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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.16 no.30 Barbacena jul./dez. 2024  Epub 16-Dez-2024

https://doi.org/10.5935/1679-4427.v16n29.0002 

ENSAIO

TRANSBORDANDO POSSIBILIDADES: PESSOAS TRANS, SAÚDE MENTAL E O DIREITO DE SERMOS HUMANIZADOS

Joane Victória Viana Bastos1 
http://orcid.org/0000.0003.3542.9029

1Pedagoga, educadora social em saúde, afrotransfeminista, Gerente do Centro de Convivência e Cultura de Carangola – MG. Consultora de Gênero Sexualidades e Relações Étnico-Raciais. contatojoanebastos@gmail.com. ORCID 0000.0003.3542.9029


Ancestravas Matriarcas de muitas nações esse corpo ancestral nunca precisou de aval para existir...

Permitam-me (re)demarcar corpos, corpos estes historicamente subjugados e voluntariamente coisificados pela cisnorma, por não corresponder às normas hegemônicas de gênero e sexualidades. Refiro-me a corpos de pessoas trans, mulheres trans/travestis, homens trans e pessoas intersexo (erroneamente ditas hermafroditas). Em outro ensaio, intitulado Muito Prazer, mergulho em nomes históricos para conhecermos outras transgeneridades e travestilidades.

Para iniciar esse diálogo, é de extrema importância compreendermos que pessoas trans não são uma “invenção da modernidade”, tampouco um mero “grupo identitário”, forma pejorativa agenciada por diversos grupos políticos, sejam eles de matrizes conservadoras, sejam progressistas da sociedade. Estamos falando de seres humanos que, desde que este mundo é “mundo”, enfrentam obstáculos para sobreviver em meio a tantos povos, culturas e “civilizações” que partem de estruturas patriarcais, binaristas e eugenistas.

No jogo da vida, quem controla ou quais forças ideológicas tentam nos “domesticar”, “coisificar” e nomear aqueles ou aquilo que se considera “normal”? Afinal, o que é possível ou impossível de se categorizar como “anormais”? Para quais interesses tentam cercear nossas vozes ou amplificá-las?! Quais ganhos capitais existem nas “jogatinas” dos corpos dissidentes das normas? Em quais leilões estamos em oferta, no atacado ou no varejo?! Será que estamos na moda?! Será tendência do momento?! Ora, quanta mediocridade a cisgeneridade faz com nossas vidas ... Que pecado! Querem ir para o céu ... Mas que céu é este?! Nossa Senhora das Travestis que nos proteja!

Atrevo-me a desassombrar as limitações fechadas por olhos que insistem em enxergar apenas bolhas estáticas ciscentralizadas. Evoco Favero (2020), que lança um brilho transdisciplinar pela ciência da psicologia social e rompe estacas moralizantes e mirabolantes a respeito de infâncias trans. Nessa leva, posso respirar um pouco melhor e, em pequena medida, “aliviada”, uma vez não tive o direito de viver uma infância livre dos vigilantes de gêneros e sexualidades alheias.

Saber que outras infâncias possíveis poderão sonhar e viver como elas mesmas, traz-me uma esperança ativa, atenta, de faro fino, os olhos vivos e flamejantes. Sem muito romance, consciente de que, na prática, vivenciamos romances trágicos e exceções a regras, pessoas trans ainda são lidas pelo imaginário do senso comum como se fôssemos um “fenômeno” em idade adulta na sua existência; entretanto, nos estudos de Favero potencializadores, destrinchase e desmontam-se determinismos biologicistas discursivos e patologizantes sobre nós, UFA!

MEU CORPO VEGETA BUSCANDO UM LAR PORQUE VOCÊS JÁ TRUCIDARAM MINHA MENTE EM POSSÍVEIS FORMAS DE SONHAR!

É possível afirmar que as violações de direitos sofridas por pessoas trans têm início na tenra infância, quando as instituições Estado, religião e família cortam nossas asas pelas raízes, assassinando assim nossas subjetividades, quem somos ou podemos ser, livremente. Felizmente, as pessoas trans começam a ganhar força e visibilidade a partir da organização e de insurgências políticas, como nos faz conhecer PASSOS (2022), em Pedagogia das Travestilidades. Posso constatar, a partir de experiência pessoal em diálogo com a literatura exploratória e investigativa de Passos que, se antes, durante e depois da Ditadura Civil Militar, nos caçaram para nos matar, a exemplo de uma “inquisição moderna”, ainda em tempos atuais, a transfobia se apresentada em várias facetas; uma delas é a “transfobia repaginada”. Aqui, classifico uma forma de transfobia que não nos mata “logo na entrada”, mas um tipo que vai “minando” nossa saúde mental aos poucos, nos matando lentamente até a saída. Esse tipo se apresenta, por exemplo, em forma de sabotagens institucionais no trabalho, seja por reprovações formais e informais, por motivos torpes, processos seletivos classificatórios e ainda, em ambientes de sociabilidades comuns, como bares, festas da firma, congregações religiosas ditas inclusivas e afins.

As pessoas nos observam, nos encaram com olhares de reprovação, repulsa ou até como “colegagem” ou camaradagem forçada. Se a pessoa trans apresenta-se como militante, instruída, bem posicionada com empoderamento pessoal porque conseguiu sobreviver aos preconceitos e discriminações, se consegue o acesso a bens culturais, passou, de qualquer forma, por escolarização violenta, carregada de noções distorcidas e estigmas: violências psicológica, patrimonial, assédio moral, sexual, piadas e chacotas, as violações transfóbicas permanecem presentes, em nuances sutis e cordiais. As violências chegam às mais descaradas e disfarçadas em brincadeiras, como toque no corpo sem autorização e nas partes íntimas, até outras formas de opressão relacionadas para além das questões de gênero, raça, classe, entre outros demarcadores sociais.

Um constrangimento dos mais absurdos é a pergunta frequente quanto ao nosso nome “de verdade”. Querem saber que nomes as pessoas trans receberam de batismo e, por não correspondermos às expectativas convencionais de “meninos vestem azul e meninas vestem rosa” somos assujeitadas à violência psicológica dos constrangimentos por parte de pessoas cisgêneras curiosas, no mais das vezes maliciosas. E então nos perguntamos: até onde vai o limite do eu com o outro, que é diferente de mim? São muitas as questões...

Em “Pajúbá – Terapia: ensaios sobre a cisnorma” (2020:29), Favero relata: “Sou extremamente afetada e afetiva. Laysa foi morta em uma noite de quinta-feira. Em sua lápide, a família escreveu o nome de registro masculino. Não queriam sequer que ela fosse enterrada com o nome que adotou para si mesma. Como é que a psicologia está amarrada a tantos protocolos repulsivos, que visam a decretar se o paciente é homem ou mulher, verdadeiro ou falso, quando o desafio enfrentado pelas pessoas trans brasileiras está relacionado à continuidade de suas existências? Estamos cegos pela busca por uma evidência do gênero quando a transfobia tem deixado à mostra uma nação intolerante com a diferença”. Perceba como, mesmo a família, após a morte de uma pessoa trans, não respeita a sua autodeterminação social. Sua identidade de gênero é negada violentamente, quando ela não pode mais colocar-se nesse mundo. Quem permite e defende sermos enterradas com dignidade e paz?!

Recordo-me de um assédio transfóbico que sofri na minha graduação, por parte de um professor da velha guarda da instituição – um profissional da saúde, psicólogo. Ele me chamou no individual e me questionou sobre o meu nome morto, na chamada, de quando eu tinha sido registrada. Fiquei sem reação a partir da postura pré-histórica, absurdamente antiética daquele canalha que fez com que minha saúde mental fosse ao chão, ao ponto de necessitar ir em um hospital, onde tomei soro e injeção dolorosa na veia; aquele agravo me afetou profundamente. E vejam bem: eu já tinha me apresentado a todos os professores do departamento de ciências humanas para comunicar que eu já tinha buscado meus direitos para o uso do meu nome social.

Favero (2020) deságua sobre um ocorrido parecido ao meu... “Ele chamou meu nome. Várias e várias vezes. Chamou, então, meu nome completo. Algumas pessoas olhavam para mim. Sabiam que “Favero” era meu sobrenome. Olhavam como se estivessem se perguntando: afinal, ela vai ou não levantar para pegar a prova? Decidi ficar olhando para baixo. Mexia meu lápis e minha caneta. Nesse momento, lembro-me de refletir sobre o valor daquilo tudo. Vale a pena investir em uma psicologia tão desconectada de outras travestis? Até que ponto eu irei aguentar esse tipo de humilhação? Estão fazendo por querer? É um total desconhecimento sobre a importância do nome para nós, pessoas trans? Quero sumir daqui. Quero apagar essas luzes. Quero mostrá-los que, quando eles dizem que vieram para cá para ajudar os outros, eles não estavam falando sobre pessoas iguais a mim. Pelo contrário.”

O que se coloca é, em suma, que não queremos ser aceitos ou aceitas! Exigimos apenas o respeito que se deve a qualquer pessoa, direito básico! Muitas vezes me bate o medo de precisar ser internada em algum hospital e, em estado de vulnerabilidade clínica, ter que passar ainda por transfobia dentro daquele espaço que, teoricamente, cuida das pessoas. É aterrorizante imaginar essa situação, me dá angústia só de pensar.

CONTRADITORIEDADES: GARGALO E CONTA QUE NÃO /FECHAM...

Infelizmente são ainda frequentes na nossa sociedade as associações estereotipadas e vexatórias contra pessoas trans, devidas à força midiática televisiva, sensacionalista e alienante, que reforça sobre nós o julgamento de “exótico”, curioso, um fetiche. Dessa forma pessoas trans têm sido construídas e julgadas, desde a travesti criminosa, prostituta (como forma pejorativa), ladra, sujeita de quinta categoria quiçá gente, até a pessoa trans hipersexualizada, bonita, sedutora, atraente, “arrasadora de quarteirões”, ala Roberta Close e Tarso Brant. Gomes de Jesus (2021, p. 25) explica: “É parte do dispositivo da cisnormatividade adoecer as pessoas trans ao localizar as suas demandas por reconhecimento social e legal enquanto “invenção”, “loucura” ou “bobagem”. A transfobia, assim, é um dos sintomas dessa cisnorma, expressão cotidiana desse estereótipo, como se a “cura” dessa “doença”somente se desse pelo bisturi ou pela faca”.

A ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) enfatiza que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo pelo 15º ano consecutivo! É o mesmo país que elegeu Erika Hilton como a primeira Deputada Federal negra e trans. Em São Paulo, ela foi a Vereadora mais votada do país em 2020, com 256.903 votos! Fato tão extraordinário quanto contraditório! Assim como a informação de que somos o país que mais consome pornografia com transexuais. Ainda segundo dados da ANTRA, no total de homicídios de pessoas trans, 72% das vítimas eram negras. Vemos assim a reincidência de recortes dos corpos trans, considerando como operam as opressões da transfobia e racismo, observamos tais fatos através da interseccionalidade como ferramenta de análise.

É importante salientar que no grupo de pessoas trans temos diferenças ideológicas e étnicas: somos pessoas indígenas, negras, PCDIs (Pessoas com Deficiência Física, Mental, Intelectual e Sensorial), quilombolas, trabalhadores rurais, musicistas, cientistas, professores, médicos, entre outros. Como pode um país como o Brasil pisotear nosso sangue, valer-se dos nossos corpos e, ao mesmo tempo, nos eleger nas câmaras legislativas?! Estamos virando algumas chaves e arrombando alguns portais sem pedir licença! A conta não fecha!

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SEM /FINAIS ...

Necessitamos de profissionais da saúde que passem por formação qualificada para poderem atuar a partir de uma ética comprometida com o acolhimento humanizado, na educação permanente e em um comprometimento de serem citados nos trabalhos autores pessoas trans que possam narrar suas histórias, menos como sujeitos de pesquisas e mais como autores de suas próprias narrativas, com agendas norteadas por um transfeminismo libertário. Que também possamos apresentar nossas histórias de “volta por cima”, uma vez que as voltas por baixo já são conhecidas nas mazelas das esquinas.

A professora Megg Rayara Gomes de Oliveira (2020) nos dá algumas pistas sobre como podemos compreender os degradês culturais, históricos e antropológicos, bem como encampar lutas contra a transfobia e o racismo. Ser pessoa trans no Brasil é uma labuta cotidiana; nem uma situação social mais privilegiada nos exime do sofrimento da opressão da transfobia, imaginem o que sofre pessoas sem qualquer privilégio social, trabalhadores menos qualificados, mulheres, gordas, negras, pessoas PCDIs, neuroatípicas e outras menos privilegiadas.

Será que não “cai a ficha” de vocês, pessoas cis, para a realidade de que essa parte intolerante da sociedade cisnormativa, adoecida por transfobia, assim agindo coloca todos em risco? Uma vez que tentam e insistem em arrancar nossa humanidade, a humanidade de vocês também corre risco! Se vocês se calam perante a barbárie da transfobia, esse adoecimento transfóbico social se alastra e reverbera sobre todos – pessoas cis ou trans. É tempo de se refletir sobre ser uma pessoa cisgênera crítica ou acrítica! A conta chega! Despeço-me desaguando bálsamos de lutas, consternação e incômodos no ar. Por uma ética afetiva, comprometida com a diferença e que celebre a pluridiversidade humana. Saúde integral para nós também é um direito! Não ao suicidamento de nossos corpos pelas pressões das transfobias e suas opressões!

Lutem conosco!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Associação Nacional de Travestis e Transexuais: Disponível em <Associação Nacional de Travestis e Transexuais – A Maior Rede de Pessoas Trans do Brasil (https://antrabrasil.org)> [ Links ]

Bastos, J. V. V. (2021). Muito Prazer. p. 12 Presença Ativa Educafro Minas, Ano XVIII, n. 45, Jan-Jul. Disponível em: <Boletim Presença Ativa | Educafro Minas> [ Links ]

Favero, S. (2020). Pájubá-terapia: ensaios sobre a cisnorma. Nemesis Editora. [ Links ]

Favero, S. (2020). Crianças trans: infâncias possíveis. Devires. [ Links ]

Gomes de Jesus, J. (2021). Saúde mental da população trans: apontar a cisnormatividade para interseccionalizar os corpos. In: Cunha, N. (org.). O Enfrentamento dos efeitos do racismo, cissexismo e transfobia na saúde mental. Dandara. [ Links ]

Oliveira, M. R. G. (2020). Nem ao centro, nem à margem! Corpos que escapam às normas de raça e de gênero. Devires. [ Links ]

Passos, M. C. A. (2022). Pedagogia das travestilidades. Civilização Brasileira. [ Links ]

Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em <Deputada Federal Erika Hilton – Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br)> [ Links ]

Tupinambá, A. (2022). Ancestravas. Composição: Ayô Tupinambá e Nanda Dias Disponível em: <Youtube: Ancestravas – Ayô Tupinambá (Visualizer) (youtube.com)> [ Links ]

Saúde Integral de Pessoas Trans e Travestis no SUS: avanços e desafios. Webnário realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) Disponível em: <https://youtu.be/1jJOQTv8hNU> [ Links ]

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