Risos em tempos sombrios
Entre a dor, o amor e a esperança
Eram 8 horas da manhã quando ouvi uma explosão. Levei um susto! Não sabia o que estava acontecendo. Meu companheiro disse que eram pesadelos e que voltasse a dormir, mas logo em seguida ele viu que a guerra tinha começado. A Ucrânia estava em guerra e eu grávida de cinco meses. A solução era eu ir para a fronteira com as crianças e esperar. Então alugamos um apartamento e durante 15 dias olhava para as crianças e para a fronteira… Eu não queria sair, tínhamos tudo na minha terra mãe. Um dia acordamos com bombardeio e saímos com duas malas. Andamos 30 quilômetros. Começou em fevereiro e continua até agora. Toda noite penso como quero voltar para casa, mas as bombas não cessam.
Essas foram as primeiras palavras de nossa paciente ucraniana atendida na Clínica Transcultural da SBPSP,3 uma clínica extensa, que, como aponta Fabio Herrmann (2003), está inserida no mundo real, pensa as múltiplas condições do ser humano no mundo, preservando as condições para um encontro de intimidade em que observações psicanalíticas sejam possíveis.
As situações de guerras, abalos sísmicos, campos de concentração, ditaduras, migrações forçadas, polarizações políticas, deixam marcas de sofrimento no ser humano e são como campos minados em nossas mentes que tocam e testam nossa capacidade de pensar.
Uma rede de continência é oferecida pelo dispositivo da Clínica Transcultural. Uma escuta apoiada na matriz epistemológica da psicanálise e complementada pela antropologia (Devereux, 1970) unida a uma posição descentrada do analista, possibilita o acolhimento da multiplicidade de repertórios culturais das famílias migrantes ou refugiadas que nos procuram. Complementarismo e descentramento são conceitos essenciais que instrumentalizam nossa posição ética nesta clínica plural (Moro, 2015).
Nesse setting, a terapeuta principal, ajudada pela equipe de terapeutas e uma tradutora cultural, oferece imagens e sonhos à paciente para que ela possa processar as passagens vividas durante a migração e construa os vínculos iniciais com seu bebê que nasceu prematuro, tal qual prematura sua necessidade imperativa de se refugiar em outro país.
Percebia que algo não estava bem comigo e fui ao hospital. Tive um parto prematuro e passei muito stress. Quando acordei da cesárea não tinha nenhuma criança ao meu lado: nem o bebê nem os mais velhos. Só fotografias. Só mais tarde, soube que eles estavam vivos e bem.
Agora não consigo conter minhas emoções. Choro muito, está difícil. Não consigo me controlar. Preciso muito de ajuda. No hospital a assistente social me disse que eu falava muito da guerra e pouco do bebê.
Como ser mãe no exílio, sem uma rede de apoio, quando elementos culturais se misturam e se imbricam com os individuais e familiares de maneira profunda e precoce, reavivando representações por vezes adormecidas?
Talvez o poder do amor para não adoecer, como assinalava Freud (1914), ou o amor como uma predisposição natural para se ser a favor de outrem… para se favorecer alguém… ser, sem sequer se pensar, por outra pessoa, como escreveu Valter Hugo Mãe (2012), tenha sido o que ancorou o vínculo dessa dupla mãe-bebê. O eco desse amor não tem fronteiras, o amor não tem exílio, é uma língua universal: o amor, a dor e a maternidade.
Ele é muito bonito, ele é um raio de luz, quando ele acorda está sempre sorrindo, ele tem uma vivacidade, ele faz sons, ele é muito vivo e ao olhar para ele eu vejo que esse bebê é o objetivo de vida de qualquer mãe. O filho mais velho, às vezes vem e me abraça e diz: esse bebê é necessário para nós dois.
Ela então sorri ao falar desse bebê que nasceu no refúgio e nós retribuímos o sorriso, amplificando esse amor para que se torne mais forte que os abalos emocionais provocados pela maternidade no exílio.
Durante as consultas, a partir de um trabalho interno de continência e reverie, processando o impacto emocional, fomos transformando em sonhos seus relatos aterrorizantes.
Foi assim que falamos da rede que estávamos construindo com ela, oferecendo um alimento nutritivo tal qual o leite que ela oferecia ao bebê.
Apesar da saudade de sua terra mãe ela estava traçando sua travessia entre a dor e a esperança, mantendo um cordão umbilical e ajudando seus conterrâneos no que era possível.
Estou feliz porque ele começou a gargalhar. Está sorrindo e mostrando emoções, ele olha para mim e sorri, é apaixonante. Se saio de seu campo de visão, ele fica bravo e chora e eu tento ajudar… ele está se desenvolvendo bem.
Meltzer (1988) nos ensinou que a apreensão do belo vai marcar definitivamente o desenvolvimento emocional. Esse encontro se deu entre o bebê e sua mãe. Assim como ela, nós nos emocionamos e o encantamento tomou conta de toda equipe. Esse bebê, como diz Mãe (2012), é uma criança filha de mil homens, filha do mundo, e todos somos responsáveis por ela, foi acolhido por nós e nos fez sorrir.
A paciente nos segue com o olhar, acompanha nosso diálogo como se compreendesse o português. É um verdadeiro encontro emocional com sentimentos compartilhados.
Em tempos sombrios, nossa capacidade de pensar, centrando empaticamente nossa escuta num universo cultural diverso e processando nossa contratransferência cultural, é desafiada. É função do psicanalista favorecer a elaboração dessas cicatrizes e procurar impedir sua transmissão para as futuras gerações.
Muito obrigada por acharem tempo para me ouvir. Agradeço também ao meu bebê que me permitiu conversar com vocês.