me cabia atender as intercorrências médicas e psiquiátricas de todos os pacientes internados, além de evoluir aqueles que ocupavam os leitos sob minha responsabilidade. Havia muitos momentos tensos nesse trabalho.
Eu pensava em relação aos meus colegas: “O que será que eles têm que eu não tenho?”. Frequentávamos o mesmo grupo de supervisão. O supervisor era o nosso modelo idealizado de competência, e meus colegas eram os jovens, desde cedo, bem-sucedidos. Eu era, talvez, uma promessa para o futuro. Às vezes, eu me consolava com a ingênua ideia de que só as pessoas mais perspicazes poderiam reconhecer o meu valor, como se eu fosse uma espécie de pérola oculta dentro de uma ostra. Penso, atualmente, que eu deveria ter rido comigo mesmo: “Para com isso, colega! Me engana que eu gosto!”. A rigor, seria necessário elaborar um ressentimento de ordem narcísica e me abrir mais para o mundo, reconhecendo as minhas questões. Com o passar do tempo, o mal-estar foi ficando mais claro. Com a ajuda da análise, foi se tornando evidente que eu era um tipo introvertido e tímido, que não caía facilmente no agrado das pessoas. Já os meus colegas tinham temperamento extrovertido, eram espontâneos e simpáticos, atraindo as pessoas com naturalidade, pois conseguiam transmitir um tom afetivo nas suas atitudes e palavras. Eu mantinha uma atitude de reserva, um jeito compatível com o que eu entendia ser a postura de neutralidade psicanalítica. A bem da verdade, era um estilo mais próximo da sisudez. A duras penas, fui aceitando a realidade de que eu não era um camarada tão fácil em termos de relacionamento. Futuramente, ainda vim a entender que eu não era e jamais poderia vir a ser uma tela branca. Particularmente na clínica, adotar o recomendável comportamento de abstinência não equivale, de maneira alguma, a ser neutro ou indiferente em relação aos analisandos.
Assassinato
Ainda com pouca experiência, atendi um rapaz que vinha com um único tema. Não se conformava com a intenção da esposa de se separar. Ela se queixava dos seus ciúmes excessivos e insistia em obter o divórcio. As sessões eram monotemáticas.
Depois de alguns meses, fui despertado certa noite pelo médico plantonista de um pronto-socorro. Ele me chamava para ver meu paciente, que lá estava após uma briga com a mulher, pelo motivo de sempre. O detalhe espantoso é que ele a havia esfaqueado e ela não resistira aos ferimentos. Fui tomado de um incômodo, mistura de medo e asco, e me arrastei penosamente até o hospital. Em contato com o paciente, o mal-estar aumentou. Ele não demonstrava nenhum sinal de arrependimento. Falava calmamente que precisava cuidar de sua defesa e para isso contava com a ajuda dos pais. Eram pessoas de posses, pois se tratava de família abastada. Rapidamente construí a hipótese de que a sua frieza indicava uma psicopatia que eu não havia diagnosticado devidamente. Até então, ele me parecia um sujeito muito conservador, um tanto depressivo, que ainda não admitia o divórcio, mas que com a psicoterapia poderia encarar a situação e tocar a vida para a frente.
Fantasias persecutórias me passaram pela cabeça. Afinal, o caso poderia gerar uma repercussão negativa, com prejuízos para o meu futuro profissional. Assim, meus pensamentos se voltavam para mim mesmo, de modo a não ter a menor condição de sintonizar com a parte sofrida de um sujeito desesperado e corroído pelos ciúmes, a ponto de chegar ao gesto extremo. Como sói acontecer em vários crimes passionais, ele não aceitava a rejeição por parte da esposa. Se ela não ficasse com ele, então não ficaria com mais ninguém. Do meu lado, eu pensava: “Quem ama não mata!”, e me sentia horrorizado, condenando o paciente e pensando que eu não conseguiria mais tratá-lo. Meus sentimentos de aversão limitariam totalmente a função de psicoterapeuta. Saindo do pronto-socorro em breve, pois só apresentava alguns ferimentos superficiais, ele seria detido e teria que se haver com a justiça.
Poucas semanas depois, ele me ligou para se despedir. Estava liberado da prisão e iria para a cidade do pai, onde prepararia a defesa com um renomado advogado, tendo em vista o seu julgamento próximo. Meu sentimento foi de alívio. De fato, nunca mais o vi, nem tive notícias suas. Minha mente suprimiu o caso por anos até o surgimento de elaborações em análise e a consequente ideia de escrever um artigo sobre situações de desconcerto na clínica. O aprendizado possível seria o de tentar empatizar com os pacientes, mesmo que discordando de suas posições e condutas. Sempre existem os limites pessoais, e não sei se eu agiria de maneira muito diferente hoje em dia, mesmo com mais experiência e traquejo. Imagino que só poderia atender um assassino se, tempos após o crime, ele tivesse algum insight, algum traço de sentimento de culpa, e revelasse disposição para refletir sobre o acontecimento. O fato é que o contato tão próximo com a crueza da destrutividade humana me impactou com severidade. O episódio tocava em leis apropriadamente estabelecidas em meu superego. O crime em questão era imperdoável.
Freud nos alertou sobre o “homem ser o lobo do próprio homem”. Em 1930 publicou a extraordinária obra O mal-estar na civilização. Ele já vinha abalado pelos horrores da guerra e pelas tristes perdas da filha Sophie e do neto Heinz. Além do mais, já havia sido diagnosticado com câncer no palato em 1923, o que acarretou 31 cirurgias ao longo dos anos seguintes. Nesse clima de pesar e pessimismo, ele se dava conta da tremenda força da pulsão de morte, afirmando que não poderia mais negar as suas evidências. Assim, pontuava ele, o ser humano é capaz de roubar, matar e estuprar, visando apenas a satisfação de seus desejos, sem nenhum tipo de freio. Enfim, em tom de ceticismo, Freud concluía que os avanços da civilização só poderiam prevalecer mediante o árduo trabalho de renúncia pulsional.
Assédio
No início da carreira fiz uma entrevista e três sessões com uma jovem que veio recomendada por uma amiga, ex-paciente minha. A jovem, muito comunicativa e bem à vontade na entrevista inicial, logo concordou, sem a mínima hesitação, com as condições de frequência e honorários. Na minha ingenuidade, pensei que se tratava de uma análise promissora. Ledo engano, decorrente da ansiedade de ver o consultório crescer. Já no segundo encontro, ela me surpreendeu, dizendo-se apaixonada por mim e pronta para iniciar um relacionamento comigo. Eu fiquei meio atrapalhado e mostrei alguma hesitação nas minhas falas. No fundo, fiquei meio balançado e algo lisonjeado com essa declaração. Uma certa dose de atração de minha parte, somada ao despontar de um componente de vaidade, prejudicou o meu discernimento e a minha capacidade analítica. No terceiro encontro, ela me falou de um tio advogado e propôs, simplesmente, que eu me divorciasse para me juntar a ela. Foi aí que eu me saí com uma bisonha interpretação, extraída de uma espécie de cartilha para analistas principiantes, afirmando que ela estava estabelecendo uma transferência de cunho paternal comigo. Disse-lhe que talvez ela estivesse me enxergando como alguém muito acolhedor e compreensivo. Era uma interpretação de cunho defensivo, mas foi o que me ocorreu na hora do aperto. Irritada, ela esbravejou, condenou a minha falta de coragem e foi-se embora, pisando duro. Assim terminou a análise.
Obviamente me faltou presença de espírito e um certo senso de humor para fazer uma intervenção mais efetiva. Aquela atração prematura e desconectada da realidade foi tão perturbadora, que acabou demonstrando a falta de um trabalho sobre minhas questões narcísicas. Afinal, dava para desconfiar que eu não era nenhum Brad Pitt da vida, que pudesse provocar instantaneamente paixões tão arrebatadoras.
O fato indubitável é que o trabalho pode nos tocar em áreas que ainda demandam um tanto de reflexão e elaboração de nossa parte.
Em seu artigo de 1914 sobre o narcisismo, Freud opinava sobre o que seria uma característica das mulheres, especialmente das mais belas. Mais do que amar, precisariam se sentir amadas. Em consequência, não suportariam a rejeição, até mesmo se partisse de alguém que elas não amavam. Talvez tenha acontecido com a paciente algo parecido: eu não poderia deixar de me encantar por ela. A observação de Freud tem um teor machista, uma vez que podemos estender a característica por ele apontada para todos os indivíduos, independentemente do gênero. Eu hesitei no meu papel de analista ao ficar mexido pela sedução da paciente. Naquele momento, eu me iludia devido a uma necessidade latente de ser admirado, e ela preenchia uma lacuna, cumprindo a função de reforço para a minha autoestima. Com isso, o objetivo central de interpretar o significado da atitude da jovem ficava em segundo plano, com prejuízo para a função analítica.
Fraude
Este é o caso de uma paciente que me surpreendeu algum tempo depois de instalada a análise. Era uma mulher muito discreta na aparência e em sua atitude no setting, que me procurou para tratar do seu relacionamento conturbado com um homem casado. Com o tempo, fui constatando que ela relatava viagens e diversos programas que, aparentemente, não eram compatíveis com seu tipo de trabalho. Tratava-se de um emprego no segundo escalão de uma empresa de médio porte.
Depois de alguns meses, meio constrangida, ela acabou por revelar que participava de um esquema fraudulento, em que a empresa se beneficiava de contratos superfaturados com uma área do governo federal. Parte dos lucros ilícitos auferidos nessa negociação – que desviava dinheiro público – ia para ela. Esclarecido o meu estranhamento anterior, me vi às voltas com um dilema ético. Como atender alguém que fraudava o Estado de maneira deliberada? Ela era alguém que, até então, me falava de como ajudava financeiramente a mãe e as irmãs, demonstrando preocupação e carinho por elas, e que me contava uma história de abusos na infância, cometidos pelo falecido pai. Creio que a revelação da conduta delituosa me causou um incômodo, que decerto deve ter sido percebido por ela. Afinal, ela era inteligente e razoavelmente sensível, o suficiente para notar o surgimento de uma dificuldade de minha parte. Tratar desse assunto implicou que ela também se detivesse em uma autocrítica, talvez prematura em certo sentido. Ou seja, quem sabe ainda faltasse disposição e coragem para se questionar com seriedade. Não demorou para ela decidir encerrar a análise.
Para mim é difícil seguir em análise com pessoas que cometem delitos consciente e deliberadamente. Não por acaso, na minha clínica tive pouquíssimas situações desse tipo. Tudo é relativo, mas me refiro a delitos que representam transgressões mais sérias, que possam ser enquadradas e classificadas na esfera criminal. Conduzir uma análise nessas condições é um problema ainda sem solução para mim. Devo admitir minha insuficiência para com esses casos, por mais que eu tenha desenvolvido a capacidade de acolhimento e tolerância.
Um aspecto a ser considerado é que o meu superego de cidadão “certinho” tenha se incomodado diante de alguém que, tranquilamente, mandava o superego às favas para fazer prevalecer seus interesses escusos. Admitindo-se o fato de que eu não seja a mais santa das criaturas, os meus impulsos transgressores podem ter sido ligeiramente ativados naquelas conversas analíticas. No caso, no entanto, a repressão continuou a funcionar de forma adequada.
Psicose
Atender pacientes psicóticos sempre foi um desafio. Creio que, de modo geral, me dei bem. Aprendi a moderar minhas expectativas com indivíduos que conseguiam ter uma vida suficientemente adaptada e produtiva quando estavam fora dos surtos. Contudo, a ação curativa da análise – reporto-me ao conceito de talking cure – é bem mais limitada em termos de alcançar um desenvolvimento da capacidade de processar emoções profundas, bem como gerar sentido para comportamentos de afastamento e distorção da realidade. Evidentemente, era imprescindível contar com retaguarda psiquiátrica para que a medicação reduzisse sintomas alucinatórios, delírios e ideias autorreferentes, de maneira a permitir uma intervenção psicoterápica e também de teor psicanalítico.
Assim mesmo, encarei momentos em que me senti meio sem ação. Um exemplo disso se deu em determinada ocasião, quando me senti pressionado a atender a vontade de uma paciente. Ela insistiu que eu conversasse com sua mãe sem a sua presença. O combinado, até então, era que eventuais contatos com familiares aconteceriam apenas com a participação da própria paciente. Acabei por acatar o desejo que ela colocou muito firmemente, talvez por insistência da mãe. A conversa com a mãe foi difícil, pois era uma pessoa que me pareceu muito perturbada. Em dado momento, ela me disse de forma indireta que minha paciente provavelmente (ou quem sabe com certeza?) era filha de um relacionamento extraconjugal, que ela mantivera no passado com um conhecido da família. Os detalhes que ela descreveu daquela situação eram bastante complicados, expondo elementos perversos, indicativos de uma conjuntura familiar de aspecto patológico.
Fiquei numa dúvida atroz sobre como lidar com a paciente, já que eu havia afirmado que repassaria para ela tudo o que fosse importante na conversa com a mãe. Por fim, optei por omitir o dado relativo a quem seria seu verdadeiro pai, a revelação do segredo sobre sua possível origem. Cheguei a questionar a sanidade mental da mãe. Lamentei tê-la recebido, em vez de manter a regra de não me comunicar com parentes, que podiam acessar o psiquiatra clínico sempre que necessário. O que pretendia aquela mãe ao me revelar um grave segredo? Será que esperava me sensibilizar para cuidar de sua filha de modo especial, como um segundo pai?
Levando em conta a fragilidade da analisanda, pensei que provocaria um ruído muito grande se eu introduzisse uma questão de tamanho potencial traumático nas nossas sessões. Tal informação desencadearia um novo tumulto em uma existência já bastante atormentada e comprometida pela psicose. O fato é que novamente experimentei a sensação de não saber bem o que fazer em uma situação clínica difícil para os mais calejados analistas. Estava mais uma vez me deparando com limitações, que corroboravam a necessidade de baixar a bola e admitir que as antigas ilusões quanto aos meus talentos representavam um equívoco derivado de um narcisismo grandioso. O episódio serviu para me relembrar a importância de controlar a emergência de traços de onipotência.
Ainda penso que tomei a melhor decisão no caso. Essa paciente, talvez desde a infância, devia ter utilizado uma defesa do tipo Verleugnung, a recusa, renegação ou desmentida, isto é, um mecanismo psíquico que implica duas realidades contraditórias coexistindo na mente, de modo a esvaziar a força de uma delas, aquela que significa entrar em contato com uma percepção intolerável. Creio que a recusa funcionava com frequência no seu dia a dia, expressando a necessidade de proteção para uma frágil estabilidade psíquica, por meio da negação de partes da realidade. Durante essa análise, cheguei a acompanhar três surtos francos com predominância de delírios persecutórios, ideação autorreferente e alucinações auditivas, compondo um quadro em que esses conteúdos se conectavam com aspectos do ambiente tóxico de seu entorno. Tratava-se, de certa maneira, de uma tentativa de dar algum sentido a uma realidade insuportável. Quanto aos surtos psicóticos, pensei no conceito cunhado por Freud com o termo Verwerfung, traduzido por repúdio, rejeição ou forclusão. A diferença entre os dois mecanismos de defesa aqui citados é destrinchada por Laplanche e Pontalis no seu Vocabulário da psicanálise (1967/1976). O meu desafio, nada simples, era trabalhar com alguém que, frequentemente, oscilava entre essas duas modalidades defensivas.
Incesto
Como psiquiatra, atendi uma adolescente logo após uma tentativa frustrada de suicídio. Uma primeira consulta foi no hospital para onde ela tinha sido levada inicialmente. A seguir ainda a vi por duas vezes no consultório, após o que ela seguiu apenas com sua análise. O ato tinha sido suficientemente controlado para não alcançar o objetivo final, sugerindo um componente histérico e teatral, o que decerto não significava que se pudesse menosprezar o sério sofrimento psíquico embutido. Passado algum tempo, ela me procurou para análise, mas a ideia não se concretizou, pois em breve iria estudar no exterior. Numa ocasião de férias, voltou a me contatar, reafirmando a intenção de, futuramente, fazer análise comigo.
Vários anos depois, já de volta ao Brasil, ela me procurou de novo e então iniciamos um processo psicanalítico. Ela relatava uma história de vida atribulada, bem como detalhava um ambiente familiar perverso. A consequência do seu quadro depressivo crônico era nada dar certo, seja na vida amorosa, seja na vida profissional. Nessas duas áreas, ela fazia escolhas que na gíria atual indicariam um assim chamado “dedo podre”.
O fato relevante é que ela estava envolvida em uma relação incestuosa com o irmão, de quem buscava se afastar, mas não conseguia fugir do assédio com que ele a cercava. De alguma forma, o assédio era sentido como uma escolha que a distinguia. Implicava sentir-se eleita como uma mulher especial, por quem ele ousava tamanha transgressão. No entanto, o sentimento de culpa sobrevinha com muita força e a maltratava. Creio que pude ser acolhedor e receptivo, mas a intensa melancolia não a deixava em paz e só se intensificava. Ela se refugiava no álcool e em drogas para tentar atenuar a forte angústia. O meu medo de machucá-la com interpretações mais incisivas me tornava um analista menos efetivo. Talvez eu tivesse, internamente, dificuldade de aceitar um caso explícito de incesto e recusa da castração sem deslizar para um viés de moralismo. O processo analítico se arrastava e começou a patinar com poucos progressos. As sessões se tornavam mais e mais pesadas. A sua carência por figuras protetoras a fez buscar uma analista mulher e, em seguida, me propor um esquema inusitado. Ela queria continuar a análise comigo e, simultaneamente, frequentar também a outra analista. Talvez estivesse buscando um casal de genitores mais saudável que o verdadeiro.
Possivelmente tomado por orgulho ferido e desgastado por um processo que não caminhava de maneira satisfatória, recusei a proposta da paciente. Em uma resposta baseada na rigidez do setting, enfatizei a necessidade de que ela se decidisse por um dos dois profissionais. Aí ela escolheu a outra analista e findou o processo comigo. De certo modo, essa interrupção foi um alívio para mim. Pensei a posteriori, anos depois, que talvez tivesse sido útil se eu pudesse ser mais flexível para experimentar a novidade por ela sugerida, pelo menos durante um tempo breve e demarcado. Não sei se funcionaria, mas quem sabe...
As reflexões a respeito desse caso aconteceram 10 anos após o término da análise, motivadas pela notícia inesperada da morte da paciente, aparentemente por suicídio. Vivenciei uma espécie de après-coup, que serviu para compreender melhor o caso. O impacto do golpe no presente propiciava a ressignificação do passado. Novas conexões surgiram. A passagem do tempo favoreceu um entendimento mais amplo dos elementos conflitantes no psiquismo da analisanda e dos aspectos contratransferenciais suscitados em mim.
Uma noção ficou mais clara. A paciente parecia um retrato vivo da descrição que Freud (1917/1974b) fez da melancolia. Um inclemente sentimento de culpa não lhe dava trégua e gerava contínuas autorrecriminações, com que ela se mortificava cada vez mais. Expressava sua dor, dizendo que se sentia podre. O intenso quadro melancólico me atingia de tal maneira, que eu me sentia sugado para dentro do buraco depressivo em que ela estava instalada. Ir para o fundo do poço com ela não produzia nada de frutífero. Por conseguinte, eu ficava invadido pela impotência, decorrente da culpa de não conseguir ajudá-la. Em parte, escrever um artigo sobre o caso serviu também como elaboração do mal-estar por não ter podido desviá-la do destino fatal que se delineava desde cedo e acabou, finalmente, por se concretizar. Maktub é a palavra em árabe que significa “já estava escrito” ou “tinha que acontecer”.
Ingratidão
Tomo a história de uma análise que durou quase 20 anos, com uma interrupção no meio. O paciente sofria por não aceitar sua orientação homossexual, reprimindo-se por muito tempo nesse aspecto. Ele vivia descontente com o trabalho, os clientes, os chefes, os colegas e também com os familiares e amigos. Estava sempre infeliz, e as sessões eram marcadas por lamúrias e queixas. Havia uma dinâmica paranoide, segundo a qual ele se considerava um injustiçado pela vida e, consequentemente, merecedor de todo tipo de indenização por parte dos outros, que deveriam lhe oferecer condições mais favoráveis em todas as áreas pelas quais transitava. Esperava muito dos outros, mas não pensava em oferecer nada para ninguém.
Ansiava por uma justa compensação pelos problemas que experimentara desde a infância. Recordava especialmente a questão da homossexualidade incipiente, que o tornara alvo de chacotas por parte dos colegas de escola, implacáveis na cruel conduta de bullying. O medo do julgamento alheio o perseguia desde então, de modo a esforçar-se por esconder informações de sua vida pessoal. Considerava a homossexualidade uma legítima desgraça, uma infelicidade que se abatera sobre ele.
É claro que o analista era objeto de expectativas, devendo lhe oferecer palavras de apoio e sugestões eficazes para seus problemas. Só que o paciente pouco fazia para ir atrás de soluções. Detestava o seu trabalho, mas não se mobilizava para mudar de área. Não se dispunha a um relacionamento afetivo para valer. Dada a sua ambivalência no campo afetivo, permanecia numa espécie de limbo extremamente frustrante. Imaginava poder levar a vida como se fosse um ser assexuado, algo que se revelou inviável na prática. Apenas nos últimos tempos do processo analítico ele pôde se aventurar mais em encontros sexuais, antes quase proibidos.
Sempre preocupado em poupar dinheiro para a velhice solitária que o assombrava, relutava em aceitar reajustes dos honorários, entendidos quase como um verdadeiro ataque à sua pessoa. Eu diria que era um indivíduo com um acentuado traço de avareza, que tornava a vida carente de momentos felizes, uma vez que não se permitia gratificações de nenhuma espécie. Tinha grande dificuldade em acatar interpretações transferenciais, preferindo manter a sua habitual ladainha de queixas e acusações contra o mundo que o cercava.
Um episódio marcante dessa análise ocorreu numa determinada manhã em que ele seria meu primeiro paciente. Cheguei cedo ao consultório, que compartilhava com outros colegas. A secretária não havia chegado ainda, de modo que eu fui abrir a casa. Nesse instante, fui abordado por dois bandidos armados, que me levaram em um sequestro-relâmpago. Tomaram meus cartões, sacaram dinheiro do caixa eletrônico e pegaram meu relógio e o dinheiro vivo que estava comigo para pagar um serviço daquele dia. Irritados porque, muito nervoso, eu não me lembrava da senha de um dos bancos, estavam deliberando se me levariam para a “favela”, ameaça que significava exigir um resgate para me libertar. A essa altura, eu estava bem assustado. No entanto, algo aconteceu após uma conversa por celular com um comparsa. Os planos mudaram, e eles fugiram, deixando-me em meu carro, com o qual estávamos circulando por cerca de 30 longos minutos. Voltei para o consultório muito perturbado, pensando em providências práticas como bloquear os cartões junto aos bancos. Encontrei o paciente à minha espera. Expliquei a situação, pedindo para remarcar a sessão para outro dia, pois eu não estava em condições de trabalhar naquele momento. A sua reação foi de desagrado, como se eu tivesse a obrigação de atendê-lo, não importando a natureza do episódio que eu lhe relatara do sequestro-relâmpago. Entendi que aquilo era uma marca de sua pouca consideração para com os outros. Lembro que, ao contrário da maioria dos pacientes, ele nunca agradecia pelo trabalho desenvolvido. Especialmente nas despedidas de fim de ano, é comum que os analisandos demonstrem gratidão de alguma forma e façam votos de boas-festas e feliz ano novo. Isso não parecia passar pela cabeça dele. Eu estava lá para exercer uma função profissional a seu serviço, ele me pagava, e assim estava tudo certo.
Ao longo dos anos, esse comportamento de ingratidão foi, de alguma forma, minando a minha disponibilidade para com ele. Essa situação se acentuou durante a pandemia. Ele não se conformava com o atendimento online, que eu considerava necessário. Não quis fazer uma exceção para ele num período em que o distanciamento social ainda era recomendado. Isso acabou por levar ao término da análise. Ele já falava em procurar um analista mais jovem, alguém que lhe infundisse doses maiores de energia e ânimo. Era uma forma de me depreciar como analista velho e cansado, vingando-se da minha opção pelo atendimento remoto, tomada como falta de amor por ele. Contudo, era verdade que o meu estoque de interpretações para ele talvez já estivesse se esgotando. Diante dos fatos que continuavam a se reproduzir interminavelmente em sua vida, eu também acabava por me repetir nas minhas intervenções verbais. Fui vencido pela compulsão à repetição, que tomava conta da nossa dupla, impedindo o surgimento de ideias mais frescas. Os vários anos em que o paciente não demonstrava gratidão, persistindo na atitude de exigir sempre mais de mim, acabaram acarretando um decréscimo da potência necessária para conter e processar as suas angústias.
Ressalte-se que, durante alguns anos, eu era visto por ele como um representante do grupo de homens privilegiados e vencedores, aqueles que não tiveram o azar de desejar fazer sexo com outros homens e, ainda mais, pareciam satisfeitos com a sua carreira profissional. Dessa maneira, na visão dele, eu pertencia ao time dos que estavam de bem com a vida. As sessões seguiam com um padrão de repetição sem fim, sempre temperadas em um caldo de inveja, sentimento que se opõe à gratidão, como bem descrito por Klein (1957/1991). Depois de vários anos, eu não dispunha mais de um acervo renovado de interpretações suficientemente úteis para ajudá-lo a promover uma expansão de ideias.
Nos últimos tempos, no entanto, algo mudou. Ele parecia ter um gosto especial em contar detalhes de seus encontros sexuais, enfatizando o enorme prazer que experimentava. Havia um quê de triunfo exibicionista na sua fala. Era uma forma de espezinhar o pobre do analista, rebaixado à condição de mero heterossexual, muito provavelmente restrito a uma modesta relação monogâmica, que não alcançaria jamais o patamar do gozo que ele, enfim, desfrutava.
Esse é mais um exemplo das repercussões emocionais que as condutas de pacientes provocam no analista. Não somos indivíduos neutros nem indiferentes. Temos limitações que podem se traduzir no trabalho. Resta sempre tentar aprender a partir dessas experiências. A psicanálise não é uma panaceia universal, que vá funcionar em todos os casos. Do meu lado, aprendi que não sou o melhor analista para todo tipo de analisando. Reconheço que outros analistas podem se dar melhor com certos pacientes.
Comentários finais
Essas situações clínicas demonstram momentos em que o analista titubeia, se atrapalha, fica inibido ou com medo, ou então não sabe bem o que dizer. Às vezes não avança quando seria necessário avançar com uma atitude mais incisiva. Às vezes avança demais. Às vezes diz o que não deveria, porque o paciente ainda não está disposto a acessar aspectos ocultos nos subterrâneos da mente. De qualquer modo, creio que é melhor tentar intervenções mais agudas sempre que uma impressão suscitada pela fala do paciente produz uma associação que se reveste de muita força. Em geral, vale mais a pena tentar dizer algo que faça sentido e possa clarear uma situação do que calar-se à espera de que a passagem do tempo, porventura, venha a apresentar condições supostamente mais apropriadas para tratar de determinado tema. Devemos reconhecer que as falhas não são tão raras e, quando percebidas e pensadas, nos ajudam a aprender com essas experiências.
Os casos difíceis e as situações complicadas são o que mais me motiva a escrever. O ato de escrever me possibilitou tirar proveito dessas vivências, obtendo o benefício de ampliar a compreensão de conflitos intrapsíquicos e relacionais e – em consequência – cuidar de minhas próprias feridas narcísicas. Seria algo como “tornar proveitoso um mau negócio”, no dizer de Bion (Zimerman, 2004). É importante assinalar o valor da escrita da clínica no intuito de favorecer importantes trocas no intercâmbio com os colegas.
Pensar a posteriori acarreta reflexões úteis no sentido de relativizar os sentimentos de pesar pelos nossos próprios erros ou omissões. Isso ajuda a formar um repertório mental mais amplo e diversificado para continuar na labuta. Escrever sobre os casos difíceis tem, inclusive, me ajudado a fortalecer a confiança de que eu posso, de fato, oferecer algo de adequado para os meus analisandos. Quando o vínculo analítico é suficientemente firme, o paciente há de tolerar possíveis enganos do analista, pois o retrospecto da análise demonstra que existe um processo profícuo, com predomínio do desenvolvimento da capacidade de pensar. Constata-se, então, que os aspectos positivos suplantam os momentos de desencontro da dupla. Vale sempre manter a atitude de reserva, preservando a necessária abstinência. Isso significa evitar o impulso de querer compensar o paciente com alguma gratificação movida pelo inconsciente, tentação que surge após uma eventual falha de nossa parte.
Tenho me balizado a partir de uma ideia de Ogden (2004), que assinala uma sutil e importante distinção entre o holding de Winnicott e a ideia de continente-contido de Bion, conceitos que frequentemente são confundidos e tomados um pelo outro. A oferta de holding significa sustentar o paciente e propiciar a noção de que ele é um sujeito, que portanto pode continuar sendo/existindo ao longo da vida. Por outro lado, a noção de continência se refere a uma condição de processamento das emoções trazidas para a análise, com a produção de sentidos, de modo a proporcionar simbolização e expansão do universo mental do paciente. Assim, julgo que não basta somente o aspecto do sustentar, próprio do holding. É preciso acrescentar o processamento, característico da continência. Para esse fim, é necessário ousar mais, buscando interpretações mais amplas e profundas, mesmo que correndo o risco de incomodar os pacientes. Afinal, a análise não pode ser feita só de momentos leves, agradáveis ou neutros. Sempre haverá um custo emocional no processo. Por outro lado, considero que deva existir também lugar para o humor, um dom precioso e raro, como dizia Freud (1927/1974a), que no meu entender é uma ferramenta útil em diversos instantes. O humor serve, se bem utilizado, para provocar oportunas rupturas de campo, contribuindo para denunciar rigidez de pensamento, apontar contradições e revelar estreitamento mental. Serve ainda para relativizar a dor e o sofrimento, abrindo espaço para esperanças realistas.
O ato psicanalítico de alcançar o inconsciente, segundo Laplanche (2006/2015), funciona por meio da promoção de desligamento de aspectos introjetados e cristalizados. O acesso ao inconsciente vai causar o aparecimento de material que necessita de um trabalho de historização por parte do par analítico. A maior parte do processo psicanalítico é empregada para dar forma e história àquilo que brota dos atos psicanalíticos, caracterizando então o procedimento da psicoterapia. Para Laplanche, no atendimento das neuroses, a psicanálise e a psicoterapia convivem, e essa última ocupa grande parte dos atendimentos.
A análise é interminável e engloba a elaboração da posição depressiva, que persiste ao longo de toda a vida e segue entrelaçada com o trabalho da questão do Édipo. Portanto, cabe sempre pensar em reanálises. Os objetos de nosso desejo, por mais que os idealizemos, não estarão todos disponíveis sempre que quisermos. Alguns serão interditados, e teremos que lidar com as inevitáveis castrações e a impossibilidade de plenitude total. O narcisismo bem trabalhado implica a aceitação de limites, a aquisição de um senso de humor que nos permita rir de nós mesmos, bem como a internalização da noção de finitude. São as características do percurso para atingir um patamar de relativa sabedoria (Kohut, 1966/1984).
Em várias das situações de dificuldade aqui apresentadas, eu estava às voltas com um contexto psíquico caracterizado pelo desejo de alcançar o inalcançável, ou seja, perseguir a posição do eu ideal – uma vã ambição. Os eventuais fracassos acarretam a inexorável perda das ilusões grandiosas, que precisamos continuamente refrear para não cair no engodo da onipotência.













