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Desidades
versão On-line ISSN 2318-9282
Desidades no.25 Rio de Janeiro out./dez. 2019
ESPAÇO ABERTO
Olhares e representações da infância no cinema
Outlooks and representations of childhood in motion pictures
Miradas y representaciones de la infancia en el cine
Entrevista de Fabiana de Amorim MarcelloI com Camilo Bácares JaraII
I Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.
II Universidad del País Vasco, Espanha.
RESUMO
Nesta entrevista, são apresentadas reflexões sobre a relação entre infância e cinema, tema ainda pouco pesquisado na América Latina. Discute-se que, apesar de existir um cinema feito e decidido por adultos, nele mesmo é possível identificar uma presença própria da infância que resiste às determinações. Para além das representações da infância em filmes, a entrevista aborda outros aspectos da relação entre a infância e o cinema, tais como, as tensões geracionais entre crianças e adultos no processo cinematográfico, marcado pelo adultocentrismo e a tutela, e o lugar de “testemunhas do mundo” que faz da infância um eixo que estrutura muitas narrativas cinematográficas. Destaca-se ainda que as possibilidades do cinema para os estudos das infâncias são infinitas e inesgotáveis, uma vez que este se constitui em um recurso potente para o estudo dos discursos e práticas fundantes e reprodutoras da infância.
Palavras-chave: cinema, infância, imagem, representação.
ABSTRACT
This interview presents reflections on the relationship between childhood and motion pictures, a theme that is still rarely researched in Latin America. It is discussed that, even though movies are made and decided by adults, it is possible to identify a presence of childhood in these same pictures that resist adult determinations. Beyond the representation of childhood in movies, the interview touches upon other aspects of the relationship between childhood and motion pictures, such as the generational tensions between children and adults in the movie making process, marked by adultcentrism and tutelage, and the positioning of children as “witnesses of the world”, which makes childhood a structural axis for many cinematographical narratives. It is also highlighted that motion pictures present infinite possibilities for the study of childhoods, since it is a potent resource for the study of discourses and practices that found and reproduce childhood.
Keywords: motion pictures, childhood, image, representation.
RESUMEN
En esta entrevista, son presentadas reflexiones sobre la relación entre infancia y cine, tema aún poco investigado en América Latina. Se discute que, a pesar de existir un cine hecho y decidido por adultos, en el mismo es posible identificar una presencia propia de la infancia que resiste a las determinaciones. Mas allá de las representaciones de la infancia en las películas, la entrevista aborda otros aspectos de la relación entre infancia y cine, tales como, las tensiones generacionales entre niños y adultos en el proceso cinematográfico, marcado por el adultocentrismo y la tutela, y el lugar de “testigos del mundo” que hace de la infancia un eje que estructura muchas narrativas cinematográficas. Se destaca además que las posibilidades del cine para los estudios de las infancias son infinitas e inagotables, una vez que este se constituye como un recurso potente para el estudio de los discursos y prácticas fundantes y reproductoras de la infancia.
Palabras clave: cine, infancia, imagen, representación.
Fabiana de Amorim Marcello – Boa tarde, Camilo. Quero te pedir, por gentileza, para que tu fales um pouco da tua formação, da tua trajetória em cinema, em cinema e educação, em cinema e infância. E também, é claro, sobre o teu livro La infancia en el cine colombiano: miradas, presencias y representaciones.1 Quero que tu fales um pouco sobre como foi o trabalho de elaboração do teu livro.
Camilo Bácares Jara – Eu fui parar no cinema por acaso, em Lima, em 2012, quando eu estava estudando com o Alejandro Cussiánovich, pois nessa época eu morava a duas ruas de uma cinemateca. Às vezes, eu até faltava o trabalho para ver filmes, e foi vendo filmes que eu comecei a dar conta de que neles apareciam muitas crianças. Sempre apareciam crianças no cinema. Eu nunca tinha percebido isso. Aí surgiu então uma pergunta sociológica que era: por que tem crianças no cinema? É uma pergunta muito simples, muito básica, mas que é muito complexa de se responder. E também: o que acontece quando se encontram a categoria cinema e a categoria infância? Acontecem mil coisas, que em geral não foram escritas, não foram trabalhadas, e isso me chamava muito a atenção. Principalmente em relação ao olhar. Por isso, no livro, o capítulo que eu mais gosto é o primeiro, porque quando se dá o encontro entre o cinema e a infância, surgem de imediato discursos de controle desse olhar. Para mim, isso era fascinante: encontrar uma quantidade de cientificidades, de correntes científicas que acreditavam que ver cinema era perigoso para a criança porque podia deixar ela cega, segundo o discurso médico, podia provocar alterações, gerar crises nervosas etc.; ou segundo o discurso teológico, com as encíclicas papais, se acreditava que o cinema poderia converter a criança em um sujeito sem moralidade. Além disso, era muito interessante também descobrir o que acontecia sociologicamente quando as crianças iam, em massa, sozinhas ao cinema (pensemos nos anos 1910, 1920): nesse momento, se rompia a categoria moderna que temos sobre infância.
Essa categoria moderna sobre a infância se baseia em duas coisas, fundamentalmente: espaços diferenciados, onde só existem crianças, e, por outro lado, uma relação tutelar com o adulto. Então, quando, por exemplo, as crianças que são trabalhadoras, que têm o seu próprio salário, o seu próprio dinheiro, começam a ir às salas de cinema, se dá a ruptura. Porque a criança ia sozinha ao cinema. Ela não precisava do adulto para ir e, ao assistir ao cinema, terminava coabitando com os adultos. E isso era bastante interessante, por isso se dava a discussão de “o cinema é perigoso, é amoral, a criança não deve entrar” que produziam e continuam produzindo diferentes cientificidades. E eu imagino que, no Brasil, elas também devem ser vistas através da regulamentação das idades, isto é, pela classificação do olhar para entrar no cinema. Isto é, esses discursos que dizem que existem filmes aptos para pessoas a partir dos oito anos de idade, a partir dos doze, filmes a partir daí para o público todo etc. Isso é uma coisa muito, muito relativa e, além disso, fundada num discurso meramente desenvolvimentista.
Mas voltando à questão do cinema, eu acho que isto é uma coisa infinita, principalmente por algo que é maravilhoso: todos os movimentos cinematográficos se fundam na infância. Isso é algo que em geral foi pouco investigado. Isto é, não pode haver neorrealismo sem crianças. Seria totalmente impossível pensar um filme como Ladrões de bicicleta (1948) sem crianças, Vítimas da tormenta (1946) sem crianças, Paisà (1946) sem crianças. Seria impossível pensar em Truffaut e a Nouvelle Vague sem essa criança maravilhosa que é Antoine em Os incompreendidos (1959). E isso acontece com um monte de correntes cinematográficas.
Fabiana de Amorim Marcello – Tu extrais do Jorge Larrosa uma discussão sobre a gestualidade da infância no cinema. E aí eu pergunto: como que tu percebes a diferença entre uma gestualidade da infância que lhe seria singular, se os filmes são feitos e pensados por adultos? As crianças ali são dirigidas pelos adultos. Que gestualidade é essa? Como a gente pensa em uma singularidade e em uma gestualidade da infância, quando ela é produzida imageticamente por adultos?
Camilo Bácares Jara – Essa é uma pergunta muito complexa. Porque acontece a mesma coisa no campo das Ciências Sociais. Nós estamos pesquisando a infância, mas, no fim das contas, nós mesmos é que definimos as conclusões sobre a infância. Isso é um debate tão difícil que, se levarmos, por exemplo, para o cenário editorial, eu te pergunto: quantas revistas com artigos acadêmicos você conhece nas quais os autores são crianças? As próprias revistas acadêmicas não permitem isso, apesar de a criança ser a fonte para nos aproximarmos de um determinado fenômeno ou chegar a uma conclusão x ou y sobre algo relativo à infância. No campo do cinema é igual, e é dificílimo, porque uma das coisas mais importantes que se produzem nesse encontro é que, no cinema, também se reproduz o adultocentrismo. E é algo que os próprios criadores não pensam ou não veem. Isto é, quando eu falo de adultocentrismo, me refiro à centralidade do adulto no relato, na configuração, na execução e na direção desse relato.
Apesar de existir um poder imperante do adulto, ocorre algo que por sua vez é muito interessante: me refiro ao conflito geracional entre crianças e adultos nesses processos cinematográficos. É como quando o diretor diz “a criança tem que me obedecer, porque eu estou dizendo que ela tem que fazer aquilo, tem que ter esta gestualidade”, e a criança produz outra coisa. Aí tem uma forma de resistência nesse processo cinematográfico. O que eu quero dizer é que, apesar de ser um cinema adultocêntrico, isto não quer dizer que o cinema não tenha incorporado a criança na sua narração de uma forma verídica, escutando a criança, falando com a criança, enfim, levando em conta a criança. Um exemplo disso é La vendedora de rosas (1998), de Víctor Gaviria. Não estou dizendo que o filme não seja dele, mas de certa forma é um filme das crianças que estão nessa narração, na medida em que elas é que elaboram todos os diálogos, contando histórias, contando anedotas, e o que ele faz é organizar isso, e construir uma espécie de sequência, uma espécie de história. Em que medida o Gaviria se impõe? Sim, possivelmente através da câmera. Mas em que medida as crianças se impõem? Totalmente. Através da execução do relato, da veracidade do relato. É muito importante levar isso em conta. Isso acontece também quando existem coisas que não são de adultos nem de crianças, mas que estão numa fronteira. Eu penso, por exemplo, no filme A maçã (1998), de Samira Makhmalbaf, feito quando ela tinha dezoito anos. Como lê-la a partir de uma infância claramente jurídica? Ela é uma criança, uma adolescente, é uma jovem – porque aparece outra categoria sociológica também – ou é uma adulta, porque atingiu a maioridade no ocidente, que é de dezoito anos? Talvez não no mundo árabe de onde ela vem. E esse filme que ela filma com dezoito anos, há quanto tempo ela estava pensando nele? Como estava desenvolvendo ele? Acontece a mesma coisa com a irmã dela quando faz E Buda desabou de vergonha (2007), com dezenove anos. Ou o que faz Xavier Dolan, o canadense, que no seu primeiro longametragem, Eu matei minha mãe (2009), tinha vinte anos.
Frente a isso da gestualidade, o que acontece é que, no domínio cinematográfico, na minha opinião, a narração do adulto está muito mediada pela autobiografia. E a autobiografia é um dos eixos fundamentais de configuração da categoria infância. Este tipo de cinema é muito anedótico, é um cinema baseado na memória individual. É o que a gente vê em filmes como Cinema paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore, ou no mais recente Roma (2018), de Alfonso Cuarón. Este último, no fim das contas, se baseia na memória de Cuarón quando era criança, não tanto para falar de si mesmo, mas para falar da empregada doméstica, mas é a memória da sua infância que guia esse relato.
Tem outra coisa que também é fundamental, que são os adultos. Quando eles fazem esse processo de elaboração de uma narração, é difícil evitar as representações oficiais que eles mesmos têm sobre a infância, e isso é uma coisa que eu acho que, em geral, eles não se dão conta. Quando eu estava fazendo entrevistas com diretores, eles não se davam conta de que eles têm uma ideia, ou de que eles têm saberes cristalizados em torno do que é uma criança e de como ela deve se comportar. Assim, aparecem essas representações oficiais sobre infância que, claro, determinam o olhar, por isso existem muitos filmes dirigidos por adultos que determinam uma gestualidade que é fingida, que é falsa. Basicamente, é falsa, porque estão cerceando a criança, estão obrigando-a a ser um anjo, a ser inocente, cândida, pura. E isso é muito difícil, porque todas as infâncias são diferentes segundo o contexto de onde vêm. Ou a ser simplesmente – e isso também acontece muito neste cinema adulto – um simples recurso narrativo. E, quando isso acontece, aparece o paternalismo ou o tutelarismo aplicado ao cinema. A criança não pode estar sozinha porque é perigoso, até na tela, tem que ter um adulto acompanhando, é uma categoria muito velha, mas que continua presente até hoje. Por exemplo, em O garoto (1921), de Chaplin. O filme se chama “O garoto”, mas o garoto não é o protagonista. O protagonista é Chaplin e como cuida dele, como o protege. É uma tradição que você pode encontrar até hoje em inúmeros filmes: A voz do coração (2004), Herói por acaso (2001), até em um filme do qual eu gosto muito, como Central do Brasil (1998), de Walter Salles, onde a criança não pode estar sozinha, porque não é a protagonista, a protagonista é esta senhora, que estava escrevendo na estação, nessa velha profissão de escrever cartas.
Esta replicação das ideias oficiais sobre a infância aplicadas no cinema também acontece em fenômenos muito específicos, por exemplo, na infância vinculada à guerra. A criança na guerra sempre é vulnerável, sempre é vítima, ou, ao contrário, é mostrada como sádica, como violenta por natureza. Mas, nesse processo cinematográfico dominado pelo adulto, o adulto não é capaz de pensar que a criança, por exemplo, pode ter militância política. Essas coisas não são apresentadas. Apesar de que, em alguns casos, existem resistências que são muito interessantes, porque apesar de existir um domínio adulto, o cinema é tão mágico que consegue enganar os adultos quando estão dirigindo e sai outra coisa. É o que acontece, por exemplo, quando você está vendo um filme de Clint Eastwood: você sabe que ele é uma pessoa muito conservadora, muito de direita, mas ele é enganado pelo próprio cinema. Quando ele faz os próprios filmes, existe outro Clint Eastwood que fala. Isso também acontece quando vemos o cinema e a infância.
Paul Vandromme escreveu um livro nos anos 60 que se chama Los niños en la pantalla, 2, e ele dizia que o cinema feito sobre a guerra e as crianças, até 1950, era um cinema que não mostrava as crianças como vítimas, era um cinema onde as crianças apareciam fascinadas pela guerra, e isso é outra coisa totalmente diferente. Esses diretores tiveram outra visão porque os paradigmas sobre infância da época eram diferentes. O paradigma de agora é que a criança é vítima. Se você pegar os filmes mais recentes, você vai ver. Claro, também tem filmes que se rebelam contra essa definição. Por exemplo, você se lembra de Império do sol (1987), de Steven Spielberg, no qual Christian Bale é uma criança que, apesar de tudo que ele passou, de viver a invasão japonesa sobre a China, de estar num campo de concentração, a única coisa pela qual se interessa são os aviões e os pilotos. Mas não é porque seja um sujeito inocente, e sim porque está lendo a guerra sob outro código, que não é o código dos adultos. É totalmente diferente. Tem outro filme que se chama A feiticeira da guerra (2012), de Kim Nguyen, que é fantástico para continuar falando disso, porque nesse filme vemos uma menina combatente numa guerra africana, ou seja, todo o contrário do que sempre nos mostrou o cinema e os livros a partir de uma perspectiva masculina. E essa menina tem uma forma de resistência impressionante para encarar a guerra, apesar de ter que matar os pais, apesar de ter que matar o casal na guerra, de passar por umas coisas terríveis. Ela acredita que é uma bruxa, porque os outros disseram para ela que ela é uma bruxa e, a partir disso, ela aproveita essa identidade para deixar de ser só uma vítima, se convertendo em uma menina com agência, com coragem, com a sua própria interpretação e ação diante da guerra que ela está vivendo.
Eu diria, por último, uma coisa que também chama muito a atenção: apesar de existir um cinema feito e decidido por adultos, nele mesmo se faz presente a alteridade da infância para resistir a esse mandato. E essa alteridade da infância é inalcançável, não se pode tomar, não se pode pegar. No cinema, existem formas de resistência, há alteridades que não conseguimos compreender, quando as crianças enfrentam essa centralidade do adulto no relato. Um exemplo é o filme Gente de bem (2015), de Franco Lolli. Para mim, Franco Lolli é o futuro do cinema da Colômbia porque ele entende que sem infância não existe cinema. Nesse filme, no roteiro, o menino protagonista, um ator natural, tinha que chorar dez vezes, onze vezes, não sei quantas, não lembro. No filme, no fim das contas, ele chora uma vez. Porque ele sempre resistiu à ordem do diretor de que ele tinha de chorar. Não porque ele achasse que soasse falso no relato cinematográfico, talvez ele não se importasse com isso, não sei. Mas o que estava presente ali era uma resistência a esse mandato, a essa centralidade do adulto dizendo “é o meu filme”. Aí aparece, talvez, essa gestualidade sobre a qual você me perguntava. Há pouquíssimos diretores que levaram em conta isso que o Truffaut dizia, que só é possível fazer filmes de crianças falando e escutando as crianças, porque senão tudo vai ser fingido, falso, espúrio, não vai ser real.
Fabiana de Amorim Marcello – É incrível como a gente pode pensar essas questões ligadas à infância e ao cinema, e essa verdade que é a própria da infância, que ninguém tira dela e que ninguém dá para ela porque justamente é ela quem produz. A gente pode pensar isso até para fazer pesquisas com crianças. Não é a mesma coisa, mas é muito semelhante o processo. Por mais que o adulto queira algo, a garantia de que esse algo que ele quer vai acontecer como ele quer é pequena e quase nula. Eu fiquei muito surpresa, confesso, quando li no teu livro, se eu entendi bem, porque tu afirmas que existe uma produção ainda escassa de trabalhos que operam sobre a infância e o cinema hoje. E eu pergunto isso porque, de 15 anos para cá, essa produção aumentou muito no Brasil. Sobretudo nos últimos 10 anos, a produção sobre cinema e educação se ampliou significativamente. O que para nós é muito importante. Eu acho que isso serve muito para poder pensar a própria educação e o que a gente quer com a educação. Quando a educação se coloca para analisar o cinema, tem questões muito singulares ali postas. Como tu dizes, assim: a criança que está na guerra no cinema, em linhas gerais tem uma mesma forma, ela é vítima etc. A criança escolarizada no cinema também, ela é muito parecida. Ela é uma criança oprimida. Ela é uma criança que a escola tolhe do que ela é, enfim. Tudo isso para colocar essa questão que tem a ver com a produção sobre cinema, a produção de pesquisa e bibliografia. Então, eu gostaria que tu falasses um pouco sobre essa ausência, essa lacuna e, sobretudo, na tua opinião, o que se perde com essa ausência?
Camilo Bácares Jara – Essa é uma pergunta muito importante. Eu concordo contigo que tem muita coisa nos últimos 15 anos, mas sobre a relação entre cinema e educação. E sim, aí está inserida a infância. O que não é necessariamente igual à relação entre cinema e infância. No campo do Brasil, sobre cinema e educação, eu realmente não conheço muito, e quando eu estava procurando na internet, também não encontrava, o que é muito curioso, porque quando me disseram que você ia me entrevistar, eu te procurei e encontrei a sua tese, e fiquei fascinado porque eu não a conhecia. É o velho problema das dificuldades das redes de reconhecimento na América Latina. O que eu conhecia mais é o fenômeno da Argentina, principalmente pela Inés Dussel, que trabalhou muito isso. Eu me lembro da tese da María Silvia Serra, que virou um livro, na qual ela faz toda uma pesquisa sobre a relação entre cinema e educação na Argentina. Mas esses avanços não implicam necessariamente que tivesse uma linha de perguntas consolidada em torno da relação entre o cinema e a infância, que era o que eu não encontrava. Sem que eu me propusesse, porque, lembra quando eu te disse que, quando esta pesquisa surge, ela nasce de uma contingência, de um acaso, que era ver filmes em Lima e ver que as crianças apareciam aos montes nos filmes, sem eu saber, além disso, nada de cinema? Isso também foi complicado: eu tive de aprender sobre cinema, saber sobre história do cinema, sobre convenções cinematográficas, sobre teoria das imagens etc. Mas eu diria que esta ausência não é só colombiana, é latino-americana. Eu me arriscaria a dizer isso.
Eu acho que essa ausência se dá por várias questões, por vários fenômenos. O primeiro é o que eu chamo de “reiteração de infâncias”, e a crise epistêmica em torno dessa reiteração de infâncias. Isto parece mais ou menos complicado, mas o que eu trato de dizer é que há alguns temas hegemônicos no campo acadêmico e institucional que ofuscam outras infâncias. O que acontece é que essas infâncias, quando se posicionam, se posicionam com marcos metodológicos e com marcos epistêmicos para serem analisadas em si mesmas e de uma maneira fechada. Um exemplo bem simples é o trabalho das crianças. Nas universidades, parece que, em monografias de fim de curso e em teses de pós-graduação, desde o início já se tem a conclusão quando se estuda o trabalho infantil. Porque se parte de que o trabalho é nocivo e prejudica a criança. O que essas pesquisas querem fazer, durante todo o seu percurso, é confirmar a hipótese de que o trabalho é prejudicial para a saúde física e mental da criança, sem se perguntar de onde vêm essas epistemes, quem as criou, o quanto isso tem a ver com a Organização Internacional do Trabalho na promoção dessa ideia, se existem outros contra-discursos que podem te dizer: “não, através do trabalho também é possível desenvolver capacidades pedagógicas, sociais, é possível gerar resiliência etc.”. Então, em primeiro lugar, está isto do posicionamento de umas infâncias hegemônicas que continuam sendo estudadas, mas com as mesmas variáveis. Esta é uma entrada que não se pode perder de vista.
Em segundo lugar, tem um elemento central que é o logocentrismo, e é acreditar que o conhecimento se produz, se organiza, se sintetiza, se reproduz somente por meio da escritura. O que não está escrito não é conhecimento. As imagens sofrem uma enorme discriminação porque não são consideradas fonte de saber. Não são consideradas fonte em si mesmas, são limitadas a ser ilustração. Portanto, não são iguais, nem apresentam o mesmo status. É preciso lembrar que as imagens, quando começam a ser utilizadas, se utilizavam para os chamados “bobos”, os “idiotas”, os que não podiam chegar ao conhecimento que estava nas letras. Por isso, a bíblia, por exemplo, começa a ter tantas imagens, para cativar a atenção e tratar de explicar para quem não podia ler. Não sei se acontece com você quando dá aula, quando você decide passar um filme, o estudante recebe isso como entretenimento, como se o professor não tivesse preparado a aula, porque considera que o filme, que é feito de imagens, não é um material de pesquisa. No campo sociológico do qual eu venho, isso foi também a premisa e o normal, pois são muito poucos os sociólogos que trabalharam com imagens.
Este logocentrismo conseguiu que acontecesse algo muito louco nos estudos sobre infância ao qual pertencemos, e é que esquecemos que até esta conversa não seria possível sem que Phillipe Ariès tivesse escrito História social da criança e da família, um livro que está baseado em imagens, a fonte são imagens, e parece que todos nós, que pesquisamos infância, esquecemos disso. Apesar das críticas que podem ser feitas a Ariès, em relação a como ele interpretou as imagens, nosso campo de estudo nasce metodologicamente da análise das imagens.
Outra coisa que fomentou este esquecimento, esta lacuna, é que os estudos sobre cinema também têm um predomínio de temas que impedem ver outros fundamentos cinematográficos. Por exemplo, aqui na Colômbia, está muito na moda o estudo de públicos. É como pensar em qual cinema existia em Porto Alegre nos anos ‘20, que tipo de filme passava e que tipo de público assistia. O curioso é que se você for ver esses estudos sobre públicos, quem os fez não vê a infância. É uma coisa totalmente ilógica, quando pensamos em todos os discursos destinados a proibir o olhar das crianças. Aqui vem uma coisa fundamental: eu tenho uma tese elaborada a partir disso, e é a de que não pode existir cinema sem infância ou infâncias. Eu estou totalmente convencido disso. No meu livro, está muito presente que todos os movimentos de ruptura, que rompem com todo o cinema anterior à segunda guerra mundial, se fundam na infância, e isto continua acontecendo, inclusive Hollywood está fazendo isso. Se você olhar os últimos diretores independentes, considerando o âmbito dos Oscar, podemos encontrar Indomável sonhadora (2012), Projeto Flórida (2017), Boyhood (2014), Amor bandido (2012) etc.
E tem outra parte da pergunta que é: o que se perde? Eu acho que, para os estudos de infância, o cinema oferece uma oportunidade metodológica maior, imensa para estudar a infância. No meu modo de ver, o cinema é uma fonte de saber, é um dado. Ao dizer que o cinema é um dado ou um vestígio, o que proponho é que, por meio deste relato acerca da sociedade, pode se falar sobre as infâncias num momento sócio-histórico determinado. Isto é, sobre a experiência de ser criança em um momento histórico concreto, mas também sobre os discursos, os saberes e as representações que determinam essa experiência de ser criança. Mas, obviamente, não podemos ser ingênuos, o cinema como dado, como vestígio, como qualquer fonte necessita de um contraste com outras fontes, necessita de uma discussão. Não é simplesmente transpor filmes e dizer que a realidade era assim porque nos filmes acontecia isso. Isso seria cair no erro que Ariès cometeu quando fez o seu livro, que pensava, por exemplo, que quando as pessoas eram pintadas, estavam colocando a roupa do seu cotidiano, sem levar em conta que, na realidade, elas colocavam as suas melhores roupas para o ato de ser retratadas. Não só é preciso contrastar fontes, mas também desmascarar convenções que estão dentro do cinema. Tem uma coisa que me chama muito a atenção: no cinema da infância, sempre aparece como metáfora, como símbolo, os cavalos. Por quê? Não tenho a menor ideia. Teríamos que ir até o mundo clássico para ver qual é a representação do cavalo, ao longo das artes plásticas, até chegar ao cinema. Também sempre aparece o mar. Sempre as crianças e o mar, como se o mar fosse a liberdade verdadeira como metáfora. Tem um monte de coisas para analisar que estão postas aí.
Que outra coisa se perde ou que outra coisa se acrescenta, se colocarmos isso em outra linguagem? A imagem se converte em uma prova. Já não é somente uma fonte, dado e vestígio, mas aparece outra palavra, que é uma prova. Isto é uma coisa mais jurídica. Por exemplo, nos casos das crianças de rua, das crianças da miséria, das crianças da pobreza. Essas crianças se convertem em uma prova de discursos políticos que foram ineficientes. Estou falando do cinema com uma visão mais documental. Esses filmes contrapõem discursos. Aqui na Colômbia, acontece. Por exemplo, quando o presidente Lleras Restrepo, em pleno auge da Aliança para o Progresso, feita com Kennedy, afirma que, em Bogotá não existe miséria, isso pode ser contrastado com um documentário muito famoso, que se chama Chircales (1972), de Marta Rodríguez, uma grande documentarista que mostra como, na periferia de Bogotá, a exploração era permanente e crescia por esses anos. Isto é, que este discurso político é falso.
Queria agregar algo mais que é muito importante quanto ao que o cinema oferece para o nosso âmbito de estudo, e é que o cinema tem uma bondade única para os estudos sociais sobre infância. O cinema tem a capacidade de enganar o próprio narrador. Enganar as convenções históricas e políticas que temos hoje sobre a infância. Isso é o que você me dizia no início que, quando fazemos pesquisa com infância, ela não sai como nós tínhamos planejado no início. É a mesma coisa, tudo se modifica. O cinema tem uma forma diferente de abordar a infância, de trabalhar com a alteridade, de apresentar resultados diferentes, que habitualmente as Ciências Sociais não poderiam fazer. Vou te dar exemplos concretos de filmes: por exemplo, Ninguém pode saber (2004), de Koreeda. Esse filme longuíssimo, fantástico, como todo o cinema de Koreeda, que está fundado na família e na infância. Se baseia em um fato real que aconteceu nos anos 80 no Japão, em Tóquio, quando uma mãe abandonou os filhos por meses no apartamento em que viviam e eles tiveram de enfrentar esse mundo sem adultos. O que destaca é que ele, desde que teve contato com a história, pensou nela com outro olhar durante mais de dez anos. E durante esse tempo, ele dizia que a experiência dessas crianças não pôde ter sido somente traumática, não pôde ser somente negativa. Então, ele se propõe, a partir do cinema, a olhar a outra face da moeda, e assim descobre, por exemplo, que a criança não é tão vulnerável como se lê, que a criança foi capaz de sobreviver ao abandono da mãe, e que criou formas de resistência dentro da própria casa para que os vizinhos não se dessem conta de que elas estavam sendo abandonadas, apesar da morte da irmã etc. A criança, que na teoria é um sujeito de cuidado, também pode ser cuidadora, sob a visão de Koreeda.
Tem um filme do qual eu gosto muito e que também nos ajuda nisso que eu propunha, que se chama Terra de minas (2015), da Dinamarca. É sobre umas crianças, assim que acaba a Segunda Guerra Mundial. As crianças nazistas são enviadas para as praias da Dinamarca para retirar as minas que estão enterradas debaixo da areia. Esse filme é muito interessante para pensar a categoria da alteridade, porque aqui, a criança combatente nazista já não é representada como vitimadora, e sim como vítima. O que Zandvliet, o diretor, faz é mostrar algo que não tinha interessado nem aos historiadores dinamarqueses: que, no final da guerra, obrigaram as crianças que tinham sido as últimas recrutadas pela resistência nazista contra os aliados e contra os soviéticos a praticamente morrer retirando, sem nenhum preparo, as minas antipessoal que as forças de Hitler tinham enterrado nas costas da Dinamarca. Estamos falando de cinquenta mil, oitenta mil crianças e jovens que morreram retirando minas nas praias da Dinamarca. Assim, temos outra entrada totalmente diferente que foi possível graças ao cinema, pois o diretor, na sua pesquisa, descobre que os historiadores não estavam nem um pouco, ou nada, interessados no assunto ou em publicar algo sobre o assunto.
Definitivamente, eu diria que as possibilidades do cinema para os estudos das infâncias são infinitas e inesgotáveis. De fato, eu não leio o livro que eu escrevi como um livro definitivo. Existem milhões de passos para dar, e que outros pesquisadores têm de dar.
Fabiana de Amorim Marcello – O incrível é poder pensar a infância como o próprio sintoma da cultura, como uma lente de aumento histórico-político-social do que acontece e do que aconteceu, como tu dizes, em termos de vestígio de nós mesmos. Mas também pensar em termos de abertura, de rompimento, nada do que é previsto e nada do que é pensável. Pensar o quanto trabalhar com infância e cinema tem relação com esses dois elementos. Tu mencionaste o filme Ninguém pode saber, esse filme japonês coloca a criança em uma outra posição. Obviamente, que não é pensar a criança do Ocidente e do Oriente em uma oposição. Não é isso. Mas será que o Ocidente não tem uma forma mais conformada, em grande medida, de pensar infância do que outras produções? As iranianas, as coreanas, as japonesas, têm uma forma muito particular de narrar infância, muito diferente das nossas ocidentais. Eu me pergunto sobre isso, sobre algo que eu consigo reconhecer como infância, eu, do Ocidente, reconheço aquilo como infância, não é algo completamente incompreensível para mim, então é alguma coisa que me aproxima. Mas, ao mesmo tempo, não é a mesma coisa. Eu não sei se isso faz sentido para você e se você concorda.
Camilo Bácares Jara – Sim, sim, faz sentido. Para responder isso, eu deveria ir à questão metodológica, a como foi configurado o livro. A minha intenção era não repetir o que eu critico nos estudos sobre infância, que é impor categorias aos fenômenos de estudo. Eu não queria fazer isso, neste caso concreto, eu não tinha crianças históricas diante de mim, porque as crianças com as quais eu trabalhei eram crianças cinematográficas. Mas eu também não queria impor categorias para essas infâncias que estavam nas telas. Por exemplo, falar de direitos, eu não queria nada disso. O que eu fiz foi, vendo cinema, decidir e esperar que as categorias aparecessem. Por isso, o livro se chama La infancia en el cine colombiano: miradas, presencias y representaciones. Aparece a categoria do olhar porque eu me dou conta de que as crianças me ensinam a olhar e que as crianças nos olham através dos filmes, ou que as crianças estão olhando sempre fenômenos e que nos convidam também a olhar esses fenômenos. Um exemplo muito simples de como elas nos ensinam a olhar, ou de como se controla o seu olhar, nos dá o filme Adeus, meninos (1987), de Malle. Nele, os padres mostram filmes para as crianças, eles decidem que filmes as crianças devem e podem ver. Acontece a mesma coisa no meu filme favorito: em Vítimas da tormenta (1946), de De Sica. Foi graças a isso que eu tive a ideia de trabalhar com a noção do olhar. Ou também quando em Machuca (2004), Gonzalo, o menino burguês vai vendo como se transforma a sua realidade. Ele não diz nada, mas é através dele que vemos como a sua família é uma família em crise, que tem uma moralidade opaca, apesar de ser uma moralidade burguesa, de família nuclear e de mentiras.
Vendo cinema, também aparece para mim a categoria da presença, que se baseia em uma pergunta: o quanto aparece a criança no cinema? De forma real, de forma arquetípica, de forma idílica. A última é a da representação. Eu estou um pouco cansado dessa categoria de representação social, mas foi muito interessante porque eu descobri que, no cinema, como em todo processo artístico, antes de existir uma representação social, existe uma representação artística, existe um código artístico, uma fórmula narrativa.
Quando eu estava trabalhando no olhar, vi muito neorrealismo e vi muito nuevo cine espanhol. Nesses filmes, para mim, as crianças são testemunhas. Aí aparece outra categoria sociológica que é fantástica. Com isso, estão trabalhando muito, por exemplo, no Chile: a criança como testemunha da ditadura através das cartas e diários que escreveram durante essa época. No caso pontual do cinema, a criança serve como testemunhante porque foi testemunha de algo. Tem um filme chamado A culpa dos pais (1944), de Vittorio De Sica, o mesmo de Vítimas da tormenta (1946) e Ladrões de bicicleta (1948). Em A culpa dos pais, tem um menino que testemunha, que sempre vê, apesar de que tratam de esconder dele, como a mãe mente para ele, ele sempre olha tudo e ele sempre é testemunha de tudo. É o que acontece em Ladrões de bicicleta, quando Bruno vê o pai roubando, pai que ele considerava honrado, e que continua considerando, porque também entende a situação de opressão em que eles vivem. Igualmente, no nuevo cine espanhol, eu vi muito cinema onde as crianças olhavam as mentiras dos adultos: Cría cuervos (1976), de Carlos Saura, Segredos do coração (1997), de Montxo Armendáriz, até A língua das mariposas (1999), de Cuerda, onde, por exemplo, não se pode falar da morte para a criança. A morte é um tema tabu, mas a morte está lá o tempo todo, e elas vão descobrindo, vão reconhecendo. É algo que também acontece em um filme francês belíssimo que se chama Brinquedo proibido (1952), de René Clément. Esse filme, inclusive, foi vetado em 1952, não o permitiram em Cannes e alguém escreveu que Brinquedo proibido deveria ser proibido porque mostrava a infância em relação com a morte.
Dito isso, se voltarmos para esta ideia que eu propunha da criança como testemunha do mundo, isso supõe que o seu olhar não pode ser negado, pois ele próprio tem conteúdo e mensagens. A criança, ao ter todo esse conhecimento, nos transmite ele através da tela. Isso, para mim, era fundamental e, nesse ato de olhar, as crianças nos repreendem, nos discutem como adultos. E nos lembram de que somos autoritários, que mentimos, que controlamos, que impomos coisas, que existe uma relação conflitiva que se enquadra, que se esconde no discurso romântico rousseauniano. Mas eu acho, justamente, que também tem algo contrário ao que você pergunta. Eu acho que isso não é o que acontece normalmente, o que predomina é o cinema idílico, que esconde o olhar da criança, ou que o enquadra em uma convenção ou em uma fórmula que não é problemática para nós, como adultos ou como espectadores. Isto é, se vemos os filmes clássicos onde a criança, por exemplo, era apresentada como child star – a criança estrela – aí não tem nenhum problema nem reclamação para o mundo adulto. Essencialmente, porque não é a mesma coisa dizer que a criança é vulnerável, como ela é apresentada em todo o cinema idílico, onde normalmente tem que ter um adulto que cuide e a proteja, que diz que ela é vulnerabilizada e que existe uma relação social onde tem outro que violenta a criança; isso é totalmente diferente em relação a outro cinema mais próximo da realidade. Justamente assim ocorre, por exemplo, no neorrealismo, na nouvelle vague, no nuevo cine espanhol, no free cinema inglês, em algo do nuevo cine latino-americano. Além disso, em cada uma destas correntes, estão presentes umas formas concretas e históricas de considerar e de olhar a criança, as quais apostam numa visão da infância que se funda na diversidade, no reconhecimento de muitas maneiras de viver a experiência de ser criança. O neorrealismo, neste caso, o que nos oferece é a possibilidade de compreender como a Europa, entre outras coisas, se reconstruiu a partir da infância trabalhadora e da atuação das crianças, em suma, como as crianças foram atores chave para essa reconstrução. Essa é uma forma de ler o que há nesses filmes.
O cinema iraniano, por exemplo, é um cinema que tem a capacidade que os outros cinemas não tiveram para mostrar os problemas das crianças. Não estou dizendo que os problemas das crianças sejam problemas infantis, isto é, sem importância. De fato, são problemas reais e determinantes para elas. E são evidentemente complexos, porque, por exemplo, se não recuperarem os sapatos, vão apanhar, vão ser castigados como acontece no filme de Majidi, Filhos do paraíso (1997). Ou o professor vai castigar se não levarem o dever de casa, como no filme de Kiarostami, Onde fica a casa do meu amigo? (1987). Ou simplemente não vão ter onde dormir nem poder estar com a mãe, como em Los niños del fin del mundo 3 (2004), de Meshkini, no qual as crianças querem cometer um crime para poder estar na prisão com a mãe e acompanhá-la. Então, aí tem um cinema que está muito interessado nisso: em ver as problemáticas das crianças a partir das crianças, a partir dos seus próprios universos.
Além disso, a criança no relato cinematográfico recrimina o adulto. Tem um filme do Koreeda que se chama Depois da tempestade (2016), que é o filme dele do qual mais gosto. Neste filme, o menino sabe tudo o que acontece, não é nenhum bobo, ele entende que o pai é um fracassado, mas ainda assim o ama, sem que isto queira dizer que ele seja passivo e que não nos exponha essa situação. Por outro lado, também é importante dizer que existem narrativas e temáticas que estão se perdendo. Teríamos que voltar a olhar para trás, para o que foi feito anteriormente por cinematografias como a latino-americana para voltar a começar a pensar a infância. Existem casos memoráveis. Antecedentes que são de revisão obrigatória. Eu gosto muito e recomendo o grupo Chaski do Peru, eles fizeram três filmes – dois longa-metragens e um curta-metragem – fundamentais para a infância dos anos 80, um que se chama Gregorio (1984), outro que se chama Juliana (1989) e um terceiro intitulado Encuentro de hombrecitos4 (1987). Eu acho que estas três obras são chaves para entender o fenômeno na América Latina da criança trabalhadora. Tem que resgatar Rio, 40 graus (1955), tem que resgatar o cinema novo brasileiro, Crónica de un niño solo5 (1965), de Leonardo Favio, na Argentina. O que acontece é que, na América Latina, esses filmes não são tão orgânicos, não estão associados a movimentos, são de diretores isolados ou de experiências cinematográficas que não estão associadas a uma organicidade. Mas aí sim há formas diferentes de olhar. Aqui, na Colômbia, o que predomina é a figura tutelar, a figura da criança inocente, a figura da criança que precisa de cuidados. Até no campo da guerra, a criança é reduzida a um inútil, a uma vítima inerte.
Fabiana de Amorim Marcello – Acho que a gente pode pensar um pouco sobre isso, que a ideia não é a gente categorizar, muito menos definir de maneira tão definitiva o que é o cinema, e o que é a criança no cinema aqui ou ali. Quando eu olho cinema brasileiro, eu vejo que se cruzam ali uma visão de infância com uma questão histórica posta pelo País, e pela própria história do cinema no País. Rio 40 Graus, por exemplo, é uma junção disso. Ele é uma junção de uma questão histórica brasileira, que se perguntava sobre seus centros urbanos, sobretudo Rio de Janeiro e São Paulo. Mas também da própria história do cinema brasileiro, que é distinto da argentina, da chilena, da colombiana, da venezuelana, enfim. Nosso cinema diz sobre o nosso País também, ainda que diga sobre uma infância que não é só nossa, isso é óbvio. Mas diz um pouco sobre a nossa história e sobre o que significa para nós aquela imagem. Então, te pergunto um pouco sobre o cinema colombiano. Como a imagem da criança que povoa essa tela diz sobre a história do país, enfim, de vocês, de memória, de história, de política, de social?
Camilo Bácares Jara – Sobre isso, ocorre algo curioso, e é que o cinema, apesar de ser revolucionário nas suas maneiras de contar e abordar a infância, ao mesmo tempo, é muito conservador e muito apegado aos cânones da infância, às maneiras tradicionais de pensar a infância. Acho que isso é o eixo de tudo o que viemos conversando. Isso é lógico, pois o cinema está inscrito no mundo social e, portanto, reproduz ideias oficiais que governam esse mundo. Um exemplo é a criança vinculada com a política, que é uma criança que não aparece no cinema colombiano, pois obviamente é uma criança que extrapola os cânones. É impossível falar de uma criança política e reivindicativa no cinema colombiano. Ainda mais, quando se pensa na relação que existe entre infância e política. Pensemos na Greta Thunberg para esclarecer esta relação. É muito interessante analisar que, quando os adultos a atacam, fazem isso a partir de uma questão de gênero porque é uma menina, mas também devido a que é uma menina a partir de uma questão de infantilidade, de pertencer ao mundo da infância. Por isso, se escutam discursos como “você ainda não é adulta, tem muito para conhecer, ainda não tem experiência, falta muita bagagem”, que é o que acontece muito, por outro lado, com o fenômeno das crianças trabalhadoras quando são criticadas por exigirem seus direitos. Os adultos dizem para essas mesmas crianças que são trabalhadoras que elas não se dão conta de que estão violando os seus direitos. E o que respondem as crianças trabalhadoras é uma coisa como “é através do trabalho que eu tenho a oportunidade de garantir os meus direitos, porque nem o Estado nem a família garantem”.
Ponho estes exemplos para voltar para esta noção de que o cinema está na permanente disjunção de tratar de fazer rupturas ou de permanecer neste enquadramento oficial, conservador, que impede o cinema e a infância de produzirem outras formas de ler a história oficial. Por isso, é muito difícil ver a criança dentro dessa história, porque, na maioria dos casos, a criança que aparece no cinema colombiano é uma criança anódina ou uma simulação; em resumo, uma criança que não questiona os cânones. Isso é o mais triste que eu encontrei. Tem um exemplo de um curta-metragem que fez um diretor nos anos 60 que era sobre uma criança indígena, que ia em uma balsa sobre uma lagoa para falar de um desastre ambiental. Estava financiado por uma empresa de seguros. O diretor, que já morreu, se chamava Manuel Busquets, e diante da necessidade de encontrar uma criança indígena, ele disse: “faz pouco tempo que eu fiz um curta-metragem com uma criança gamín” (gamín é como chamam as crianças de rua). Para ele, a criança gamín e a criança indígena eram a mesma coisa, porque afinal eles têm, em teoria, uma cor de pele similar, os dois são pobres e, portanto, ninguém vai perceber quando fizermos essa troca. Então, por um lado, temos um cinema com uma criança inútil, mas por outro lado, um cinema com uma criança falsa. E ao ser falsa, é muito difícil que ela se inscreva dentro da história como um sujeito de narração que pode nos guiar, que pode nos contar algo. Obviamente, o que poderia acontecer é que, por trás dessa criança, na construção dessa criança por parte do diretor, seja possível pensar e refletir: por que se pensou assim a infância no país em um momento determinado? Mas, em termos de presença, no cinema colombiano, a criança foi um recurso narrativo e muito mais um material utilizado como uma evidência para a crítica do sistema político.
Cabe dizer que, na época em que aparece todo o cinema novo brasileiro e o nuevo cine argentino, da escola de Santa Fé, na Colômbia se desenvolveu uma coisa que se chama o cinema político marginal, que trata, através de documentários, de fazer uma crítica ao capitalismo. E a criança aparece muito, mas eles não estão interessados na criança. Eles têm interesse na criança como evidência para mostrar como o sistema é tão terrível que faz milhares de crianças morrerrem de fome por ano.
Outra coisa é a criança como recurso narrativo, isto é, sem criança não existe pai, sem criança não existe mãe, e sem criança não existe família nuclear. Por isso, são tão comuns os títulos de filmes “o pai de”, “o filho de”. No cinema colombiano, também aconteceu isso. Até que se dá uma ruptura com um cinema mais recente, que chega a partir de 1998, muito tardiamente, com La vendedora de rosas, de Víctor Gaviria, que mostra essa criança que ninguém quer ver, que é a criança que nos repreende, que nos incomoda, que escapa daquilo que é classificado como normal. Mas aqui tem um sujeito concreto, nós sabemos que está aí, sabemos que nós não transformamos de nenhum jeito a realidade para essa criança continuar existindo ou continuar sendo considerada sociologicamente. Mas tem um detalhe com essas crianças que começam a aparecer, é que são crianças muito homogêneas, muito parecidas. Não sei qual é o sotaque predominante no cinema brasileiro, se é o do Rio, se é o de São Paulo, o de Porto Alegre. Eu pergunto isso porque, na Colômbia, do ponto de vista cinematográfico, não sabemos como falam as crianças do sul do país, nem quem elas são. Existe uma falência e uma dívida regional. No momento, num olhar desgarrado do cinema, não aparecem as infâncias de todo o país. Coisa que é comprensível, pois isso também não acontece nas próprias pesquisas dos estudos sobre infância feitos na Colômbia.
Claramente, existem cinemas diferentes e existem cinemas que apostam na ruptura dessa questão do enclausuramento do olhar, e o que eles fazem é nos dar lentes para podermos ver coisas que normalmente nós não vemos. Eu penso muito numa metáfora do Humberto Maturana que diz que, às vezes, somos como os cavalos que usam antolhos, e normalmente estamos assim, olhando de uma forma determinada. Eu me pergunto o que aconteceria se tirássemos os antolhos e pudéssemos ver outras coisas? Esse é o desafio de ampliar e favorecer o olhar. Há um cinema que nos interpela, que nos obriga a olhar para outras direções e para outros fenômenos, que nos mostra os dois lados da moeda, que explora outras realidades que nos incomodam, realidades que escapam das margens. E sobre isso, eu acho que, para poder continuar pensando e estudando a infância, necessitamos de muito material, de muitas coordenadas, muitas formas de tirarmos os antolhos. E o cinema é uma delas, para poder vermos a infância para além do que já foi estabelecido.
Fabiana de Amorim Marcello – Camilo, foi tudo muito bom. Eu te agradeço imensamente pela tua paciência em me responder com tanto cuidado todas as perguntas.
Camilo Bácares Jara – Muito obrigado, Fabiana!
Data de recebimento: 07/10/2019
Data de aceite: 23/12/2019
1 A infância no cinema colombiano: olhares, presenças e representações (tradução livre).
2 Título original Le cinéma et l’enfance, tradução livre “O cinema e a infância”.
3 Título original Sag-haye velgard, Stray dogs em inglês, Vira-latas (tradução livre).
4 Encontro de homenzinhos (tradução livre).
5 Crônica de um menino só (tradução livre).
I Fabiana de Amorim Marcello: Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil, onde atua também no Programa de Pós-Graduação em Educação. Com mestrado e doutorado em Educação (e doutorado-sanduíche na Paris III, na área de cinema), suas pesquisas, já há mais de dez anos, vêm assumindo como temáticas centrais as problemáticas da imagem e da infância. E-mail: famarcello@gmail.com
II Camilo Bácares Jara: Sociólogo pela Universidad Externado de Colombia. Mestre em Política Social com menção em Promoção da Infância pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Peru. Doutorando em Educação pela Universidad del País Vasco, Espanha. E-mail: comalarulfo@hotmail.com